Os atos da
vida
Imagine
a vida como o teatro. Neste teatro cada um representa um papel. Escolhemos o
que queremos, já que para isto temos o livre arbítrio ou, como diz Sartre,
somos condenados à liberdade. E não podemos culpar ninguém por nossas escolhas,
elas são nossas e de mais ninguém. Quando crianças, vivemos o primeiro ato, e aí
somos preferencialmente coadjuvantes. Mas já começamos a escolher e tentar
abrir caminho. No segundo ato, somos adolescentes e nossas escolhas já começam
a refletir o que queremos. Na juventude, já nos tornamos adultos. Devemos saber
o que queremos e sabemos que nossas escolhas são aquelas que nos permitirão
chegar ao terceiro e derradeiro ato. E não há quarto.
Há
alguns dias, uma amiga mandou-me uma foto que me remeteu ao passado. Tirada há mais de cinqüenta ou sessenta anos,
mostra, reunidos, na porta principal do colégio onde estudei, velhos rostos. Já
havia esquecido aquelas pessoas. Ou pensava que havia esquecido, porque ao revê-las
ali, olhando-me fixamente, senti um aperto no coração. Uma saudade.
E
assim, comecei a relembrar o meu passado. Minha mais remota lembrança, está
fixada em uma foto. Foi num remoto dia de minha vida, em que estava sentava
numa espreguiçadeira, numa varanda que havia nos fundos de minha casa, no colo
de meu pai. Eu ainda era um bebê. De repente, ele sumiu, vi-me sozinha, e
comecei a gritar. Escondido, ele tomou a foto.
Guardo-a até hoje. Quando conto, muitas pessoas não acreditam, mas não
me importo. Tenho certeza. Alguns meses depois, eu já andava, cadeiras haviam
sido postas numa passagem externa da casa onde nasci, faziam faxina. Peguei a
tampa de uma panela corri e, feliz, comecei a bater no assento de uma
cadeira. E há meu aniversário, de quatro
anos. Lembro-me de minha mãe me vestindo
e penteando meus cabelos e me dizendo carinhosamente alguma coisa. Lembro e
quase revivo este momento. Tenho duas
fotos minhas, neste dia inesquecível, sobre um móvel em minha sala. E o filme,
onde apareço brincando com crianças que não sei mais por onde andam, nem se
estão vivas. E a festa com um “lindo” bolo feito por minha irmã, Teresa, eu de
pé sobre uma cadeira, observando cada uma das crianças antes de assoprar as
velinhas. E alguns anos depois, no velho cinema Glória, no colo aconchegante de
minha mãe, que não perdia um filme mexicano. Naquele tempo as crianças iam ao
cinema à noite, para dormir. E quando minha mãe me ninava, ouvindo as novelas
e contando-me histórias de sua infância.
Lembro-me de minha oração, de camisolinha, ajoelhada na cama, recitando com
minha mãe – sempre ela- “Com Deus me deito, com Deus me levanto. Com a graça de
Deus e do Espírito Santo. Menino Jesus na beira, São José no canto. Que a
Virgem Maria me cubra com seu divino manto.” E aí eu desfiava um rosário de
nomes queridos : “ Deus abençoe a mamãe, o papai, a vovó, ....” E o dia em que
vendo meus irmãos, bem mais velhos do que eu ( Teresa onze anos e Sergio quatorze
anos) indo para o colégio, coloquei uma capinha de neném – que se usava naquele
tempo – peguei um merendeira velha e fui esperar o ônibus. O mais incrível é
que cheguei a subir, sendo salva por uma vizinha que veio correndo e me pegou
no colo. Eu devia ter menos de quatro
anos, pois mudei-me desta casa com esta idade.
Já
com cinco anos, lembro-me de minha manha, me jogando no chão , quando uma
empregadinha não pode comprar pipoca para mim. Chamava-se Lurdes, e morreu logo
depois, tísica. Minha avó estava muito doente e minha mãe não observava que
Lurdes não estava bem. Até que uma vizinha a alertou. Tinha dezoito anos. E do
dia em que minha avó morreu. Minha mãe havia ido servir-lhe o chá da tarde e
encontrou-a morta. Teresa me contava uma história em outro cômodo, quando minha
mãe irrompeu desesperada, chorando alto e dizendo “Mamãe morreu, mamãe morreu.”
Lembro-me de mim, sentada no seu colo, chorando, enquanto ela se abraçava a
mim, sempre em prantos. Lembro-me de que fomos dormir na casa de uma vizinha,
Teresa e eu, e acordei cheia de xixi. Dei um pulo, e corri para a cama de minha
irmã. Lembranças.
