TUDO QUE ME CONTARAM
Há muitos anos, resolvi contar histórias. Aquelas que havia
ouvido das velhas da família. São as interessantes. Velhas primas, amigas de
minha mãe, gente que havia vivido um outro tempo, que eu não conhecia. Afinal,
quando minha obra ficou pronta, tive que refazer, e refazer, e refazer....
Sempre havia coisa nova ou inverossímil, que eu não havia percebido. Também
pouco a pouco as velhas foram partindo e fiquei sem meios de verificar.
Intitulei-a “Tudo que me contaram” e fechei meu “livro”.Quem sabe algum dia o
reabrirei? Ou alguém, ao encontrá-lo, poderá publicar?
De todas minhas fontes de informação, a melhor, a mais
fidedigna, vem de minha Alice. Desde tomei algum conhecimento do mundo, conheci
o seu colo aconchegante, que me ninava até que o sono fechasse meus olhos. Bem
acomodada, quase no escuro, ainda com chupeta na boca, ouvia suas histórias. Eu
devia ter três anos ou talvez menos. Ela gostava das novelas de rádio, mas
gostava igualmente de contar-me suas histórias. Foi assim que soube que aquela
moça bonita, cuja foto estava numa mesinha, era sua irmã Aracy. Que ela havia
morrido aos dezessete anos. Não me disse de quê, nem perguntei. E por que vovó
sempre colocava uma rosa diante do foto? Soube que a menininha com pezinhos a
mostra e camisolinha rendada era irmã de papai. E que ela também havia morrido.
Aos doze anos.
Aos poucos fui conhecendo a história da família. Tive duas
tias, Aracy , irmã de minha mãe por parte de mãe e Maria irmã de meu pai também por parte de
mãe. Já na adolescência minha mãe contou-me que Maria morrera de peste
bubônica, e Aracy provavelmente se suicidara. Já havia tentado uma vez. Minhas
avós eram cunhadas, já que minha avó materna, Joana, era irmã do falecido
marido de minha avó paterna. Já era crescida quando entendi que meus pais eram
primos, o que hoje é considerado um casamento de alto risco. E foi este
parentesco que os apresentou. Mas foi no colo acolhedor de minha mãe, em que
adormecia toda noite, sentindo o balanço da velha cadeira, que, há muitos anos passados,
a embalara e também minha tia Aracy, que ouvi histórias lindas, comoventes,
engraçadas, tristes.
Com a família longe, no Rio Grande do Sul, com meios de
comunicação precários, eu não conhecia ninguém. Meu pai, militar, havia feito a
Escola Militar de Engenharia no Rio, e de lá o transferiram para Santarém. Conseguiu
com um colega paraense, a troca para Juiz de Fora, lugar de que talvez jamais
ouvira falar. Sempre brinco que as montanhas mineiras inspiraram meus pais, já
que minha mãe engravidou pouco depois de chegar. Já tinha filhos grandes e esta
não foi uma boa surpresa. Mas fui bem-vinda e amada. Hoje, penso que esta hora,
quando me embalava, era o momento de falar dos
que deixara para trás. Havia histórias mais recentes e outras bem
antigas. Lembro-me de tia Porfíria, cunhada de minha bisavó, Vitória. Eram
ambas argentinas, já que naquela fronteira quase todo mundo é meio brasileiro,
meio argentino. Quando minha mãe a conheceu, já era viúva. Tinha uma dezena, ou
mais, de filhos, de todas as idades. Nas férias, minha avó levava suas duas
filhas para passarem uns dias na estância, que não sei se ficava no Brasil ou
na Argentina. Minha mãe sempre me falou do dia em que chegou à estância e viu,
pela primeira vez, um rádio. Era ainda bem pequena, de seis ou sete anos. Ela
não podia imaginar o que significava aquele estranho objeto, entronizado sobre
uma mesa, num recanto especial da sala,
que funcionava como um altar a um deus desconhecido. Imagino que fosse daqueles
em estilo catedral, bem envernizado, com belos botões de ebonite pretos. O
programa vinha da Argentina, e Alice ouvia, extasiada, o que se dizia em
espanhol, acompanhado de uma terrível descarga, sem entender patavina. Aquele
objeto parecia tão estranho que ela me confessou que sentia na sua presença um
considerável medo, de tal forma que quando atravessava sozinha a sala onde
estava o monstro que falava em meio a trovões, passava correndo. A prima que sabia
manejar o estranho objeto devia parecer-lhe uma espécie de sacerdotisa, e Alice
lhe tinha o maior respeito. Nunca consegui saber como aquela gente, no fim do
mundo conseguia energia elétrica. Uma outra filha nascera cega. Vivia sentada
num canto da sala, mexendo uma coisa que, a minha mãe, parecia ser um colar de contas
grandes. Viveu e morreu na mais completa escuridão. Sua cegueira era solitária,
jamais aprendera nada, o Braile lhes era totalmente desconhecido. Minha mãe
guardava dela a imagem de uma mulher boa e carinhosa. Que terrível vida!
