Quando me olho no espelho, vejo no meu
rosto marcas inevitáveis do tempo e de minha história. Elas não me trazem
tristeza, nem a angústia de saber , como diz Mário de Andrade, que tenho mais
passado do que futuro e meu cesto de jabuticabas está ficando meio vazio. Além
da saudade dos que se foram, cumprindo seu tempo, uma pontinha de saudosismo
gostoso de uma época que desapareceu. Tempos de brincadeiras já esquecidas no
passado. Naquele tempo, morava numa vila quase exclusivamente de militares. Meus
amiguinhos vinham de lugares diferentes, mas tínhamos em comum a infância
colorida. Nossos pais tratavam a nós, como ao resto da família, como um
regimento de recrutas. Em minha casa só uma pessoa se insurgia, minha avó
materna, Joana, sogra e tia de meu pai, que exigia um tratamento pelo menos de
1º. Tenente. Era a querela das patentes. Meu tio Armando, também militar, usava
do mesmo rigor. E afinal, aquela disciplina nos foi benéfica. A noite,
brincávamos de roda, de esconde-esconde, de chicotinho queimado, de estátua, que
eu sempre perdia, pois jamais consegui parar momentaneamente à ordem: “ estátua”. Aí emburrava e não
queria mais brincar. Em compensação, era a campeã da corda, pulava com até duas
e nunca deixava de levar minha amiga para o colégio. Mas, houvesse o que
houvesse, às oito e meia ou nove horas, não me lembro bem, como um regimento
obediente, voltávamos todos para casa.
E havia também código referente ao
sexo, que devia ser mantido em segredo. Eu devia ter uns cinco ou seis anos. Ouvindo
aqui e ali conversas de minha mãe, não podia compreender como minha Dindinha,
que era jovem, não era “moça” e Alzira, que era velha era “moça”. Curiosa, perguntei
a minha mãe o porquê e ela simplesmente me respondeu: “Porque Dindinha é
casada”. Fiquei ainda mais confusa, sem conseguir estabelecer a relação entre uma
coisa e outra. E falava-se também da mulher que havia se perdido. Eu a
imaginava perdida numa rua escura, sozinha, com medo. E jurei que nunca me
perderia. A mulher que havia se perdido era vítima de uma homem perverso que
lhe fizera “mau”. Um dia vi um homem que diziam haver feito “mau”, a uma moça,
e olhei-o com um misto de medo e respeito. Tudo que envolvia estas histórias
excitava nossa sexualidade nascente. Não nos instruíam acerca de nada e
formávamos idéias escabrosas, que nos amedrontavam e fascinavam acerca da
sexualidade. E havia ainda a história da “mulher livre”, que , evidentemente,
se opõe a “mulher escrava”. Muitos anos depois fui acusada de ser uma “mulher
livre”, e gostei! Nunca suportaria ser escrava! E tantas outras bobagens que
ouvíamos e que só serviam para alimentar nossas fantasias!
Mudou o mundo, mudei eu! Podemos ser
amantes, perdidas, não existe mais o homem que nos tenha feito “mau”, não há a dicotomia
moças /mulheres, somos todas mulheres, com plenos direitos sobre nossa
sexualidade. Foi-se a roda, a corda, o chicotinho queimado, o esconde-esconde.
Chegamos à era cibernética, meus netos ririam se eu lhes contasse todas estas
histórias. Mas, afinal, perdemos ou ganhamos? Drogas rolam soltas, estupros aos
montes, assaltos a todo instante! E a obesidade que atinge até crianças com
colesterol alto! Exercitávamos-nos nas brincadeiras, e assim crescemos mais
saudáveis. Francamente , aquele mundo reacionário não me seduz, mas , como já
disse, aquela pontinha de saudosismo
nunca desaparecerá.
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