Saudades
de um tempo que não volta mais! Meus dez anos! Um dia, meu pai chegou em casa e
disse rindo para minha mãe : “ Alice, vamos para a França!” Não me lembro do
que pensei na hora, mas depois refleti que deveria deixar no Brasil meus
amiguinhos, minha bicicleta, minhas brincadeiras de criança. Partia para um
país desconhecido, diferente, cuja língua eu nem sequer balbuciava. Para mim, e
acho que para toda a família, esta era uma mudança total. Tiramos os
passaportes, meu pai tratou com amigos o que deixaria aqui, arrumamos as malas
e fomos embora.
E depois de uma longa viagem de avião, pela extinta
Panair, com escalas em Recife e Dakar, onde senti, ao descer as escadas do
avião, um calor que parecia derreter minhas pernas, chegamos a Paris, onde
outros militares, em estudos, nos esperavam com as famílias. Eu me sentia
estranha! Não conhecia ninguém! Não me lembro do que se passou depois, mas, de
repente, eu estava lá, tão longe do Brasil!
Lembro-me
de nosso primeiro dia em Paris, com meu pai, minha mãe e minha irmã, que já
tinha 21 anos. Meu irmão havia ficado no Rio, e deveria chegar logo depois. Na
cidade desconhecida, eu via as pessoas passarem falando aquela língua estranha.
Tudo me parecia estranho! Uma menina, mais ou menos de minha idade, passou por
nós conversando com uma mulher que devia ser sua mãe. Depois fomos jantar em um
restaurante bonito, não sei onde, e meu pai, que já falava bastante bem o
francês, fez o pedido de bife com batatas fritas e certo molho, que achei
delicioso. Depois, fomos para um hotel que os outros militares brasileiros
haviam reservado para nós. Lá o que eu mais gostava era do delicioso café da
manhã, que nos serviam no apartamento. Pela primeira vez, comi um croissant! E
a geléia! A manteiga que vinha como uma conchinha! Ainda hoje, tantos anos
transcorridos, sinto o odor do hotel, do café da manhã, do shampoo em
travesseiro que minha mãe comprava no Prisunic , bem perto do hotel. Uma noite,
meu pai havia saído, e minha mãe meu deu algum dinheiro (tarefa complicada)
para comprar sanduíche de patê numa “charcuterie” ao lado do hotel. Foi alguns
dias depois de nossa chegada e eu não falava nada de francês. Tentei me fazer
entender, mas foi difícil. Acharam-me engraçadinha, afagaram o meu rosto, e me
disseram “mignonne”, “italienne”. Por fim, consegui mostrar o que queria e fui
embora feliz com meu sanduíche. Aliás, sempre nos consideraram italianos, e
lembro-me de um francês que nos viu e disse raivosamente: “Ces italiens!”
Logo
depois começou nossa peregrinação por um lugar para alugar. Não me lembro bem
do quanto percorremos, mas um ficou para sempre marcado em minha memória; uma
linda casa em Ménilmontant. Lá nasceu o grande chansonnier, Charles Trenet, que
ofereceu ao lugar a sempre lembrada “Ménilmontant”, e também a inesquecível
Edith Piaf. Naquele tempo, este “quartier” era um lugar quase bucólico, com sua
igrejinha, suas velhas casas e prédios bem diferentes dos que havia perto do
hotel. Uma tarde, fomos ver uma casa para
alugar, que meu pai havia descoberto. A proprietária era uma senhora bem idosa,
cabelos branquinhos, penteados em um coque. A casa pareceu-me deliciosa. As
paredes eram recobertas de papel florido e numa sala principal havia seda
estampada com rosas, se não me engano. Ainda posso sentir o contato de minhas
mãos com a seda. Havia um piano, e me imaginei tocando, fingindo que sabia,
como fiz mais tarde na casa de uma amiguinha, filha de outro militar. Torci
para que meu pai alugasse, mas, afinal, minha torcida não deu certo e fomos
morar na Avenue Mac-Mahon, uma das doze avenidas da Place de l´Étoile, hoje
Place Charles de Gaule, um lugar bem mais “burguês”. Nosso prédio, soube em uma
de minhas viagens à França, foi construído em 1896, ou seja, em plena era do Art Nouveau, apesar de obedecer
aos padrões haussemanianos (de Haussemann, o grande urbanista que transformou o
Paris medieval quase no que é hoje). No prédio, não me lembro de haver
franceses. No primeiro andar morava Monsieur Félix Houfouet Boigny, deputado da
France d`Outre Mer, ou seja, de uma das colônias na África. Depois da
independência, foi eterno Presidente da Costa do Marfim. No hall de seu
apartamento havia chifres de elefante, indicando sua origem africana. Havia
festas constantemente, e negros chegavam com mulheres louras, o que surpreendia
minha mãe. Como poderia ela imaginar que, muitos anos mais tarde, eu namoraria
um marfinês?
No segundo, acho que vivia uma família
francesa, mas nunca os vi. No terceiro havia uma família vinda do Ceilão, atual
Sri Lanka. As mulheres usavam o célebre sari, e tinham no meio da testa um
objeto que descobri chamar-se “bindi”. Nunca vi nenhum homem. Mulheres
silenciosas que abaixavam a cabeça quando eu as encontrava nas escadas. No
quarto andar, morava uma chilena. Conversou comigo uma vez. Também jamais vi
sua família e sempre supus que morasse só. No quinto andar, éramos nós e, no
sexto, outra família de militar brasileiro, Dirceu Nogueira, que foi ministro
no governo Geisel.
O
apartamento ocupava todo o andar, enorme, com uma sala de jantar, seguida de
uma sala de leitura, e um grande salão redondo com móveis no estilo Luís XV.