E havia também, o rapaz bonito, que chegara em Porto Alegre
vindo do interior, que se apaixonara por ela, que, aos quatorze anos, já estava
apaixonada pelo primo. Viviam-se os anos vinte. Um dia, ao voltar de um jogo de
futebol, minha mãe, da janela de sua casa, notou que ele lhe parecia abatido e
apoiava-se num guarda-chuva. Esta foi a última imagem que Alice guardou dele.
No dia seguinte, já com evidentes sinais da peste, foi transportado para um
isolamento onde morreu. O ano era 1922, foi em 22 que também morreu Maria e sua
melhor amiga. Aquelas mortes de jovens e crianças me impressionou de tal forma,
que durante muito tempo tive o hábito de olhar nas velhas casas o ano de
construção que muitas ostentam no alto. Ainda há algum tempo, fui a um
restaurante cuja construção datava deste ano. E por incrível que pareça, isto
me impressionou.
Este foi também um ano especial para a arte brasileira, que
se libertava da influência tradicional européia e buscava novas formas. A
Semana de Arte Moderna, fez surgir nomes que marcaram nossa arte, imbuída de
uma brasilidade até então desconhecida. Surgiram nomes como Anita Malfatti, Di
Cavalcanti, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, e também foram conhecidos estrangeiros
como Braque, Picasso e Matisse. Mas enquanto a arte se expandia no Rio de
Janeiro, no Rio Grande do Sul, governado por Borges de Medeiros, o Chimango, e
toda uma equipe que se considerava positivista, sem acreditar em saneamento, em
saúde pública, a peste grassou. Ainda hoje, numa das principais avenidas de
Porto Alegre, há um “Templo” positivista , que data do século 19. Durante anos,
passei diante dele, sempre fechado. Até que um dia encontrei-o aberto e entrei.
Havia um pequeno grupo de homens, que muito gentilmente me falaram do filósofo
Auguste Comte e ainda ficaram mais entusiasmados ao saber que eu havia visitado
o apartamento do filósofo em Paris. Mas se Comte representa alguma coisa dentro
da filosofia francesa, no Brasil, a partir de Júlio de Castilhos, famoso
caudilho gaúcho, foi um desastre.
E para rir havia a história do árabe que se casou com uma
colona, que logo engravidou de gêmeos. Parto difícil, longo com muito
sofrimento da mãe. De repente, toda vizinhança, apavorada, vê o homem subir no
telhado, ajoelhar-se e começar uma ladainha incompreensível, sempre voltado
para o mesmo lado. Naquela Porto Alegre antiga, ninguém poderia supor que fosse
um muçulmano, orando, no ponto mais alto possível, o telhado, voltado para
Meca. E, afinal, a oração deu certo, pois, alguns dias mais tarde, mulher e
marido exibiam orgulhosos os dois pimpolhos.
São tantas as histórias de um tempo que já se foi, e escutei
ao longo de minha vida! Com ela percorri os pampas gaúchos, morei em
Uruguaiana, brinquei com meus primos Deodoro e Alzira. Com elas chorei a morte
de Aracy e Maria. Tive tifo, apaixonei-me pelo primo Felippe . Com elas assisti
à partida de meu marido com as tropas para o Rio de Janeiro e rezei para que
ele voltasse logo. Hoje, passados tantos anos, me pergunto, será que ela me
contava estas histórias e eu as confundia com a história do rádio? Quem sabe,
adormecida, eu não sonhava com elas e as incorporava ao mais profundo da minha
lembrança e da minha sensibilidade?
Mas a vida sempre continua. Já partiram todos os que me
contaram histórias. Todos os que conheceram Maria e Aracy. Não sei para onde, certamente muito longe. E quem
sabe, agora, estejam juntos e relembrem este passado? E morreram também os mais
jovens. Morreu minha prima Marina, seu irmão Alberto, meu primo Renato, o Belo
Brummel, minha prima Lourdes, meu primo Luís Pedro. E morreu meu irmão Sérgio,
minha irmã Teresa. Fiquei eu, talvez porque
ainda tenha alguma missão a cumprir. Não lamento as mortes, elas fazem parte da
vida. E o que me resta, quero viver feliz.
Recordações? Só as boas! Se for possível!
Quero continuar meu Pilates, minhas acrobacias, meu bom
humor, minha vaidade, meu amor à vida. Porque ela vale a pena!!!
2 comentários:
Lindas lembranças!!! Texto muito gostoso de ler!!! Bjsss
Obrigada, amiga. Para mim é um prazer escrever e constatar que meus amigos mais queridos gostaram . Beijocas.
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