E vamos continuar
nosso passeio em Paris sob o 2º. Império.
“Mont-de-Piété”, ou “Ma Tante”.
Havia sido fundado em Paris ainda
no século 17 e atendia o mais vulnerável, desde o pequeno burguês em apuros,
até o miserável. Quase todo pobre, senão todo, recorria a este empréstimo sob
empenho. Ali eram depositados objetos variados, cuidadosamente examinados e
avaliados. Muitos jamais foram resgatados, e iam a leilão. O que fazer se não
havia dinheiro? Podia ser o espaço onde aqueles que haviam descido ao mais
baixo nível iam depositar seus objetos: havia desde relógios até colchões
velhos e deformados, móveis quebrados, roupas íntimas, utensílios de cozinha e
de trabalho. E todo aquele amontoado muito valia para seus proprietários! Muitas
vezes representava tudo o que tinham! Muitos objetos banais, mas também objetos
bizarros. Dentre estes destacava-se um, que voltava freqüentemente: era o
queixo de prata de um ex-combatente, que se desfigurara em alguma batalha.
Estes eram chamados “gueules cassées” – mais ou menos “caras quebradas”. Estava
lá sempre que seu miserável soldo atrasava. Não se sabe se algum dia não pode
pagar e sua queixada foi a leilão!
Atualmente os empréstimos,
regidos pelo Crédit Municipal, estão em alta, o que reflete a crise. Entre 2008
e 2013 , o que o francês chama de “prêt sur gages” mais que dobrou indo de 74
millions a 190 millions de euros. Evidentemente, os objetos empenhados são
diferentes daqueles de outrora.
“Vida” ou “sobrevida”, como
faziam os mais miseráveis? Estes eram chamados “chiffonniers” – “chiffon”
significando trapo, retalho. Catavam pelas ruas tudo que pudessem vender. Eram
os nossos catadores de lixo seco. Chafurdavam no lixo caseiro à procura de
algum objeto que pudessem recolher. Tendo enchido suas sacolas, chiffonniers
retornavam para suas miseráveis habitações numa caminhada de uma , duas horas.
Então, mãos habilidosas, separavam minuciosamente o que fora trazido. Tudo
podia ser reutilizado, transformado. Mechas de cabelos, então sempre longos,
encontradas no meio da sujeira, em chumaços embaraçados, eram cuidadosamente
separadas de acordo com a cor, a textura , o comprimento. Estes fios poderiam
servir para enchimentos dos elaborados penteados.
Apesar dos parques e jardins da
nova Paris, muitos preferiam diversões macabras, como o passeio ao necrotério,
reconstruído e aumentado. Cadáveres anônimos, em geral recuperados do Sena, ali
ficavam expostos pelo menos durante três dias. Assim, o poeta Gérard de Nerval,
que se suicidara, por ali passou dias, nu, os olhos abertos, olhando sem ver. “Diz
o historiador de Paris, Hervé Maneglier, “ Vem-se aqui, como ir-se-ia a um
espetáculo, procurar uma emoção” Tal foi o caso de um corpo encontrado pouco a
pouco: tronco, depois membros, finalmente a cabeça. Descobriu-se que se tratava
de um agricultor, morador dos arredores da cidade. Logo depois outro corpo nas
mesmas condições foi achado, vindo da mesma região. Um trabalho minucioso da
polícia identificou o assassino, que foi preso e condenado à morte.
É a fascinação da morte! O que dizer
então das fogueiras medievais, que serviam de diversão a um público ávido de
sensações sórdidas? Conta o historiador Maurice Druon, na sua obra “Les Rois
Maudits”, o que foi o holocausto dos Cavaleiros da Ordem dos Templários,
ordenada por Philippe Le Bel, no século 14. Havia um imenso público, eram
vendidos confeitos, e as pessoas vinham elegantemente vestidas. Durante a Revolução Francesa, já não era mais o fogo, mas a guilhotina. O povo vinha, assim
como na Idade Média, assistir ao espetáculo. Mulheres traziam tricô e
tagarelavam, enquanto cabeças rolavam e o sangue jorrava. Eram as chamadas
“tricoteuses”. Pois esta atração mórbida persistiu no 2º. Império. A princípio pública, a execução tornou-se quase
secreta, tentando evitar distúrbios anteriores. Mas ainda assim, o público, ao
saber de uma imolação, chegava de madrugada para ver passar o carro que
transportava a guilhotina. E enquanto esperavam, comiam, tomavam vinho, davam
gritinhos de prazer. Até a chegada do condenado, que não viam, mas que
provocava verdadeiro delírio!!!! Mas seriam somente estes homens do passado, ou
somos nós também, no século XXI, que nos deliciamos com a morbidez, o sórdido
sofrimento? Na televisão, programas de grande audiência nos fazem crer que sim.
