Quando meu pai foi estudar na França,
eu tinha dez anos. Mas apesar de haver sido uma oportunidade extraordinária,
foi a princípio muito difícil. É duro para uma criança abandonar os amigos, o colégio,
a bicicleta. Além de hábitos alimentares tão diferentes! Mas, acima de tudo,
aquele mundo, cuja língua eu não entendia, me parecia hostil. Mas sempre fui
muito adaptável, e alugado o apartamento e começando meu contato com crianças
francesas, tudo voltou ao normal. E voltei a ser como antes. E sempre
agradecerei a meu pai a oportunidade impar de entrar, ainda tão jovem, em
contato com outra cultura. Felippe era um homem cultivado, professor no
Instituto Militar de Engenharia e fez questão de que esta oportunidade fosse
definitiva em minha vida.
Foi visitando o Louvre que me
apaixonei pela Antiguidade e, durante muitos anos, sonhei em ser arqueóloga.
Sonho que, infelizmente, não pude realizar. Visitei Versalhes várias vezes,
percorri seus salões, desci e subi suas escadarias suntuosas. Muitos anos mais
tarde, já adulta, fiz um curso sobre o palácio e descobri espaços recônditos, e
desconhecidos dos visitantes, como o pequeno teatro de Maria Antonieta, todo
decorado em “papier mâché”, aquela mistura de papel, água e cola com que se
faziam bebês. Júlio, um esses bebês, o preferido de minha irmã, Teresa, foi
motivo de nossa primeira briga, quando, ainda bem pequena, arranquei sua
cabeça. Queria me bater, mas minha mãe não deixou e acho que lhe comprou outro.
Pois o pequenino teatro, primor de bom gosto rococó, era o espaço onde a Rainha
ensaiava textos com alguns cortesãos e cortesãs. Contava a professora que por
vezes o Rei Luís XVI ia vê-la ensaiar. Depois, voltei algumas vezes, mas nunca
mais consegui reencontrá-lo.
Visitei a Conciergerie, onde a Rainha,
passou seus últimos dias, depois dos meses passados na prisão do Templo. Foi da
prisão do Templo, antigo monastério Templário, já destruído, que Luís XVI,
agora Luís Capet, devido à sua dinastia, foi levado à guilhotina. Algum tempo
depois, seqüestraram o filho da “viúva Capet”, que, apesar de suas súplicas,
foi entregue a um “citoyen” sapateiro, e que ela nunca mais voltou a ver. Maria
Antonieta, como diz Stefan Zweig na sua biografia, era uma mulher comum, sem
nada que a distinguisse de milhões de outros seres humanos. Diz ele : “ O
trágico não resulta somente dos traços extraordinários de um ser....mas da
desproporção existente entre um homem e seu destino. Manifesta-se quando um ser
superior, um herói, um gênio , entra em conflito com o mundo que o rodeia,
demais hostil, demais estreito para a tarefa que o mundo o destinou, como
Napoleão sufocando no minúsculo quadrado de Santa-Helena ou Beethoven
aprisionado em sua surdez......Mas o trágico existe também quando uma natureza
mediana, e mesmo fraca, é ligada a um destino extraordinário” Sem a Revolução
esta princesa insignificante teria vivido e morrido dentro dos mesmos padrões
de tantas outras que a antecederam! Como rainha teria homenagens especiais em
sua morte, e não seria mais do que uma lápide, já meio apagada, como tantas “Marie-Adelaïde
e Adelaïde-Marie, as Anna-Cathérine e Cathérine-Anna” Maria-Antonieta é um
dos mais belos exemplos deste heroísmo involuntário”
Estes tempos de minha infância, me
levaram a este mundo, e me disseram que a rainha era tão somente uma mártir. Li
sua biografia de um membro da Academia Francesa, Pierre de Nolhac, e chorei. Mais
recentemente, além de Stefan Zweig, li uma biografia de Simone Bertière , onde
é mostrado o papel que lhe havia destinado sua mãe, Maria Teresa da Áustria, e
que não cumpriu e, aliás, nem se interessou. Hoje, levo dela uma imagem bem
mais realista, ainda que me comova o que conta Zweig, quase ao final do livro ”A
multidão é dispersa. Leva-se em uma carroça o corpo da supliciada, a cabeça
entre as pernas. Alguns guardas vigiam a guilhotina. Mas ninguém se preocupa com
o sangue que lentamente penetra na terra, o lugar está novamente deserto.”
Nos meus tempos de juventude, vivendo
sob uma ditadura, tudo me parecia diferente. Amei os “citoyens”, os “camaradas”
e os “companheiros”. Sobre este tema, aliás, escrevi um texto que Ricardo, meu
companheiro na época, publicou num blog que tinha na Universidade, e que desde
então sumiu do meu, onde publiquei primeiramente. Hoje, já com muitos e muitos
anos vividos, não tenho mais paixões e procuro usar a razão para viver.