Naquela
foto vejo pessoas de quem não me lembrava mais. Dona Maria Estela, que me
alfabetizou e que não gostava de mim. Por qualquer bobagem punha-me de castigo
no banheiro, que ficava dentro da sala de aula. Era um lugar escuro e úmido com
alguma coisa que parecia um tacho escuro e carcomido. Não me lembro se havia
vaso sanitário. Um dia, cheguei em casa e contei para minha mãe, que
imediatamente foi ao colégio. Não sei o que aconteceu, mas nunca mais fui presa
no banheiro tenebroso. Décadas depois, li no jornal o anúncio de sua morte. Lá
está ela na foto , feiosa, meio mal-encarada, com um sorriso forçado. E havia
sua irmã, dona Nilda, no segundo ano. Bonitona. Sempre achei que pintava os
cabelos de uma cor meio ruiva. Ela sorri. E dona Ruth, acompanhada de seu marido
Professor Romano, que encontrei mais tarde, quando já na adolescência voltei à
cidade. Eu costumava ficar de castigo depois da aula, não me lembro quem me
punha, dona Nilda ou dona Ruth, ou talvez as duas, e tinha que escrever dezenas
de vezes: “ Não posso rir na aula.” , ou alguma banalidade semelhante. Anotavam
a transgressão no diário, que eu sempre entregava à minha mãe, que assinava sem
prestar atenção. Para ela eram besteiras. E vi dona Carolina , a Diretora, com
seu corpo disforme, gordinho, de perninhas bem curtas. E tantas outras
recordações destes meados do século passado.
Depois
fui embora, passei algum tempo no Rio, onde meu pai, engenheiro militar, dava
aula no IME. Eu odiava aquele ônibus que ia me
pegar na porta de casa. Afinal, já era quase uma mocinha. Passado um ano,
consegui convencê-lo a me deixar ir de bonde. Ia feliz , fazendo o percurso da
Praia Vermelha ao Anglo- Americano, que ficava em Botafogo, onde hoje está um
prédio da Petrobras. Era para mim um grito de liberdade, talvez o primeiro,
repetido ao longo de minha vida. Algum tempo depois, meu pai anunciou que havia
recebido uma bolsa para França. Mandou para Juiz de Fora a família, já que
tinha que devolver a casa, enquanto tratava de tudo no Rio. Lembro-me vagamente
de um passaporte. Eu tinha dez anos e não tinha idéia do que aquela experiência
significaria em minha vida. Lá ficamos por um ano e, acho eu, dez meses. Mas
esta experiência com uma cultura e língua diferentes, ainda tão jovem, conto
depois.
Voltando
ao Brasil, ficamos no Rio. Eu tinha 12 anos e estava na puberdade, com todos
seus problemas. Mas havia coisas boas, como meus passeios com Teresa às
quintas- feiras na Sears, de saudosa memória. Meu pai sempre nos dava algum
dinheiro para um lanche e alguma comprinha a mais. Minha família era do Sul,
mas ele preferia vir para Juiz de Fora nas férias. Era perto e barato. Alguns
anos depois, viemos para Juiz de Fora, onde eu havia nascido. Minha mãe
engravidara logo depois de sua chegada aqui, vindos do Rio. Meu pai tinha na
época uma função já na sua área de engenharia. Era capitão, se não me engano. Belo
homem , deixou muitas mulheres apaixonadas. Eu ainda não havia nascido. Naquela
volta, eu estava entrando no segundo ato
de minha vida. Tinha 15 anos e vivi minha grande experiência do amor. Voltei
para o Granbery, onde estudara a maior parte do primário.
E vendo aquela velha foto revi aqueles anos
dourados. A Sala das Moças, no comando de dona Cecília. Lá está ela na foto.
