Foi há muitos anos atrás, comemorava-se o bicentenário da
Revolução Francesa. Eu havia ganhado uma bolsa por causa de um trabalho
teatral, que desenvolvia com meus alunos. Era o “Théâtre Gavroche”. Gavroche é um
moleque, personagem de “Os Miseráveis” de Victor Hugo, que morre durante a
Revolução de 1830. O título me foi sugerido por minha sobrinha Ludmila, que se
formava em francês, e havia terminado de ler o livro. Recebi a bolsa do Adido
Cultural da França, Jean-Paul Rebaud, que se interessou pelo trabalho que eu desenvolvia.
Incluía ida e volta, em avião da Air-France e ainda uma quantia em dólares.
Saí, deixando para trás muita coisa. Um ano após a morte de
meu pai, minha mãe havia tornado-se cadeirante, depois de fraturar o fêmur de
uma das pernas, e desenvolver uma depressão terrível. Negava-se a caminhar. Como eu já trouxera meu pai para minha casa
durante a sua fatal cardiopatia, Alice continuou comigo. Necessitava de
cuidados permanentes, com um esquadrão de cuidadoras. Médicos, de todas as
especialidades, estavam sempre por aqui. Tomava um mundo de remédios, dos quais
eu me incumbia, mesmo trabalhando o dia inteiro. Vivia correndo de um lado para
outro, subindo e descendo, da Universidade até em casa, de casa até a Universidade.
Até hoje, depois de vinte e três anos de sua morte, ainda me persegue a
sensação de estar atrasada, de não conseguir fazer tudo que tenho a fazer.
Teresa, minha irmã, ficou incumbida de ministrar os remédios e supervisionar as
cuidadoras. Era um batalhão de medicamentos, com hora certa. Fiz uma lista
detalhada, batida a máquina, com os horários e cores diferentes. Inventamos um
processo mnemônico, para que nada faltasse ou atrasasse. Espalhei em lugares
estratégicos da casa. Teresa tinha sempre o seu na bolsa. À noite, meu
sobrinho, Bertrand, vinha “dormir” aqui. Alice o chamava a noite toda, como
fazia muitas vezes comigo. Para ajudá-lo, vinha minha amiga, Sônia Miranda, a
quem serei eternamente grata. Nesta batalha de toda preparação, esqueci de
comprar uma mala nova – a minha tinha as duas fechaduras estragadas – esqueci
até de comer, e, enfraquecida, tive uma terrível laringite.
Antes de partir para a França, eu teria de ir a Belo
Horizonte, onde se comemorava a Inconfidência Mineira, e eu devia apresentar
meu trabalho com o teatro. Deixei minha mala aqui, e só levei o
necessário. Separei as roupas que
deveria levar para a França e pedi a Teresa que fizesse minha mala na véspera.
Foi então que ela constatou que as fechaduras funcionavam precariamente.
Desespero, telefonema para mim com uma bela descompostura. Em Belo Horizonte, apesar
da minha laringite, tudo correu bem e, afinal, embarquei em Confins, em direção
ao Rio, para tomar o avião para Paris. Encontrei minha irmã ainda emburrada,
com a mala toda amarrada, já que não tivera tempo de comprar outra. Mas, contei
com a sorte.
Minha chegada a Paris foi um desastre, a mala abriu –
felizmente não foi durante a viagem – e esparramou roupa pelo chão do aeroporto,
era como um ventre aberto expondo suas vísceras. Não havia outra coisa a fazer;
agachei-me e comecei a catar, tentando fechá-la. Logo surgiram algumas pessoas
que me ajudavam, enquanto eu dizia automaticamente: “Merci” , “Merci”, “Merci”.
Amarrei-a de qualquer jeito e prossegui. Bem numa outra ocasião conto o resto
desta aventura em Paris, que merece ser contada. No dia seguinte, segui para a
Bretanha, para um Centro de Estudos perto de Saint-Nazaire. E quase perdi o
trem, que saia às nove horas e sete minutos EXATOS.
A viagem foi extremamente agradável, apesar de minha
garganta ainda doer. Em minha cabine havia um só passageiro, um operário que ia
passar férias no campo, na Bretanha. Era um homem simples, já entrado nos anos,
que usava uma espécie de casquete. Contei-lhe que era brasileira, e ele
olhou-me espantado. Pensava que fosse italiana. Já ouvira falar vagamente do
Brasil... Compartilhou comigo seu lanche constituído de uma baguette, queijo e
vinho, que bebemos na mesma garrafa. Escrevi numa folha de papel meu nome e
endereço e lembro-me que, já no Brasil, recebi um cartão seu. Havia xerografado
o que lhe deixei escrito e colado no envelope. Respondi, mandando um cartão da
Avenida Atlântica. Depois não tive mais notícias. Ainda tenho guardado seu
endereço, uma recordação pela qual tenho muito carinho. Desceu antes de mim e
foi aproveitar suas férias de verão.
