Autos-de-fé, praticados abundantemente
nas trevas da Idade Média e do Nazismo, constituíam na queima de livros
considerados hereges, infiéis ou não-arianos. Nestas trevas, em geral, o autor,
e qualquer pessoa a ele ligada, era
igualmente queimado ou mais “modernamente” enviado às “câmaras de gás”. Hoje
quando vejo um ser humano ser queimado vivo, degolado, afogado encerrado em
jaulas. Quando vejo crianças aprendendo
a ser carrascos. Quando vejo monumentos de nosso mais remoto passado ser
destruídos, penso que ainda temos muita treva. E temo sinceramente que ela se
espalhe pelo mundo.
Mas no século XVIII, apesar da falta
de higiene, dos desdentados e das perucas imundas, que encobriam carecas
igualmente imundas, os carrascos dos livros procuravam prestar “homenagem à
força da palavra impressa”. Queimava-se o mínimo possível, sendo mais uma
demonstração pública de que a lei estava sendo cumprida. É assim que começa a
magnífica obra do historiador norte-americano, Robert Darnton, cujo título
copiei para meu artigo. Li-o, quase de uma só vez, há alguns anos, e procurarei
colocar aqui o que me parece ser mais interessante e ilustrativo do “século das
luzes”. Enquanto queimavam-se alguns exemplares, leitores ávidos liam o que de
melhor se publicava de ilegal. E falar em legal e ilegal, lícito e ilícito, é
preciso notar que a fronteira existente entre os dois tornou-se difícil de
distinguir, já que as próprias autoridades encarregadas desta função procuravam
camuflar o que era ser um ou outro. Ser subversivo incluía três critérios,
igualmente “flous”: solapar a autoridade do Rei, atacar a Igreja, ferir a
moralidade convencional. E dentro destes três princípios havia uma gama
complicada de nuances, indo do “muito” ao “moderadamente”. Os que atacavam a
moral convencional poderiam voltar às mãos do livreiro ou mandá-lo para a
Bastilha. Nesta intrincada “classificação”, encontravam-se lado a lado “O
Contrato Social” de Rousseau ou a Enciclopédia, coordenada pelo filósofo e
matemático D`Alembert e o igualmente
genial Diderot, e livros pornográficos ou de nenhum interesse. A fonte que
melhor se presta para estudo da terminologia do setor livreiro são os
documentos STN, “Société Typographique de Neuchâtel”, grande editora atacadista
sediada no principado de Neutachâtel, na fronteira entre a França e a Suíça.” Foi
através desta grande editora que leitores menos aquinhoados puderam ter acesso
a uma literatura “lícita” ou “ilícita”. Com preços reduzidos, edições simples,
em menores proporções, puderam os franceses ler o que havia de mais novo e
profícuo. Através dos documentos da STN, pode-se perceber claramente todas as
dificuldades enfrentadas por problemas de comunicação, por estradas em péssimas
condições e pela complicada classificação das obras. ““Filosofia” indicava
perigo.” E uma escolha típica abarcava desde a pornografia até a Filosofia como
a entendemos.
E dentre esta profusão de criações
literárias “filosóficas” , quais os livros mais procurados nesta França
pré-revolucionária ? E o que eles puderam influenciar no movimento
revolucionário que abalou não só a França, mas todo o mundo civilizado de
então? A primeira dificuldade é identificar como um leitor de há duzentos anos
leria uma obra ou outra. O mundo de valores era então diferente do nosso! E são
estes que dirigem nosso olhar à direita ou à esquerda, de um lado ou de outro. Este aspecto fica além de nosso
alcance. O que está a nosso alcance é tentar compreender as diferentes
referências deste mundo, o contexto em que se desenvolveram, e imaginar como
puderam atuar na mente dos leitores. A literatura obscena existe desde a
Antiguidade. E o que nos parece obsceno hoje não pareceria a um grego, de cuja
formação, inclusive intelectual, fazia parte a relação com outro homem mais
velho. Por esta função pedagógica surgiu a palavra pederastia, cujo sufixo” ped-
“ é o mesmo de pedagogo. Logo a homofobia não era cogitada na Grécia, assim
como um tipo de prostituição formada por mulheres cultas, que serviam
sexualmente e intelectualmente, chamadas de “heteras”. Consta que Aspásia,
amante do grande Péricles, havia sido uma “hetera”. Logo, valores mudam com o
passar do tempo e hoje mesmo vemos rápidas mudanças.
O escritor Restif de la Bretonne
cunhou o termo “pornographe” numa obra de 1769, em que...” defendia um sistema
de prostituição legal, controlado pelo Estado.”Após o refinado “La princesse de
Clèves”, escrito por Madame de Lafayette, de 1678, a começou , ainda no século
XVII, um processo que culminaria, já no século XVIII , com o mais lido romance
pornográfico, “ Thérèse philosophe”, provavelmente escrito em 1748, por
Jean-Baptiste Boyer. A obra pode figurar ao lado de “ Les bijoux indiscrets” e
“Lettres sur les aveugles” de Diderot, que o levou à prisão em Vincennes.