Sempre austera. Um dia na semana tínhamos “trabalhos manuais” e dona Cecília
nos ensinava coisas interessantes. Lá fiz não sei quantas blusas de tricô, que
eu sabia desde criança. Fiz toalhas de vagonite ( alguém conhece?) Ficava na
porta que dava para o pátio dos rapazes. Meu namorado fazia um sinal e eu
escapava para encontrar-me com ele. As vezes dona Cecília me flagrava e
fazia-me voltar. Sempre educadamente. Lembro-me que tinha o hábito de morder o lábio
superior e sempre pensei que isso devia trazer algum prejuízo. Vi meu professor
de música, Reinaldo, que uma vez por semana lutava para nos fazer cantar “Luar
do Sertão” Éramos um bando desafinado, cada um indo para um lado. Tentava nos
colocar em lugares estratégicos para a primeira e segunda voz. Embaralhávamos
tudo, sentávamos errado. Linda alma aquela, homem infinitamente bondoso. E dona
Zilda, professora de francês, que se encantou ao saber que eu havia morado na
França e falava francês. Era vaidosa e bonitona. Falava bem o francês, que não
sei onde aprendeu. Na foto, diferencia-se das demais, com blusa estampada e
manga curta. E Júlio Camargo, que nos
ensinava geografia. Eu tinha uma coleção de Atlas que herdei de meus irmãos e
outros que meu pai comprava. Professor Camargo era austero, e jamais ninguém
ousou fazer qualquer tipo de algazarra em suas aulas. Mas todos gostávamos dele. Lembro-me de meu amigo Nilo Ayupe, que não chegou a vir tomar um
lanche comigo, como havíamos combinado.
E tantos outros.
Quando entrei na Universidade, para cursar
Letras, quando fiz meu concurso e meu tornei profissional, tudo mudou. Eu
mudei. Fui para Porto Alegre fazer minha Pós-Graduação, vivi longe de minha família.
Tive outros amores, dancei a noite inteira, cheguei em casa de manhã, tomei
banho e fui para minha aula de semântica. Expulsei de casa meu namorado francês,
ultra-esquerda, que me chamou de burguesa porque eu me pintava. Amei os
Beatles, Elvis. Chorei quando ele morreu. Fui esquerda, meus amores todos eram
escolhidos por suas ideologias. Voltei para minha cidade. Trabalhei, ganhei
bolsas para a França.
E quando meu pai adoeceu, com gravíssima
cardiopatia, trouxe-o para minha casa e cuidei dele até sua morte. Um ano
depois, minha mãe quebrou o fêmur, deprimida nunca mais voltou a andar, até sua
morte seis anos mais tarde . Eu já entrara no meu terceiro ato. A dor daquelas
perdas , o sofrimento , haviam deixado suas marcas em mim. Um ano e meio
depois, perdi meu irmão. Nova dor,
noites em claro sem poder compreender como ele pudera morrer tão repentinamente.
E a facada final; a morte de minha irmã, Teresa, amiga, companheira,
confidente. Acompanhei-a cada dia, sofri cada dia, sabendo que não havia
esperança. Mas sempre há um fio de esperança. Teresa faleceu há 13 anos. Naquele
dia, com aquela facada no coração, mergulhei no meu terceiro ato.
Sinto-me como
aquele menino, que descreve Mario de Andrade, que já tendo comido a
maior parte de suas cerejas , vendo o cesto quase vazio, quer gozar o que resta
até o último pedacinho. Hoje cada dia vivido é um presente de Deus. E como diz
Gilbert Bécaud no seu maravilhoso “Et maintenant”:* “ Et puis un soir , dans
mon miroir, je verrai bien la fin du chemin. Pas une fleur, et pas de pleurs au
moment de l´adieu.” Já deixei por escrito o que desejo: sem velório, meu corpo
será cremado, e somente estará presente minha família. Minhas cinzas serão
lançadas ao vento e meu espírito poderá, melhor do que jamais, apreciar a
beleza da criação do Senhor.
*E uma noite , em meu espelho, verei o fim do
caminho. Nada de flores , nada de choro , no momento do adeus.”
5 comentários:
Muito emocionante seu relato, amiga querida!
Também tive um professor de música chamado Reinaldo. Eu fazia o antigo ginásio na Escola Normal. Seria o mesmo? Anos 60.
Beijo
Obrigada amiga. Você sabe o quanto vale para mim sua opinião.
Provavelmente, é a mesma pessoa. Homem maravilhosa, de infinita bondade. Tenho certeza de que tem um belo lugar para ele lá em cima.
Se quiser conferir, veja no meu Facebook a foto tirada diante da porta principal do Granbery, há cinquenta ou sessenta anos atrás. Você vai reconhecer muita gente.
Beijos. E Parabéns quanto ao seu último poema.
Belíssimo e muito emocionante seu relato! Parabéns, amiga! Bjs
Obrigada , Vitória. Para mim é uma enorme alegria poder compartilhar com meus amigos sentimentos e lembranças que guardo no fundo do coração
Beijos
Um belo texto. Hoje, também estava revendo meu esquecido blog e comecei a rever alguns dos amigos de caminhada, quando me deparei com suas memórias...fiquei feliz, e torcendo para que você continue aqui oferecendo textos assim para o nosso deleite. Parece que todos estão desistindo...
Abraço,
Guacira
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