Durante aquele agradável trajeto, que deve ter durado umas
duas horas, esqueci-me da mala. Mas, chegando ao meu destino, a lembrança voltou-me,
tragicamente, à memória, pois já havia sofrido, em Paris, por todo lugar onde passei
com ela. Em Saint-Nazaire, a estação era pequena, quase vazia. Ao descer uma
escada – nada de escada rolante -, justo aquela mala despencou e se abriu
novamente. Imaginei como ficaria Teresa se visse a cena. Mas, no interior da
França, tudo é diferente! Logo encontrei um senhor que me ajudou gentilmente a
catar roupas e sapatos, que eu me lembre pela terceira vez desde que desci na
França. E ainda procurou um taxi para mim. “Merci, monsieur.” E qualquer coisa
a mais, de que não me lembro, mas que poderia ser “J´ai bien envie de vous
embrasser”
E atravessando lindos campos cheios de girassóis, chegamos
ao Centro de Estudos “Belc” que não me lembro mais o que significa. Eu ainda
tinha dois problemas: a mala e a garganta. Naquela correria toda havia
esquecido as duas. Entrei no prédio principal conforme me indicou o taxista...
E foi lá, na França profunda, que passei alguns dos mais belos dias de minha
vida. Fiquei curada da laringite e esqueci a mala. E também de toda angústia
que havia deixado no Brasil. Nos diversos cursos, que tínhamos a escolher,
quase todos os professores eram franceses, os alunos vinham do mundo inteiro.
Logo no primeiro dia, fomos passear até Saint-Marc-sur-mer, uma
cidadezinha linda, como são todas aquelas do interior da França. Íamos falando
em francês, cada qual com seu sotaque (e sem falsa modéstia, acho que a melhor
pronúncia era a minha). Descobri que éramos um grupo formado por um espanhol,
uma finlandesa, e uma búlgara. A finlandesa já havia vindo ao Brasil, e tinha
uma camiseta com um papagaio. Já eu, nunca havia visto uma finlandesa. Mas, o
maior espanto tive com a búlgara, ela jamais vira uma brasileira, e eu jamais
vira uma búlgara. Desse espanto nasceu uma linda amizade.
Passávamos a manhã, a tarde e a
noite em cursos e ateliers. Aos sábados e domingos tínhamos folga, íamos à
praia em Saint-Marc, nadávamos, tomávamos sorvete Voltávamos encharcados. À
noite, íamos à “caféteria”, onde dançávamos, inclusive uma fita de Gal Costa,
que encantou a todos. Foi numa dessas ocasiões que conheci Guy Boucher,
francês, professor na Bulgária. E tive que fazer grande esforço para não me
apaixonar, o que sei foi recíproco. Tenho fotos suas que me fazem recordar, com
imenso carinho, o homem mais gentil que conheci em minha vida. Mas tínhamos caminhos
tão diferentes! Às vezes gazeteávamos, e foi assim que Guy me levou a Guérande,
uma cidade medieval, onde íamos, freqüentemente, comer deliciosos crepes,
especialidade da região. Foi neste período que comecei a me desencantar de
minhas ilusões comunistas, típicas da juventude. Ao ver a pobreza de Svetla, ao
vê-la sempre supervionada por Margueritta, esposa de um coronel, ao perceber
seu medo. Propus-lhe dar de presente a fita cassette de Gal Costa, e, para meu
espanto, ela recusou apavorada. Não entendi, e foi Guy quem me explicou: Ela
teria sérios problemas com a polícia, já que sem entender nada, diriam que era
propaganda anticomunista!
E também teve a festa a fantasia.
Conforme me havia sido informado, desde o Brasil, eu deveria levar uma fantasia.
E não tinha nada, a não ser as velhas fantasias, de húngara, cigana, colombina,
dominó, etc, que minha mãe me vestia quando eu tinha 4 ou 5 anos, nem sei mais,
e que ainda tenho guardadas como recordação. Minha amiga, Marlene, emprestou-me
uma linda de sua filha Lilian. E foi assim, coberta de lantejoulas coloridas, com
as pernas a mostra, cobertas somente por uma meia arrastão vermelha, e um magnífico
adereço de plumas, que me apresentei, entre fantasias de televisão, Papai Noel,
e de alguma coisa que até hoje não descobri o que seja. Mas, afinal, sou brasileira! Em mim corre
sangue português, negro, alemão, índio, cobra d´água, curupira, etc. Ninguém
pode competir conosco. Sucesso total! Despertei paixões. Quiseram comprar minha
fantasia, que nem era minha!
Mas como tudo na vida tem um fim,
depois de um mês delicioso, mas de intenso trabalho, nos despedimos, sabendo
que nunca mais voltaríamos a nos ver. Senti um aperto no coração. Mas ainda
comprei uma mala nova em Saint-Nazaire e deixei a velha no alojamento. UFA! Passei
ainda uns dez dias em Paris. Fui ao cinema, andei pelas ruas de minha infância,
mas sentia saudades daqueles trinta dias. Anos depois voltei a
Saint-Marc-sur-mer, o Centro de Estudos estava vazio. A cidade não tinha mais o
encanto de outrora. Aos domingos, a feira, que tanto curtíamos, me pareceu sem
graça. Mas as fotos me que passei para disquete, me fazem sempre lembrar aquele
momento mágico, único em minha vida.
E
ÚNICO porque foi MÁGICO!