Minha avó Conceição, mãe de meu pai, foi uma mulher que merece ser lembrada, ainda que quase nada se fale dela na família. Conceição foi quase esquecida e dela não restou nenhuma foto jovem. Não sei como se parecia. Foi uma mulher que viveu fora de seu tempo, que ousou, mas cuja ousadia, infelizmente, não teve o respaldo da variável econômica, aquela que, segundo Marx, condiciona todas as outras. Ou seja, minha avó não tinha, como todas as mulheres de sua época, independência econômica, a única que nos permite total liberdade.
Pertencia, por parte de mãe, a família tradicional paulista, Almeida Prado. Seus antepassados haviam migrado para o sul do país, para estabelecimento de estâncias, numa época em que as terras devolutas abundavam. Por lá se fixaram, mas formaram uma espécie de elite fundiária, onde se falava francês, comia-se em pratos de porcelana inglesa e tomava-se vinho ou água em recipientes de cristal. A região era a da fronteira oeste do Rio Grande do Sul, rústica, que tem a vizinhança da Argentina. Uruguaiana deveria ser na época uma cidadezinha totalmente insignificante, - e ainda é-, mas por onde corria muito dinheiro, oriundo, sobretudo, da venda de gado.
Nada sei do pai de minha avó, a não ser que tinha o sobrenome Noronha. É figura totalmente apagada. Já a mãe, parece que viúva bem jovem foi uma mulher enérgica, que dirigiu os negócios da família com mão firme e morreu relativamente cedo. Sendo Buenos Aires mais próximo do que Porto Alegre, Conceição criou-se freqüentando a capital argentina, indo a teatros, assistindo a concertos, havia estudado piano desde criança com professores importados de Porto Alegre. Falava espanhol fluente, o que não é tão raro por aquelas bandas. Mas também lia francês e inglês. E lia sofregamente tudo que lhe caia nas mãos, romances, livros de divulgação, almanaques. Tenho dela, uma única lembrança, folhetins de “La mode illustrée”, que contam histórias de amor em capítulos, cuidadosamente colecionados e belamente encadernados, vindos diretamente de Paris.
Conceição casou-se cedo com o filho de um estancieiro. Chamava-se Felippe, era o pai de meu pai. Tiveram quatro filhos, todos homens. Mas Felippe morreu cedo, aos trinta e três anos. Deixou-a viúva aos vinte e nove anos. E ávida por viver. E foi assim, pouco tempo depois de viúva, que conheceu um ator. Creio que foi em Porto Alegre, já que o dito fazia parte de uma companhia de teatro portuguesa, de cujo nome jamais me esqueci: “Maria Malta”. E apaixonou-se perdidamente. Por ele enfrentou a família, o filho mais velho, os amigos, os preconceitos. Imaginem só! Casaram-se, apesar de tudo. Foram morar em Porto Alegre. Logo depois, ela engravidou e teve uma filha, Maria, que morreu aos doze anos, uma história que já contei aqui. O que Conceição não sabia é que seu homem era um ex-alcoolatra, que pouco tempo depois voltou ao vício. E aí se instalou o inferno na sua vida. Censurada por todos, pela família, pelos amigos e, sobretudo, pelos filhos, ela decidiu separar-se do único homem que amara de fato. Ele voltou para o Rio, para sua Companhia de teatro. Algum tempo depois, sem conseguir superar a paixão, Conceição, acompanhada de um filho doente, seguiu para o Rio. Lá viveu algum tempo, até que não pode mais suportar e voltou para o sul.
O resto da história, eu conto depois.
domingo, 30 de março de 2008
terça-feira, 25 de março de 2008
Uma nova pedagogia
Crianças malcriadas, desobedientes, ladinas. Crianças que não estudam, que põem a língua de fora, que não respeitam os mais velhos. Muito se tem falado sobre a educação permissiva, de inspiração rousseauista, que tem trazido enormes prejuízos às nossas crianças. Muito se tem discutido, com a presença de especialistas, pedagogos, psicólogos, sociólogos, etc. Então, de repente, assim, surgindo do nada, ficamos conhecendo uma tal Sílvia Calabrese, pedagoga, podemos dizer inovadora, que, com a ajuda de seu lugar-tenente, introduziu uma nova metodologia educacional: “Educação pela tortura”.
