O Segundo |Império e o Barão Haussmann
Conta-se que no século 14, tendo uma carroça removido o lixo acumulado nas ruas de Paris , o rei Felipe Augusto, atingido pelo mal cheiro, desmaiou. Verdade ou não, Paris era um esgoto , uma lixeira a céu aberto. Há um poemeto de um poeta francês , que , infelizmente , não encontrei , onde conta as desventuras daqueles que atravessam as ruas de Paris. Na verdade, nunca uma cidade sofreu tamanha transformação em tão pouco espaço de tempo. E é sobre isto que pretendo discorrer .
Depois de aventuras rocambolescas fora da França, Luís Napoleão Bonaparte, mal conhecia Paris, segundo conta um de seus maiores desafetos, Victor Hugo, que o havia apoiado antes do golpe. É preciso notar que duas revoltas populares haviam eclodido , uma em 1830, que inspirou ao romancista, teatrólogo e poeta, seu magnifico romance "Os Miseráveis" , havendo derrubado a família Bourbon, do que se chamou Restauração e outra em 1848 , que derrubou o chamado Rei Burguês , Luís Felipe, de outra família nobre, Orléans prima da primeira. A estratégia dos insurretos eram as barricadas que se erguiam nos becos estreitos da cidade, e que impediam a passagem das forças militares. E com esta estratégia perigosa era preciso acabar.
Já algumas tentativas de saneamento da cidade haviam sido feitas , mas era preciso muito mais . Rambuteau , cujo prenome me escapa , eleito prefeito em 1833, sob Luís Felipe, já se preocupava com os seríssimos problemas de saneamento , sobretudo no centro da cidade, e que atingia seriamente a população laboriosa. Rambuteau é hoje uma estação de metro e uma rua . E sem esquecer o prefeito Poubelle , que exigiu que o lixo fosse depositado em latas, e não jogado diretamente na rua. E seu nome significa hoje em francês "lata de lixo" . Mas , apesar da preocupação de Luís Felipe, a cidade continuava imunda e uma epidemia de cólera explode em 1832 matando impiedosamente a população mais pobre. E ainda convém citar outros precursores como Hippolyte Meynard , cujo projeto urbanístico pode ser considerado precursor daquele de Haussmann .
Havia duas preocupações no grande projeto de Haussmann; impedir as barricadas e sanear o centro imundo da cidade. Ruas que eram verdadeiros becos asquerosos, onde o sol jamais penetrava. Antigas habitações de nobres arruinados ou exilados eram elevadas pelo acréscimo de andares superiores, usando material vindo de demolições, e que se acrescentavam ao acaso. A classe média se afastava do centro e preferia morar na Rive Gauche. O poeta Restif de la Bretonne, a propósito da largura das ruas, explica que "duas pessoas não podem passar a não ser que se abracem. " Nas moradias mais pobres , sem haver banheiros suficientes , as fezes se acumulam e descem pelas escadas, provocando terrível mal cheiro e sérios problemas aos moradores que pretendam chegar à rua. Nos becos imundos e sombrios , abunda a prostituição, único meio de sobrevivência. Com aluguéis inacessíveis, explorados pelo que se chamava de "vautour" (abutre) muitas vezes os cômodos alugados por hora, representem a melhor descrição da miséria absoluta. Tal é a descrição que nos oferece um jornalista ao visitar um deles. "É inacreditável! Numa grande cama imunda , se acomodam adultos e crianças, igualmente imundos. O cheiro é de tal forma repugnante, que não há forma de suportá-lo mais do que alguns minutos."
É pois, este ambiente repulsivo, esta cidade medieval, onde vive uma parte da população , que Haussmann deve transformar na bela Paris de hoje . E para isto não há obstáculo que o impeça. Seus críticos , a começar por Victor Hugo , chamam a atenção por sua obsessão pela linha reta. E ele não hesita em demolir seu próprio palacete , que obstruía seu projeto. Traça avenidas largas e demoli o que estiver pela frente , havendo mesmo um mal entendido com o Imperador. Prolonga a rue de Rivoli, começada por Napoleão I indo até o Louvre. Traça, senão todas, grande parte das avenidas da Place de l'Etoile. Nesta época surgem os Grands Magasins , como "Au Bon Marché " , creio que o mais antigo . Les Magasins Réunis" , " Le grand Magasin Du Louvre", que conheci, quando criança, e onde ganhei não me lembro o quê , na Rue de Rivoli, desaparecido no fim da década de 70 ou ínicio de 80. O último foi "Les Galeries Lafayette", surgida já na 3a. República , lá por 1913, com sua magnifica cúpula Art Nouveau. E sem esquecer "Le Printemps" . As vendedoras destes grandes "magasins" eram obrigadas a ficar de pé cerca de 14 horas e como isto acontecia antes das leis trabalhistas , não havendo férias, levavam uma vida miserável. Além de serem mal pagas. Mas, evidentemente, havia uma burguesia "aisée" que frequentava este lugares.
E a classe operária expulsa do centro , que agora trabalhava na construção da nova Paris? Havia se transferido para a periferia . Segundo conta um desses trabalhadores , devia se levantar às 4 horas , andar 2 horas para chegar às 6 ao local de trabalho, e às 18 horas fazer trajeto oposto , para recomeçar tudo no dia seguinte, Não consegui saber quantos dias por semana. Tudo isto sem férias! As reformas trabalhistas surgiram já no fim dos anos 30 , mais precisamente durante o chamado Front Populaire, pouco antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial. Uma canção dos anos 40, cantada pelo grande ator, e por vezes cantor, Jean Gabin, conta que os operários não sabiam o quê fazer deste novo tempo ocioso.
Mas sob o II Império, havia também os "chiffoniers", que corresponde a nossos catadores de lixo e que , ao fim de cada jornada, levavam para casa o material recolhido que era separado até o amanhecer. Os longos fios cabelos , que se amontoavam no lixo , eram cuidadosamente separados para fazer perucas. E enquanto isto a cidade se expandia , construindo este Paris que hoje conhecemos. Valeu a pena ? Penso que sim, mas as custas de um enorme sacrifício do povo miserável.
Há ainda muito a contar sobre a grande urbanização de Haussmann, e a vida da população durante o II Império, mas as fotos podem contar estas histórias. Qualquer dia volto a falar destes dois personagens, Barão de Haussmann , um protestante sisudo e o aventureiro debochado, Luís Napoleão Bonaparte. Como disse um Hervé Maneglier , estudioso do II Império, nunca se poderia imaginar que duas pessoas tão opostas pudessem dar nascimento a uma cidade tão excepcional .
E como diz Maurice Chevalier, numa de suas mais belas canções : "Paris sera toujours Paris, La plus belle ville du monde ! "
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