Quando ela nasceu, o comunismo já havia se instalado na Bulgária.
Durante toda sua infância, sua juventude, sua maturidade havia sentido o medo.
Quando a conheci, jamais havia conhecido a liberdade. Roubaram-lhe o
apartamento, assim como todos os bens da família. Naquela inesquecível estadia
na Bretanha, devia regular comigo, quarenta e dois anos. Vou falar no passado,
porque a ele me refiro. Minha amiga tinha belos olhos azuis, e cabelos louros,
daqueles que se via antigamente, descoloridos com a própria água oxigenada. Tintura,
cores a escolher? Nem pensar! Teria sido uma bela mulher, de corpo esguio e
belo sorriso. Svetla fazia o possível para ser uma mulher cuidada como as
outras. Seu cabelo ressecado, sua pele maltratada eram o retrato do realismo
socialista. Éramos professoras universitárias, vindas de países, majoritariamente, ocidentais. Algumas mais velhas, outras mais jovens, algumas mais belas outras
menos. Havia até algumas polonesas, nem tão vaidosas – pecado burguês, como
dizia meu ex-companheiro Robert Ponge, que, num dia de mau humor, corri de casa
– mas pareciam mais à vontade do que minha amiga.
Nunca conhecera nenhuma comemoração natalina, este era um
dia como qualquer outro. Nem um só dia festivo, talvez somente para “comemorar”
o dia de março de 1917, em que os bolcheviques tomaram definitivamente o poder,
e um dia, em 1946, em que o comunismo se instalou na Bulgária. Jamais uma
oração, somente feita em casa, escondida como ato criminoso: ópio do povo. Svetla
nunca vira uma árvore de Natal, apesar de provir de família ortodoxa. Nascer,
crescer, viver no medo só não é pior do que acontece com crianças sírias. Esta
é a variável comum a todas! O MEDO! Estamos vendo, e já ouvimos falar do medo,
no holocausto, no regime stalinista, no maoísta. Tudo provocado por ditadores!
É preciso varrê-los da terra!
Tínhamos raros momentos a sós, seu guarda-costa as vezes lhe
dava uma folga. Quem sabe se compadecesse? Afinal, Marguerita , bem mais velha,
esposa de um coronel, havia conhecido outros tempos! Nestes momentos, Svetla
contava, que o contrabando era freqüente no país. Mas o que se podia comprar
com tão pouco dinheiro? Meias de seda, como ela dizia, xampus, um batom. E isto
era o cúmulo do luxo! Produtos vindos da Grécia, onde ela imaginava haver de
tudo. A Bulgária havia sido invadida pelos turcos e ficara sob domínio otomano durante
quatrocentos anos. Foram séculos de sofrimento, com impostos altos e
discriminação. Enfim, conseguiram a liberdade já no século XVIII. Mas, na
realidade, o país jamais conheceu a paz e sempre houve sofrimento para o povo. Em
1946, finalmente, foi declarada a “República Popular do Bulgária”. Chervenkov
Valko, instalou no país o stalinismo e seu sucessor, Todor Zhivkov, continuou
na linha da União Soviética até a queda do comunismo. Svetla convidou-me a ir a
Sofia e até hoje não descobri se deveria visitar a múmia de um ou de outro.
Imagino que de Vlako, que eu entendia outra coisa.
Havia nas redondezas um hiper-marché , de cujo nome não me
recordo mais. Eu adorava ir nos momentos de folga, saborear biscoitos que não
encontrava aqui. Em geral, ia com Guy, e foi com ele, que morava em Sofia, como
funcionário francês, que aprendi muita coisa sobre o país: a função de
Marguerita, o terror de Svetla com a fita cassette de Gal Costa, a história do
velho que, não tendo mais onde morar na casa da família, foi instalado numa
cabana para ele construída no pátio, e a constante escassez de tudo. Tentei
dar-lhe uma nota do Brasil , que imaginei seria uma recordação, mas ela recusou
com determinação. Só anos depois, juntando os pedaços, verifiquei que uma
simples nota de um país estrangeiro poderia trazer-lhe problemas. Pela própria
Svetla fiquei sabendo que logo que se formava fila, entrava-se nela, certo de
que alguma coisa estava ou logo estaria faltando. Contou-me da falta de papel
higiênico e hoje, quando vejo o que acontece na Venezuela, penso nela.