Aliás, esta prática educacional já conhecíamos há tanto tempo! Podemos começar na Antiguidade, quando os cristãos eram lançados aos leões famintos, ou queimado vivos. O objetivo, Dra. Sílvia agora nos esclarece, daquilo que, durante dois mil anos, consideramos pura crueldade, era impedi-los de seguir o mau caminho, daquele maluco lá da Palestina, que pregava o amor e o desapego aos bens materiais. Afinal, Nero preocupava-se com a idéia de progresso que não via nos mandamentos do judeu. O Império, na verdade, só queria que os cristãos se assustassem, talvez se chamuscassem um pouquinho, e levassem uns arranhões das feras famintas. Mas os educadores erraram a dose – não havia tecnologia adequada -, e acabaram passando à História como bestas perversas. E só agora, graças à Dra. Sílvia descobrimos as boas intenções que cercavam aqueles atos, que nos horrorizam.
E ainda durante a Inquisição, quanta bondade! Torquemada e seus asseclas, especialistas em todo tipo de “pedagogia” –porque de agora em diante sinto um certo constrangimento em falar rasgadamente em TORTURA – só queriam (e até confessaram claramente e nós não entendemos) salvar pobres almas hereges das chamas do inferno. Porque as chamas acessas pela Igreja Católica eram repletas de bondade educativa, assim como todos aqueles castigos, como fazer o perverso engolir chumbo derretido, eram medidas pedagógicas, que tinham o objetivo cristão de EDUCAR, se não para esta, para a outra vida, onde o herege já entrava com os dois pés – se ainda tivesse algum – no Paraíso. E vejam que ficamos séculos xingando a Santa Inquisição, até que a Dra. Sílvia nos trás a luz.
Para falar de fatos mais recentes, passando por cima dos objetivos educativos dos Nazistas, tivemos a oportunidade de tomar conhecimento dos métodos pedagógicos empregados por aquele que considerávamos um monstro – o Delegado Sérgio Paranhos Fleury-, cuja morte, ainda que a Igreja nos acenasse com o castigo do pecado mortal, comemoramos, sobretudo tendo em vista a forma como foi desta para a melhor: afogamento. Agora, com os esclarecimentos da Dra. Sílvia, já me sinto meio culpada de ter comemorado a morte do “monstro”. Porque estou confusa e já nem sei se é monstro ou Educador. Quem sabe, o Dr. Sérgio, como a Dra. Sílvia, não tentavam formar cidadãos cheios de patriotismo, amor aos fracos, generosidade impar? Dr. Fleury, com seus afogamentos, por exemplo, pode ter querido exercitar aqueles ingratos a sobreviverem à cheias, que inundam nossas cidades nas chuvas de verão. Pode ser que quisesse transforma-los em heróis, capazes de salvar crianças e velhos de afogamentos. Há tanta coisa que não sabemos, que julgamos mal!
Dra. Sílvia ao cortar com alicate a língua da perigosa criança que tinha sob sua guarda, tenho pensado nisso, talvez quisesse impedi-la de dizer palavrões, usar palavras de baixo calão, ou falar um péssimo português, o que ouvimos todos os dias. Ao esmagar seus dedos na porta, pretendia impedi-la de roer as unhas, já que não haveria mais unhas. Ao pendura-la pelos braços e expô-la ao sol, tenho pensado que talvez quisesse fazer-lhe um alongamento prolongado, evitando a postura encurvada das adolescentes. Quanto ao sol, era para lhe dar uma bela cor de verão.
Dra. Sílvia e seu lugar-tenente, se este fosse um país justo, com oportunidades para todos, deveriam estar ensinando a outras detentas seu método pedagógico, evidentemente colocando à disposição das outras seus próprios corpinhos. Quanto ao marido, deveria fazer companhia aos outros detentos que conhecem um método infalível para educar gente como ele.
Que pena que este não seja um país decente!
E como já disse uma vez, odeio o politicamente correto.
Aliás, esta prática educacional já conhecíamos há tanto tempo! Podemos começar na Antiguidade, quando os cristãos eram lançados aos leões famintos, ou queimado vivos. O objetivo, Dra. Sílvia agora nos esclarece, daquilo que, durante dois mil anos, consideramos pura crueldade, era impedi-los de seguir o mau caminho, daquele maluco lá da Palestina, que pregava o amor e o desapego aos bens materiais. Afinal, Nero preocupava-se com a idéia de progresso que não via nos mandamentos do judeu. O Império, na verdade, só queria que os cristãos se assustassem, talvez se chamuscassem um pouquinho, e levassem uns arranhões das feras famintas. Mas os educadores erraram a dose – não havia tecnologia adequada -, e acabaram passando à História como bestas perversas. E só agora, graças à Dra. Sílvia descobrimos as boas intenções que cercavam aqueles atos, que nos horrorizam.