“Thérèse philosophe” é ao mesmo tempo filosofia e erotismo. “Na verdade, o
combustível da dupla explosão provinha da mesma fonte: a libertinagem, uma
mistura de livre-pensamento e vida livre, que desafiava tanto as doutrinas
religiosas quanto os valores morais.” Em “Thérèse philosophe” entremeiam-se orgias e
discussões metafísicas. Baseado em fato real, mas que no livro assume dimensões
dantescas e hiláriantes, Thérèse assiste ao estupro de uma jovem por um padre
que a convence que é penetrada pelo cordão endurecido que São Francisco usava
no hábito. A dimensão filosófica é a expressão da dicotomia razão e carne,
espírito ( no sentido intelectual) e desejo carnal. A linguagem, tratando-se de
um livro “pornográfico”, procura evitar um vocabulário chulo, a não ser em
histórias como a do padre e da devota.
Mas, dentre tantos livros
eróticos/pornográficos não poderia faltar a história de Madame du Barry, a
última favorita de Luís XV. “ Anecdotes sur Mme la comtesse du Barry” fez
enorme sucesso, pois é divertido, bem escrito e mostra a pobreza vencendo pela
astúcia uma corte podre. Não se trata de uma obra escrita num volume, mas de
panfletos que circularam abertamente pela França. Jeanne Bécu, nasceu nas
camadas mais populares da sociedade, mas sua beleza a faz exemplar. Já tendo
morrido, há muitos anos, a rainha da França, e também a célebre favorita de
Luís XV, Madame de Pompadour, o velho rei lascivo, se entrega à mais absoluta
libertinagem. Normalmente, no caso de morte da Rainha, caberia às três filhas
do Rei, chamadas “Mesdames”, o papel de Soberanas. No entanto, segundo conta
Stephan Zweig em sua biografia de Maria Antonieta, tratava-se de três velhas
carolas, sem nenhum interesse às quais o Rei não dava nenhuma satisfação.
Tampouco os cortesãos. E o velho Luís XV
tem seu alcoviteiro, um certo Le Bel, encarregado de encontrar jovens bonitas,
que sirvam à libido insaciável do rei e são , bem remuneradas, despachadas pela
manhã. É então que entra em cena Jeanne Bécu, muito jovem, fresca e belíssima. E
Jeanne não fica só uma noite. Arrumam-lhe um marido com título de nobreza,
conde du Barry, imediatamente despachado, um apartamento com passagem direta
para os compartimentos reais e “Madame la contesse du Barry”, passa a reinar,
apesar do ódio das velhas carolas, da corte, e posteriormente de Maria
Antonieta, de quinze anos, manobrada por “Mesdames”. Dominado por seus segredos
de alcova, Luís XV passa-lhe um poder irrestrito. À sua volta orbitam
cortesãos, embaixadores de todos os soberanos, reis e príncipes. Sua trajetória,
desde as prováveis ruas e bordéis até a corte, daria um romance diz Stephan
Zweig.
Mas , afinal, tudo tem seu fim, e
também o reinado da “du Barry”. Certo dia do ano de 1774, durante uma caçada, o
rei sente-se mal, uma terrível dor de cabeça o acomete. Levado à Versailles,
cercado dos melhores médicos, pouco a pouco, o soberano francês é diagnosticado
com a terrível varíola. É verdade que durante séculos a doença havia matado ou
marcado indelevelmente muitas e muitas gerações. Os pais preferiam que seus
filhos tivessem a doença em criança, já que ela vinha mais branda. Luís XV já
tivera a sua e esta reincidência surpreendeu, assim como a força com que o
atingiu. Em poucos dias, seu corpo cobriu-se de chagas que cheiravam a
decomposição. O grande Luís XV retomou sua condição de simples humano.
Apavorados com a possibilidade de contágio e o odor pútrido, cortesãos se
afastaram. Coube então à “Mesdames”, durante o dia, e à “du Barry” à noite guardar
seu corpo decomposto. Com medo do Inferno, Luís quis confessar-se, mas os
padres fugiam ao se defrontar com o odor e a imagem. Foi o Arcebispo de Paris
quem lhe fez a última confissão, que exigiu ser pública, com a corte
acotovelando-se nas portas. Poucas horas depois o rei deu seu último suspiro.
La Contesse du Barry, partiu para uma
residência particular. Durante a revolução, foi utilizada como pombo-correio
entre nobres na França e exilados na Inglaterra. Denunciada, foi presa e
condenada à morte. Conta-se que se desesperou na hora da execução, tendo que
ser arrastada, denunciando pessoas e tentando até mesmo subornar o carrasco com
suas jóias. Por fim, disse em voz quase inaudível: “ S´il vous plaît ,
Monsieur, seul un petit moment.” Tinha cinqüenta anos.
Discorri mais longamente sobre a
história da “du Barry” pois ela ilustra bem o que era a corte francesa. É
verdade que há muito mais coisas a dizer sobre estes escritos proibidos e não
se pode saber o quanto influenciaram a Revolução Francesa. Desde criança, aos
dez anos, na França, apaixonei-me por este movimento que mudou os caminhos do
mundo. Já fui monarquista e chorei ao ler a descrição da execução de Maria
Antonieta. Também já fui esquerdista radical e considerei meus heróis todos os
Jacobinos. Li imensamente sobre este fato histórico sem paralelo. Hoje, com
tudo que li, tendo vivido tantos e tantos anos, tenho uma visão mais moderada,
que não vou expor, porque, afinal este não é o assunto.
Um comentário:
Parabéns, Maria Lúcia, por esta crônica intensamente rica de informações!
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