Estávamos reunidas, as
professoras aposentadas ( só foi a equipe feminina) do Departamento de Letras
Estrangeiras da UFJF, para comer e beber alguma coisa. Num repentino silêncio
que se estabeleceu, ouvimos uma frase mais ou menos assim:”.....meu pai
vai.....” Não importa qual seja o verbo, mas o tempo presente. Gilda, minha
colega, como eu professora de francês, explode espantada: “ Mas eu pensava que
aqui éramos todas órfãs totais!” Rimos! E esta foi uma verdade que explodiu da
garganta de minha colega.....”órfãs totais” . O tempo havia obrado no seu vôo
rasante, que arrasta, para não sei onde, nossos pais e mães! E continuamos
nosso encontro sem pensar mais naquele momento.
Somente mais tarde, eu, não sei
se mais alguém refletiu sobre a “orfandade total”, que, afinal, faz parte da marcha da vida. Pensei em quantas de nós
haviam perdido irmãos, irmãs, amores, maridos... Muitas eram as histórias, cada
qual com a sua. Eu havia acompanhado os seis anos da lenta agonia de minha mãe,
a súbita morte de meu único irmão, a angústia indescritível de um câncer que se
espalhara pelo corpo de minha única irmã!Meu pai morreu de uma grave
cardiopatia que havia herdado de seu pai, morto aos trinta e três anos. Ele e
seus três irmãos. Mas, se nestas perdas súbitas ou lentas, consegui vencer o
intenso sofrimento , e se consegui continuar a cultivar esperança, a ter Projetos,
é que o desejo de vida foi ainda mais forte. Vida! É o conjunto de fatos, bons
ou maus que se desenrolam ao longo do tempo. E com eles vamos rolando, meio sem
sentir. As coisas vão acontecendo e nós continuamos no nosso Projeto. Diz
Sartre que o homem é um PROJETO , que é por esse Projeto que nos tornamos
humanos. Com meu irmão aprendi o gosto pela leitura, e lhe serei eternamente
grata.Com meu pai o gosto pelo conhecimento.E também lhe serei eternamente
grata.
Tive muitos Projetos, nas diferentes fases de minha vida.
Dos onze aos dezesseis anos, queria ser arqueóloga. Quando morei na França, meu
pai, querendo estimular o desejo de cultura em mim, levou-me sempre a museus,
exposições. Impressionaram-me as culturas antigas. Li sobre a Mesopotâmia,
Grécia, Egito... Há alguns anos encontrei-me com Maria Beltrão, mãe da
jornalista, a maior arqueóloga brasileira e uma das maiores do mundo. Conheci-a
através de meu ex-companheiro, Ricardo. Contei-lhe este meu sonho longínquo,
estimulou-me a ler sempre sobre o assunto, o que faço regularmente. E mandou-me
de presente sua Tese de Doutorado feita em Paris, sob a orientação do grande
Claude Lévi-Strauss. Que orgulho, que alegria!
Mas, por motivos alheios à minha
vontade, tive que renunciar a este Projeto, pensei em tornar-me advogada.
Renunciei. Pareceu-me uma carreira tediosa. E, afinal, eu falava francês desde
a infância. Foi assim que, desde os 17 anos, comecei minhas primeiras aulas
para meus colegas. Cheia de medo, não fazia a menor idéia de como se ensinava
uma língua estrangeira!E fui indo; Faculdade, colégios particulares, concurso
...E virei professora de uma Universidade. E como professora tive sempre o Projeto
de ser cada vez melhor. Ganhei bolsas, durante anos fui anualmente à França. A
vida pulsa, uma força me empurra. Sem ser crente, sem ir à missa, sem acreditar
em milagres, não tendo certeza de vida após a morte, sei que há em mim uma
força vital. Relembrando John Lennon, lembro-me da usina de força que é Deus.
Dois anos depois de meu concurso,
fui fazer o Mestrado de Lingüística em
Porto Alegre. Encontrei-me com uma prima vinda de Floripa. Com o namorado, ela
faria o Mestrado em Planejamento Urbano. Éramos da mesma idade. Este foi um
período especial em minha vida. Troquei muitas vezes de namorado, discuti
política (eu era da extrema esquerda e vivíamos sob a ditadura), dancei até de
manhã, e estudei de segunda a sexta das sete da manhã às cinco horas da tarde. Tinha o fôlego dos meus vinte e poucos anos. Um de meus
namorados, morto há muitos anos em um desastre, buscava-me em casa às
sextas feiras. Dançávamos até o
amanhecer. Meus heróis eram paradoxais, indo dos Bee Gee, Beatles, Elvis,
passando por Fidel, Che Guevara, e até aqueles feiosos da União Soviética.
Acreditava que poderíamos mudar o mundo! Eu era jovem, fazia sucesso com os
homens, ia bem no meu Mestrado, fora escolhida por um professor, vindo da
Universidade de Colônia na Alemanha, como sua orientanda! Enfim , o mundo era
praticamente meu! As dores, perdas, angústias, noites em claro em hospitais,
eram inimagináveis! Que bom!
Mas , anos mais tarde, quando
elas foram chegando, pouco a pouco, fui encontrando esta usina de força, que é
meu Deus. Sinto saudades dos que partiram! Sinto saudades dos meus sonhos, mas
fico feliz de tê-los tido! Hoje, depois de tantas horas sofridas, sinto-me mais
forte. Às vezes, tenho a nítida impressão de que minha mãe está aqui, em minha
casa, onde moro sozinha com meus dois cachorros. Muitas vezes tenho vontade
imensa de conversar com minha irmã, mas ela não está mais aqui. Saudades!
Grandes! Mas, neste terceiro ato da vida, há em mim uma força vital tão grande
que só posso acreditar que venha de Deus. Para mim, ele nos dá esta força e a liberdade
de fazermos com ela o que quisermos.
7 comentários:
Tenho a alegria de conhecê-la desde os nossos tempos de professora da UFJF, Maria Lúcia, e posso dizer-lhe que você está mais certa do que nunca!
Somos todos um pensamento da mente de Deus!
Obrigada, amiga. Temos dias de sol e dias de chuva, mas esta força sempre nos acompanha.
Beijos.
Que texto lindo repleto de carga de sensibilidade e verdade. Sua escrita nos envolve com a mesma força que você mostra conduzir na realização de seus projetos. E assim vamos vivendo.
Que depoimento lindo!
Tenho uma lembrança pra te dizer: se as pessoas desaparecessem realmente de nós, se tudo se acabasse com a morte, não sonharíamos.
O sonho é uma maneira que Deus encontrou de nos levar onde se encontram nossos amados, ou faze-los vir até nós.
Os seres humanos nos debatemos vida afora, e tudo se encaminha para a eternidade. Que seria de nós sem a noção da eternidade?
Obrigada, amigos. Sinto-me honrada e muito feliz!!!
Beijos a todos
Uma beleza de texto. Me deu saudades de meu pai e de meus amigos que já se foram, mas com a certeza de que ainda existem... A saudade não acaba. Mas, refletindo bastante no depoimento de Oliver Sacks, enquanto vivendo, vamos aprofundar nossas amizades, aumentar o nível de compreensão, viajar, escrever... Enfim, nunca é tarde. E com a certeza de que, sim, há uma Força, um Deus acima de nós.
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