E ainda durante a Inquisição, quanta bondade! Torquemada e seus asseclas, especialistas em todo tipo de “pedagogia” –porque de agora em diante sinto um certo constrangimento em falar rasgadamente em TORTURA – só queriam (e até confessaram claramente e nós não entendemos) salvar pobres almas hereges das chamas do inferno. Porque as chamas acessas pela Igreja Católica eram repletas de bondade educativa, assim como todos aqueles castigos, como fazer o perverso engolir chumbo derretido, eram medidas pedagógicas, que tinham o objetivo cristão de EDUCAR, se não para esta, para a outra vida, onde o herege já entrava com os dois pés – se ainda tivesse algum – no Paraíso. E vejam que ficamos séculos xingando a Santa Inquisição, até que a Dra. Sílvia nos trás a luz.
Para falar de fatos mais recentes, passando por cima dos objetivos educativos dos Nazistas, tivemos a oportunidade de tomar conhecimento dos métodos pedagógicos empregados por aquele que considerávamos um monstro – o Delegado Sérgio Paranhos Fleury-, cuja morte, ainda que a Igreja nos acenasse com o castigo do pecado mortal, comemoramos, sobretudo tendo em vista a forma como foi desta para a melhor: afogamento. Agora, com os esclarecimentos da Dra. Sílvia, já me sinto meio culpada de ter comemorado a morte do “monstro”. Porque estou confusa e já nem sei se é monstro ou Educador. Quem sabe, o Dr. Sérgio, como a Dra. Sílvia, não tentavam formar cidadãos cheios de patriotismo, amor aos fracos, generosidade impar? Dr. Fleury, com seus afogamentos, por exemplo, pode ter querido exercitar aqueles ingratos a sobreviverem à cheias, que inundam nossas cidades nas chuvas de verão. Pode ser que quisesse transforma-los em heróis, capazes de salvar crianças e velhos de afogamentos. Há tanta coisa que não sabemos, que julgamos mal!
Dra. Sílvia ao cortar com alicate a língua da perigosa criança que tinha sob sua guarda, tenho pensado nisso, talvez quisesse impedi-la de dizer palavrões, usar palavras de baixo calão, ou falar um péssimo português, o que ouvimos todos os dias. Ao esmagar seus dedos na porta, pretendia impedi-la de roer as unhas, já que não haveria mais unhas. Ao pendura-la pelos braços e expô-la ao sol, tenho pensado que talvez quisesse fazer-lhe um alongamento prolongado, evitando a postura encurvada das adolescentes. Quanto ao sol, era para lhe dar uma bela cor de verão.
Dra. Sílvia e seu lugar-tenente, se este fosse um país justo, com oportunidades para todos, deveriam estar ensinando a outras detentas seu método pedagógico, evidentemente colocando à disposição das outras seus próprios corpinhos. Quanto ao marido, deveria fazer companhia aos outros detentos que conhecem um método infalível para educar gente como ele.
Que pena que este não seja um país decente!
E como já disse uma vez, odeio o politicamente correto.
quarta-feira, 19 de março de 2008
MEUS ANOS VIVIDOS- 2
Há um ano, no meu aniversário, ou melhor, alguns dias depois, escrevi sobre os anos decorridos e sobre o que a vida me havia ensinado. Hoje, com mais um ano vivido, retorno, com uma semana de atraso, para compartilhar com meus amigos este trajeto, cujo começo já ficou longe. E cujo fim, infelizmente, já começa a se aproximar, apesar de todos os meus esforços. Digo isto sem mágoas, amo a vida e agradeço a Deus tudo que Ele me deu, de bom e também de mal. Como diz minha amiga Regina, há dias de sol e dias de chuva.