Mas, afinal, a razão do texto não é
Maria Antonieta, nem eu. Quero falar de uma figura que empolgou minha juventude
revolucionária: Saint-Just. Releio “Souvenirs pieux” de Marguerite Youcenar, escritora franco-belga. É
uma auto-biografia onde ela faz uma bela retrospectiva de sua existência, desde
a gravidez da mãe, Fernande, morta logo após o parto. Penetra fundo no seu passado
e de sua família. Vai a tempos medievais e volta à sua juventude. Perde-se nas
brumas do passado e fala de si mesma. Falando de sua juventude, diz ela “Como
muitos franceses e francesas de minha geração, tive, ainda bem jovem um culto
por Saint-Just. Passei muitos momentos no Museu Carnavalet ( museu da cidade de
Paris), contemplando o retrato do Anjo Exterminador.....” O Anjo Exterminador é
Louis-Antoine-Léon de Saint-Just. E continua, “Este belo rosto enquadrado de
cachos flutuantes, este pescoço feminino, envolvido como que pudicamente numa
echarpe de fino tecido eram elementos importantes na minha admiração pelo violento
amigo de Robespierre. Mais tarde, mudei: a admiração cedeu lugar a uma trágica
piedade por este homem consumido antes de chegar realizar-se.” Ao ler o que diz
de Saint-Just, chamou-me especialmente a atenção o que me disse alguma vez, ou
várias, meu pai acerca de sua admiração de juventude pelo mesmo herói. E o fato
de ambos haverem nascido no mesmo ano, 1903. O que levaria aquelas duas
pessoas, separadas pela distância e pela cultura, a partilhar a mesma
admiração? A mim parece que foram os ideais de liberdade, ainda que Saint-Just
tenha ido ao extremo do Terror. Para meu pai, como muitos militares de sua
geração, seduzido na juventude pelos ideais comunistas, e, ainda que desiludido
devido às barbáries stalinistas, mas para sempre ligado à esquerda, era esse
idealismo sem limites que o levava a esta admiração. Meu pai, que apesar de
suas idéias, chegou ao ponto mais alto de sua carreira, graças, à sua
inteligência.
No processo do rei, os
argumentos secos e ásperos de Saint-Just muito influíram na condenação do rei. E
diz Marguerite Youcenar : “....ele empurra para o cesto a cabeça dos Girondinos
(burgueses ricos que se empenhavam por uma monarquia parlamentar, como a
inglesa), as dos Dantonistas ( ou Indulgents que queriam o fim do Terror) , as
dos Hébertistas” , liderados por Jacques
Hébert, facção ultra-revolucionária jacobina. Também seu amigo de anos
passados, Camille Desmoulins, extraordinário panfletista, do grupo dos Indulgentes.
E mais trágico, no dia seguinte às execuções de Hébert -25 de março de
1794, e de Camille Desmoulins – 5 de
abril de 1794, suas viúvas foram
igualmente guilhotinadas, acusadas de complô contra o governo. Durante o
processo de Maria Antonieta, agora denominada “veuve Capet”, o execrável
Hébert, que não sei se fazia parte dos jurados, lançou-lhe a terrível blasfêmia
de que mantinha relações sexuais com o filho, ao que a “veuve Capet” retrucou
indignada a célebre frase : “J´en appelle
à toutes les mères de France!” ( Peço justiça a todas as mães de França).
Terrível blasfêmia, proferida por um demente, contra uma mulher sem armas de
defesa, que deixou revoltados mesmos os mais empedernidos revolucionários. Pois
após um jantar, ainda durante o processo, relembrando esta e outras nojentas
acusações dirigidas a ela, diz Saint–Just, sem escrúpulos: “... servirão para melhorar a moral pública”.
Para fundar esta sociedade ideal, dizia um amigo, estaria pronto a “sacrificar cem mil cabeças, incluindo a sua.”
Este homem, obcecado por uma idéia, levou a tal ponto seu ideal que acabou por
matá-lo.
Mas todos já estavam saturados do
Terror, e assim, num súbito ataque, deputados moderados golpearam de morte o
temido “Comitê de Salut Public”, chefiado por Robespierre. Invadida a sala onde
estavam, tiros foram disparados atingindo o rosto de Robespierre que teve o
maxilar quebrado. Deitado sobre a mesa onde tantas mortes haviam sido
decididas, o “Incorruptível” gemia de dor. O sangue jorrava e vários dentes
foram arrancados aos pedaços. Um dos membros, Philippe Le Bas, suicida-se,
Couthon, paralítico tenta esconder-se,
mas não consegue. Seguem-se trinta e seis horas de agonia. Afinal, sem
julgamento, somente confirmando seus nomes, foram conduzidos à guilhotina.” Aos vinte e seis anos, elegante, apesar de
trinta e seis horas de agonia, impecável no seu fraque e suas calças cinza
claro, mas sinistramente despojado de suas longas mechas e suas argolas, o belo
pescoço desnudo, despojado do fino lenço branco, ele espera estoicamente sua
vez na guilhotina, entre Couthon, o paralítico, e seu herói da mandíbula quebrada, Robespierre. “
Danton tinha a seu lado todo grande
capital internacional, que reagiria. Banqueiros foram decapitados, numa espiral
de loucura, mas a vingança viria célere. Pela “force de choses”, este elemento
mais forte do que a razão, Robespierre, ao sentenciar à morte Danton, sabia que
assinava sua própria sentença. E como é dito no filme “Danton” de Andrzej Wajda,
ele previu ao passar pelo prédio onde morava Robespierre, a caminho do
cadafalso: “Dans trois mois, tu me suivras, et ton corps pourrira à côté du
mien.”
Um comentário:
Que belo texto, minha querida e eterna professora! Um beijo.
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