Minha
mãe morreu num dia vinte e seis de fevereiro, há muitos anos. Já havíamos sido
advertidos de que seu tempo seria curto. Durante seis anos, eu lutara contra
seu desgosto pela vida. Ela havia fraturado o fêmur e, depois disso, nunca mais
andou. Negava-se a caminhar, negava-se a viver. Foram anos de sofrimento,
sobretudo para nós duas, já que o resto da família podia viver sua própria
vida. E tive força para lutar, para não sucumbir. Esperava que algum dia, quem
sabe, ela voltasse a viver. Mas sua perda era irremediável, ela perdera seu
amor, e nada mais a interessava. A mãe que eu conhecera toda minha vida, que me
ninara na velha cadeira de balanço, ouvindo novelas no rádio, que me contara
histórias de sua infância, que arrancara com um fio de linha cada um dos meus
dentes de leite, que guardo até hoje, que me consolava quando eu caia e me
machucava, que chorara o dia eu em que parti para completar meus estudos, esta
mãe morrera já seis anos antes que seu coração parasse.
Mas esta força divina, que vem para aquele que sabe
enxergá-la, iluminou meu caminho e me fez levantar a cabeça. Foi esta força,
que está no mistério da vida e da morte, no sol que brilha e nos ilumina, e que
meus cachorrinhos procuram para se aquecer. Esta força que eles sentem, e que
muitos pobres seres humanos não enxergam. Foi ela que eu senti a cada manhã,
tendo dormido ou não. E levei até o fim minha missão.
No dia
em que minha mãe morreu, levei-a de carro, agonizante, sentada a meu lado, para
o hospital, sabendo que era o fim. Cheguei buzinando. Levaram-na,
imediatamente, não sei para onde. Mas antes que a levassem tirei a aliança de seu
dedo. A aliança que meu pai colocara na sua mão direita aos 14 anos, e que me acompanha
cada dia de minha vida. Minha irmã e eu ficamos esperando, sabendo o que
aconteceria ou já acontecera. E quando saí do hospital, depois da notícia
fatal, olhei para o céu e vi, em meio às minhas lágrimas, montinhos de nuvens
que se acumulavam como criancinhas que brincavam. Lembrei-me da história que ela
sempre me contava das sucessivas Corálias, sempre vestidas de branco e que
morriam ainda criancinhas. Isto se passara na sua adolescência. Tomada por uma
convicção divina, senti que Deus me enviava uma mensagem. Quem sabe eram elas
que haviam vindo buscá-la?
Depois
a funerária, mas ainda há pouco ela estava viva! Ou era só impressão? Voltei
para casa, exausta. Na sala escura e silenciosa, senti meu corpo dobrar e orei,
orei para Aquele que eu sabia estar ali. Sai na sacada e senti a vida penetrar
em mim. Eu havia, naqueles anos de sofrimento, aprendido a enxergar Deus. Fui
acendendo as luzes, e entrei em seu quarto. Sentei-me na poltrona onde a
colocávamos tantas vezes. A almofadinha para os pés ainda estava lá. Fechei os
olhos e mil lembranças me vieram à mente. Era como se um carrossel de meu
passado mais distante girasse dentro de minha cabeça exausta. Ruas mal iluminadas
onde as crianças brincavam, festas juninas ainda na minha primeira infância, o
dia em que cortei o queixo e as Vicentinas que deslizavam pelos corredores, com
aqueles enormes chapéus. De repente, abri os olhos e vi, sobre a mesinha, os
seus remédios que eu sempre deixava separados, dentro de um potinho. Lágrimas
desceram por meu rosto. Mas estava em paz. Resolvi tomar um banho e deixei a
água deslizar sobre minha cabeça e meu corpo. Água, vida! Respirei fundo, eu
havia compreendido! Como a água que refrescara meu corpo, senti que havia uma
secura interna. Estava sedenta. Depois, peguei o telefone para avisar alguns
amigos e parentes em Porto Alegre.