De todos estes anos vividos, talvez meu maior e mais precioso aprendizado tenha sido a consciência de minha liberdade, condição essencial de todo ser humano. É nossa capacidade de determinar, de escrever nossa história, de fazer-se ela, de ser o que cada um de nós é. Um ser único, inimitável. É o nosso delito humano, a que estamos irremediavelmente condenados. Não se trata de repetir Sartre, mas de constatar, de aprender o que a vida ensinou. Dizer que nascemos e morremos sozinhos, já é meio rotineiro. Todo mundo tem, ou devia ter consciência disso. Do que ninguém fala é de nosso irremediável isolamento pela vida afora, fruto de nossa irremediável liberdade. E repito que não há mágoa nesta constatação Não acho , como Sartre, no seu terrível pessimismo, que o outro seja o inferno. Ele é simplesmente o outro. Tem suas paixões, seus anseios, secretos ou não, vive seu inferno ou seu céu. Só dele. Posso compreendê-lo, aplaudi-lo, compartilhar, mas jamais poderei saber o que realmente lhe vai à alma. Posso amá-lo, meu filho, ou meu amante, mas ele ainda será a ilha de que falava Hemingway , assim como eu. E ainda que ele me conte, de coração aberto, sem nenhuma reticência, olhos nos olhos, tudo que atormenta ou enche de felicidade seu ser, minha leitura será sempre a minha, a que minha experiência, meus sonhos, enfim EU, poderei fazer. É a minha, única, inimitável, e a dele é a sua, igualmente única, inimitável. A dor que, no decorrer da vida, corroe meu coração é só minha, está impregnada da minha história, que é só minha, e que eu escrevi com minha liberdade.
O amor, muitas vezes, leva à decepção (quanta tolice!), quando constatamos que o outro não reage da forma que esperamos. O amor é livre, como todo sentimento, não pode se amarrar, disciplinar. Amor é, ao mesmo tempo, cumplicidade e liberdade. Ama-se como se pode, ou como se quer. E por esta razão é tão absurda, entre tantas outras, aquela preleção nos casamentos de que doravante marido e mulher serão um só corpo e uma só carne. Isto sem falar de seu aspecto meio esquizofrênico. Amar é ser livre, dar liberdade, saber cultivar sua ilha, e respeitar a do parceiro.
E agradecerei sempre a Deus poder dizer como é maravilhosa esta liberdade, com todas suas conseqüências, que cultivamos, eu e meu companheiro tão amado, cada dia, cada momento vivido. São nossas vidas, unidas e livres, voando acima das convenções, e sempre cultivando nossos projetos pessoais.
De todos estes anos vividos, talvez meu maior e mais precioso aprendizado tenha sido a consciência de minha liberdade, condição essencial de todo ser humano. É nossa capacidade de determinar, de escrever nossa história, de fazer-se ela, de ser o que cada um de nós é. Um ser único, inimitável. É o nosso delito humano, a que estamos irremediavelmente condenados. Não se trata de repetir Sartre, mas de constatar, de aprender o que a vida ensinou. Dizer que nascemos e morremos sozinhos, já é meio rotineiro. Todo mundo tem, ou devia ter consciência disso. Do que ninguém fala é de nosso irremediável isolamento pela vida afora, fruto de nossa irremediável liberdade. E repito que não há mágoa nesta constatação Não acho , como Sartre, no seu terrível pessimismo, que o outro seja o inferno. Ele é simplesmente o outro. Tem suas paixões, seus anseios, secretos ou não, vive seu inferno ou seu céu. Só dele. Posso compreendê-lo, aplaudi-lo, compartilhar, mas jamais poderei saber o que realmente lhe vai à alma. Posso amá-lo, meu filho, ou meu amante, mas ele ainda será a ilha de que falava Hemingway , assim como eu. E ainda que ele me conte, de coração aberto, sem nenhuma reticência, olhos nos olhos, tudo que atormenta ou enche de felicidade seu ser, minha leitura será sempre a minha, a que minha experiência, meus sonhos, enfim EU, poderei fazer. É a minha, única, inimitável, e a dele é a sua, igualmente única, inimitável. A dor que, no decorrer da vida, corroe meu coração é só minha, está impregnada da minha história, que é só minha, e que eu escrevi com minha liberdade.
O amor, muitas vezes, leva à decepção (quanta tolice!), quando constatamos que o outro não reage da forma que esperamos. O amor é livre, como todo sentimento, não pode se amarrar, disciplinar. Amor é, ao mesmo tempo, cumplicidade e liberdade. Ama-se como se pode, ou como se quer. E por esta razão é tão absurda, entre tantas outras, aquela preleção nos casamentos de que doravante marido e mulher serão um só corpo e uma só carne. Isto sem falar de seu aspecto meio esquizofrênico. Amar é ser livre, dar liberdade, saber cultivar sua ilha, e respeitar a do parceiro.
E agradecerei sempre a Deus poder dizer como é maravilhosa esta liberdade, com todas suas conseqüências, que cultivamos, eu e meu companheiro tão amado, cada dia, cada momento vivido. São nossas vidas, unidas e livres, voando acima das convenções, e sempre cultivando nossos projetos pessoais.
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