Mais la vie est belle!!!!!
Uma vez construída uma rede de esgotos na
cidade, sendo parcialmente resolvido o saneamento básico, a vida parisiense
torna-se muito mais prazerosa. Grandes redes de esgoto atravessam a cidade, mas somente os
mais ricos têm água em casa. Na verdade,
o banho com água corrente só surgirá no fim do século 19. As casas de operários
são quase todas privadas do abastecimento do água. Até o fim do século, em
cidades como Rennes e Bordeaux o lixo caseiro é jogado nas ruas assim como o
conteúdo dos urinóis. As fossa sépticas despejadas em camburões abertos. Enfim,
o saneamento básico continuou ainda por muitos e muitos anos um problema
parisiense e francês.
Mas, por outro lado, há tanta
coisa boa! Teatros, cafés-concerts, onde se degusta e se consome música,
teatralizações. Há as lindas operetas de Jacques Offenbach, alemão radicado em
Paris, filho de um cantor de sinagoga, cujo apartamento está assinalado ao lado
da Opéra Garnier. Berlioz oferece ao público uma obra prima: A sinfonia
Fantástica. Considerado o maior ator de todos os tempos, Fréderick Lemaître
extasia platéias. Georges Feydeau diverte o público com seus “vaudevilles”,
comédias rápidas. Félix Nadar inaugura a fotografia de estúdio, tendo fotografado
os mais famosos, como Baudelaire, Victor Hugo, Dumas Filho e muitos outros. “Grands
Magazins” são abertos ao público em geral: Louvre – o 1º. , já desaparecido e
que tive o prazer de freqüentar, La Samaritaine, Le Printemps, Le Bon Marché,
todos estes persistindo até hoje.
E não podemos terminar nosso
passeio pelo Paris de antanho sem Les Halles Centrales, centro de abastecimento
da cidade. Concebida em 1855, ano da Exposição Internacional, que reuniu Reis e
Imperadores. Foi uma construção audaciosa, toda feita de vidro e ferro, que
causou mais sucesso do que os pavilhões rebuscados da Exposição. Ainda existia
quando morava em Paris, mas confesso que não a conheci. De noite lá funcionavam
restaurantes considerados de ótima qualidade.
Meu pai gostava de freqüentá-los à noite, lá tinha feito amizades.
Tomava sempre em um certo restaurante a famosa sopa de cebola. Uma noite, em
conversa com o proprietário, lembrando-o de que era brasileiro, militar, e,
portanto, não poderia concorrer com ele, pediu-lhe a receita. Foi assim que
passamos a saborear em casa uma verdadeira sopa de cebola parisiense. Não sei
que fim levou a receita, mas talvez um dia a encontre. Les Halles foi demolido,
o que foi considerado um verdadeiro vandalismo, em 1971. Dizia-me um antigo
namorado parisiense que interesses especulativos encabeçados pelo então
Presidente Georges Pompidou foram o motivo da
barbárie. Pompidou morreu três anos depois de câncer. Pouco pode
aproveitar do seu butim.
Mas Paris, aquela cidade
fedorenta do século 13, a cidade transbordante do poeta Boileau, a cidade que
recebeu “tant bien que mal” o revolucionário Haussmann, tem na sua longa
história um charme “exquis” nenhuma outra
cidade tem. E Paris será sempre Paris.
Como diz a
canção interpretada por Maurice Chevalier:
“Paris será
toujours Paris,
La plus belle
ville du monde.”
Queira Deus que
continue ..........
3 comentários:
Querida Maria Lúcia, você, como Paris, é imbatível!
Seu texto est toujours simplement délicieux ! :)
Gros bisou!
Amiga, fico feliz pois o que produz a minha mente não morrerá. Eu, como você seremos lembradas pelo que produziu o que está além da matéria. Não há nada que me dê maior alegria do que produzir e agradar.
Bisous
Mais um lindo passeio pela história e pelas ruas da cidade mais ilustre do mundo. Muito bom. Magnifique!
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