Contou-me que o maior sonho de uma búlgara era casar com um
europeu e sair do país. Anos mais tarde, recebi, em minha casa, o filho e a
namorada de uma amiga sua que se casara com um francês, astrônomo no Chile.
Era um rapaz simpático, bem francês, e que mal falava o búlgaro. Também contou-me
que era divorciada, sem filhos, que tinha, como eu, uma mãe doente, que não sei
com quem deixara, que tinha uma tia também doente (pelo que dizia Alzheimer),
que se negava a se deixar lavar, e que a família a deixara sem lavar, o que já
durava anos. Imaginei apartamentos escuros, sombrios, decadentes. Mostrou-me
uma foto sombria de sua mãe, deitada, doente, e lembrei-me da minha, cheia de
cuidadoras, numa casa arejada e clara, e um batalhão de médicos. E deveríamos
ser, não fosse o regime, da mesma classe social!
Um dia, Svetla, juntou algum dinheiro e, no hiper-marché,
comprou uma bermuda estampada com números. Chegou exultante com sua nova roupa
e logo a estreou. Sentia-se super elegante. Sinto-me orgulhosa de não ter o
hábito, tão comum entre as brasileiras, de reparar roupas. Mas aquele dia foi
diferente. Reparei que vestia uma blusa preta e sua bermuda colorida. Não olhei
os sapatos. Ah! Svetla que se contentava com tão pouco! Que tinha tão pouco!
Um dia, resolveu comprar presentinhos para amigas na
Bulgária. Fomos juntas e durante horas procuramos o que caberia no seu parco
orçamento. Em dado momento, sentou-se no chão e começou a contar as moedinhas
espalhadas, para espanto de todos os clientes. Pensei que jamais chegaríamos a
um consenso e completei (estávamos sós) o que faltava. Um chocolatinho, um
pacote pequeno de biscoitos, umas balinhas coloridas, etc. Saiu feliz da vida,
imaginando a alegria das presenteadas. Pouco
antes do fim do curso, notei que, após o almoço e jantar, jogava dentro de uma
sacola que nos haviam dado, seu pedaço de pão e o meu, que eu nunca comia.
Fiquei intrigada, não podia imaginar o porquê. Um dia, afinal, criei coragem e
perguntei-lhe porque guardava pão duro e velho. Lembro-me perfeitamente de sua
resposta: “Maria, vou esperar o avião em Orly durante horas. Assim molho o pão na água e
posso comer.” Fiquei estarrecida, como era possível? No dia seguinte, pela
manhã , ao se despedir de mim, abracei e dei-lhe uma nota de cem dólares. Hoje,
imagino que tenha jogado fora ou dado a alguém.
Com a queda do regime, Svetla recuperou seus bens, segundo
contou-me sua amiga, de cujo nome não me lembro mais. Casou-se novamente e
tinha até um cachorrinho. Durante algum tempo nos correspondemos, mas a
distância e o tempo nos afastou.
Cruel regime que, felizmente, acabou. O que resta está tão
podre que logo despencará. Não posso morrer sem ver isto acontecer. E continuo
afirmando:
“VERMELHO SÓ MEU
BATOM”vie
2 comentários:
Bela e comovente crônica, amiga!
Você escreve muito bem!
Amiga, esta é uma história realmente comovente que relata ao vivo a crueldade do comunismo, que felizmente esta quase terminando definitivamente. O que resta são caricaturas e a Coréia du NOrte não interessar mais à China.
Abrigada.
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