Acabei de ver
um filme que falou-me ao coração. Falou de tudo que tenho sentido nestes anos,
após os sessenta, quando a gente revê o passado. Penso nele e sinto saudades. Sei
que este é o último ato, e quero vivê-lo o melhor possível . Quanto ao filme, não
interessa a história, mas, em mim , provocou o imediato desejo de compartilhar
tanta coisa, que vi, vivi, amei... Falar no passado, quando ele é tão maior do
que o futuro, não é saudosismo, nem angústia da aproximação do check out. A
música que encerra o filme me comoveu profundamente. Todos aqueles casais que
dançavam, cabecinhas brancas , algumas mulheres tentando driblar o tempo, era
uma das minhas preferidas aos quinze, dezesseis anos.
Há tempo! Já a havia
esquecido! Aqueles foram meus anos dourados, e, à medida que a gente vai
envelhecendo, detalhes vão surgindo neste computador da memória, por mais
longínquos que sejam. Pessoas que tiveram importância, lugares, desejos, sempre
reprimidos... amores. Lembro de recantos que não existem mais, de sonhos que
não pude realizar, mas realizei outros em que não pensava. As pessoas que então
povoavam minha vida foram pouco a pouco desaparecendo, alguns morreram, outros
não sei onde estão. Minha família original partiu, pai , mãe, irmão, irmã. Os
rostos que hoje encontro no Natal, ou em outras reuniões familiares, são
outros. Sinto saudades, mas, a cada partida, levantei a cabeça e pensei “É a
vida, tenho que prosseguir”
Tenho contato
com dois amigos, de muitos anos atrás, que me dizem que era a menina mais
bonita do colégio. E que eram secretamente apaixonados por mim! Confesso que
fiquei feliz. Mas minha grande paixão era outro. Já morto há muitos anos. E há
também as lembranças mais antigas, o velocípede que ganhei de Natal, trocado
mais tarde pela bicicleta. A corda em que era mestra, as brincadeiras na rua, a
roda “... vamos brincar de roda?” Lembro-me da moça alta e loura, que via,
todos os dias, descendo do colégio. Destacava-se das outras pela altura e pelo
cabelo loiríssimo. Ainda não havia resolvido se queria ser como ela ou como
Teresa, minha irmã, que admirava muito, apesar de seus beliscões. Um dia sumiu,
e fiquei sabendo que havia morrido. Naquela época não tinha idéia do fosse a
morte , sabia que nunca mais a veria, e considerei, simplesmente, que ela havia
ido embora. Alguns meses antes, havia morrido minha avó Joana, que morava
conosco. Lembro-me de minha mãe aos prantos, comigo sentada no colo, eu chorava
também... A noite fui com Teresa dormir na casa de uma vizinha. Acordei toda
molhada, envergonhada pulei na cama de minha irmã e agarrei-me a ela.
Mais tarde os
“arrasta-pés”, onde dançávamos aquela linda música do final do filme, de cujo
nome esqueci-me, e a orquestra de Ray Connif. Usava saltos bem altos, bico
fino, impraticável hoje. Aos quatorze anos pintei meu cabelo de vermelho, aos
dezesseis de louro platinado. Hoje vejo que tive pais bastante liberais. Era
paquerada, mas sempre permaneci fiel ao meu primeiro amor, aquele que abriu
caminho para outros. Não danço mais, nem pulo corda. Durante anos andei na
minha bicicleta, até que, desviando de um buraco, fui atropelada. Fiquei com
medo. Troquei meus exercícios, a bicicleta, a musculação, pelo pilates.
Continuo com o vício de pintar os cabelos, agora para esconder os brancos.
Minhas roupas mudaram de estilo. Há anos, vivo só, com meus três vira-latas.
Gosto desta liberdade. Tenho que tomar remédio para dormir e antidepressivo.
Herdei de minha mãe uma depressão endógena que me acompanha há anos. Mas, pela manhã, logo que acordo, peço coragem a DEUS, em que acredito firmemente, e levanto-me às cinco e meia
para dar conta de todas minhas tarefas.
Olho duas
fotos antigas. Minha mãe e minha tia Aracy, sua irmã por parte de mãe. Minha
mãe devia ter cerca de quatorze anos e minha tia cerca de dezessete. Morreu
pouco tempo depois de tirar a foto. Provavelmente, suicidou-se; já havia
tentado uma vez. Conservou-se na memória dos que a conheceram linda, com sua
coroa de flores, o rosto ligeiramente inclinado, um chale, talvez, que lhe
deixa nu um dos ombros. Minha mãe, vê-se, é uma garota adolescente. Apesar da
puberdade, tem um rosto mais sensual, lábios muito grossos, e traços menos
requintados. Ambas são bonitas, cada qual no seu tipo. Minha tia não pode ter
seu grande amor, que, aliás, morreu pouco depois dela, não teve filhos, não viu
a família nascer e crescer. Ficou na sua solidão, linda e jovem. Para sempre. Minha
mãe morreu aos oitenta e dois anos, encontrou seu amor, casou-se, teve filhos,
netos. Engordou, seus cabelos ficaram grisalhos, sua pele mudou. Aos setenta e
seis anos, desistiu da vida. Havia perdido seu amor, seu companheiro de tantos
e tantos anos! Durante anos desesperei-me ao vê-la assim. Logo eu, mulher
independente, com uma trajetória de vida de amores e desamores. Como
compreendê-la? Mas no dia em que se foi, senti que se libertava, rezei por ela
e me conformei. Afinal, apesar de todos os revezes da vida, minha mãe viveu plenamente aquilo que projetara
para ela. A velhice ao lado do companheiro, que envelheceu com ela, com os
filhos e netos, foi feliz. Pouco importa seus cabelos grisalhos, sua pele já
enrugando, o quanto havia engordado.
Hoje, aos setenta anos, cuido mais de mim,
acumulo uma bagagem de conhecimento da vida e cultural que utilizei na formação
de muita gente. Sempre gostei de ler, prazer que devo a meu irmão. Mas, agora,
tenho que usar óculos. Confesso que a maior parte do que vivi foi bom. Coloquei-me
na prioridade e quero continuar a ser feliz. Sei que o tempo passa célere, e
aprendi a gozar cada dia. Não abro mão do que me dá prazer. Como disse um dia
Mario de Andrade, meu cesto de cerejas já está bem vazio, mas pouco importa.
Dizer que a vida é sopro é um lugar comum, mas verdadeiro. Mas ainda espero
escrever ainda muitos textos, ler muitos livros, assistir muitos filmes. E
conseguir vencer as batalhas , até a final!
Para
informação, o filme chama-se “45” com Charlotte Ramplay e Tom Courtenay.
3 comentários:
Bela crônica, amiga! Também eu ando pensando em como o tempo é implacável e voraz!
Lindo texto. Ainda temos muito o que viver, e o que importa é a qualidade de nossa vida. Parabéns.
Obrigada, amigas. Como diz o Eclesiastes, há um tempo para tudo na vida. Vivi meu tempo de dançar, de brincar, de me apaixonar. Hoje meu tempo é outro, e quero vivê-lo o melhor possível. Sou a minha PRIORIDADE. Beijos
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