E
ainda teria o velório! Com gente amiga ou não. Eu teria que ver seu corpo morto,
inerte, suas belas mãos, que tantas coisas lindas haviam criado, cruzadas sobre
o peito. Beijaria seu rosto gelado. E ainda faltava avisar meu irmão! Não me
lembro mais como fiz. Lembro-me que o levei de carro ao cemitério. Ele não
chorava, mas eu sabia o quanto sofria. Minha amiga, Many, chegou logo depois e
levou-me para descansar um pouco num quarto. Eu estava profundamente triste!
Mas havia algo dentro de mim que me assegurava de que ela, finalmente, estava
feliz. De repente uma enorme barata na parede, quase me tocando, me fez dar um
pulo e voltar para a sala.
Então,
resolvi ir em casa, precisava pegar alguns documentos. Já começava a amanhecer.
Many, amiga das boas e más horas, preparou-me um prato de mingau que engoli
automaticamente. Olhei o sol que começava
a despontar e senti bem dentro de mim que toda aquela beleza do amanhecer era
uma prova da existência de Deus, assim como a lua que iluminara minha triste
noite. Toda aquela beleza me assegurava que tudo vinha Dele. Eu sabia!
Hoje
passados tantos anos repito Fernando Pessoa “Dá-me alma para te servir e alma
para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra.” E foi o que
senti, ao vê-la morta, fria e inerte naquele caixão. Eu o sentia, e aquele céu resplandecente
parecia um sinal. Vi minha amiga Sônia sentada num dos bancos do jardim ao lado
de meu irmão, segurando-lhe carinhosamente a mão. Ficaram ali muito tempo, até
que meu pobre irmão, que eu perderia um ano e meio mais tarde, tivesse coragem
de ver a mãe morta.
Alice
foi enterrada à tarde, quando o sol se punha atrás das montanhas, meu coração
pulava dentro de meu peito, não quis prosseguir. Ali, nossos caminhos se
separavam. Mãe, teu encontro comigo terminou, como tudo termina na vida. E, parodiando
Fernando Pessoa, dá-lhe que sua alma possa aparecer diante de ti como um filho
que volta ao lar. Mãe, o solo que serve
de leito aos teus despojos e de todos aqueles que amei e perdi, jamais é
visitado por mim. Onde tu estás, e todos os outros, não é a terra seca e árida.
Tua morada está além de mim e de todos os que irão depois. A morada de minhas
cinzas, consumidas pela cremação, será o caminho do vento de um lugar alto que
quase alcance o céu. De lá, verei toda tua obra, Senhor, e poderei enxergar
melhor do que jamais pude toda tua beleza.
“Senhor,
protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim” Tempo de dizer adeus
8 comentários:
Lindo, amiga. De uma profundidade, de uma beleza, de uma generosidade tocantes. Que belo texto, que linda alma. Que sorte Deus tê-la colocado no meu caminho. Um abraço afetuoso, um beijo carinhoso.
Obrigada, amiga querida. Escrevi-o com minha alma e minha emoção. O sofrimento nos ensina a descobrir Deus. Beijos.
Um texto comovente, lindo! Seu coração pulsa em cada palavra! Fiquei muito emocionada, com vontade de chorar. Conheci a meiga Dona Alice! Ela agora está em paz, na luz de Deus! Beijos
Para mim escrever foi doloroso
Lembrei me de todo aquele sofrimento de 6 anos. Mas sei que ela está feliz ao lado de seu amor.
Beijos
Para mim escrever foi doloroso
Lembrei me de todo aquele sofrimento de 6 anos. Mas sei que ela está feliz ao lado de seu amor.
Beijos
Para mim escrever foi doloroso
Lembrei me de todo aquele sofrimento de 6 anos. Mas sei que ela está feliz ao lado de seu amor.
Beijos
Emocionante e emocionado relato de vida! Estou com lágrimas nos olhos...
Obrigada , amiga . Digo que foi escrito com o coração.
Postar um comentário