Havia lareiras de mármore com espelhos que iam até o texto. Tudo adornado com
sancas, florões e lustres de cristal. À direita do hall de entrada, havia um
painel de vidro com flores bem ao estilo Art-Nouveau. Arte que prevaleceu pelo
mundo ocidental de 1890 a 1920. Toda aquela antiguidade dava-me medo e sempre
imaginava que os fantasmas dos que ali moraram me seguiam. O elevador
hidráulico era da época da construção. Só subia e tínhamos que descer pelas
escadas. Quando subia, um longo tubo emergia do solo. O elevador era todo
espelhado e havia uma corda grossa que devia ser puxada. Conforme a força que se
usava, ia mais lento ou mais “rápido”.
Em
1981, eu estava em Versailles, fazendo um curso sobre o palácio, e indo um dia
a Paris, resolvi fazer uma visita ao prédio. As portas estavam sempre fechadas
e toda comunicação era feita por interfone. Sem ter para quem interfonar,
fiquei à espreita. Quando a porta se abriu para passagem de alguém,
cumprimentei-o e entrei. E voltei no tempo. A única coisa que havia mudado era
o elevador, substituído por outro, moderno e sem graça. Bati na “loge” do
concierge e conversei bastante com ele. Fiquei sabendo que no prédio não havia
mais famílias. Ficaria muito caro. “Nosso” apartamento abrigava uma firma de
contabilidade. E havia uma clínica “Kinesthésiste”, uma espécie de
fisioterapia. Tirei fotos de tudo, inclusive dele. O velho, a quem eu dera, em
lágrimas, François, meu peixinho, pois devia voltar ao Brasil, já havia
falecido há anos. Em 94, com minha irmã, voltei ao prédio. Não havia mais
concierge, subimos as escadas e batemos na porta do quinto andar. Uma mulher
atendeu, expliquei-lhe que havia morado ali quando criança, que éramos
brasileiros. Os móveis da sala de jantar haviam desaparecido. Havia movimento
de muitas pessoas. Não nos deixou entrar como era de esperar, já que estávamos
em Paris. Mas pedi-lhe que me deixasse ver o “panneau” art-nouveau, o que ela
permitiu, comentando a sua beleza. Descemos meio decepcionadas, mas, enfim,
havíamos conseguido, coisa quase impossível; resgatar um pedacinho do passado.
Assim
que chegamos, meu pai inquietou-se; era preciso que se encontrasse alguma
escola para mim. Teresa, minha irmã, já havia concluído o secundário, mas eu
havia abandonado o primário. A princípio, fui matriculada na mesma escola que a
filha do coronel Dirceu, Déa. Durou pouco e meu pai resolveu me colocar num
curso para crianças na Aliança Francesa. Ótima idéia! Tinha como colegas
crianças de várias nacionalidades: americano, húngaro, chinês, mexicano,
coreano. As meninas eram, Rosa, uma espanhola, que estudava balé na “Opéra” e
Piabgrum Fuangrabil (?) , tailandesa , de quem me tornei amiga, Fui com Teresa
almoçar em sua casa e comemos comida tailandesa. E ela veio à minha casa, para
um belo almoço brasileiro, que minha mãe preparou com todo seu talento
culinário. Nossa professora, Madame Benoît, escolhia, uma vez por mês, um de
nós para falar de seu país. E adorávamos. Faziam perguntas, que nos
esforçávamos por responder. Afinal, éramos crianças, ainda pré-adolescentes! Mas
todos nós já falavam francês fluente. Como foi provado pelo neurolinguista,
Eric Lenneberg, a criança tem mais facilidade de aprender uma língua, sobretudo
se interage com outras pessoas, em ambiente natural. E durante toda a estadia de
um ano e dez meses, fui intérprete oficial
de minha mãe.
Aos
domingos, eu, meu pai, minha mãe e minha irmã íamos passear nos arredores de
Paris, ou meu pai me levava aos museus. Meu irmão tinha outros programas. Foi
assim que me apaixonei pela Antiguidade e sonhei em ser arqueóloga. Fui a
espetáculos inesquecíveis, visitei castelos medievais e percorri salões
sombrios, onde, há centenas e centenas de anos, tanta gente viveu. E também
outros de outras épocas. Tive a sorte de ter um pai cultivado, e um irmão,
também intensamente interessado em cultura.
Lembranças destes velhos tempos me vêm à mente, coisas que havia
esquecido, o sanduíche de “jambon”, o “cornet” de fritas, a fila do vinho que
minha mãe freqüentava diariamente, e que meu pai, rindo, filmou. A mulher que
me achava engraçadinha – “mignonne” – no Prisunic, onde minha mãe me mandava
comprar alguma coisa, minha primeira máquina de fotografia, que ainda guardo
com carinho, já bem velhinha. Revendo o filme “Ballon Rouge”, revejo a Paris de
minha infância, tão diferente da Paris de hoje!
Tenho
em casa muitos filmes 8ml e slides. Depois de intensa busca, consegui um
aparelho de projeção de 8ml (já que o antigo só serve de lembrança), e por
vezes revejo os velhos filmes. Sinto saudades de minha infância e de todos os
que partiram. Foram-se todos! Mas assim é a vida, uns partem e outros chegam. E
Paris vai continuar no meu coração, com as castanhas cozidas na brasa de
Marius, emigrante grego, a perspectiva do Arco do Triunfo e da Torre Eiffel que
eu via da minha sacada, com François nadando feliz em uma das pias do banheiro.
Com tudo de bom que só a “insouciance” da infância e uma experiência como esta
proporcionam.
Um comentário:
Boas lembranças, Maria Lúcia. Pude me transportar para Paris por alguns instantes através de suas palavras. Beijos.
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