1920. A Guerra acabara. Numa
noite fria de janeiro, Amedeo Modigliani, o belo pintor e escultor
judeo-italiano, acaba de morrer. Tuberculoso. Na mais negra miséria. Viera
morar em Paris em 1906, e nunca sua genialidade fora reconhecida. Sempre perseguido
pelo egocentrismo e vaidade de Picasso. Modi, como o chamavam seus amigos, era
belíssimo, talentosíssimo e, pela lógica, teria de ter um belo futuro, mas
afundara no alcoolismo e nas drogas. Sua companheira, que abandonara a confortável
vida burguesa, Jeanne Hébuterne, que já
lhe dera uma filha, olhou o rosto imóvel do homem que amava de todo seu ser,
não derramou uma lágrima. Grávida de nove meses, voltou à pobre “mansarde” onde
moravam e lançou-se pela janela. O que valia a vida sem Modi?
Mas, por um desses azares do
destino, neste ano em que o mundo perdia Modi, estouravam os prazeres em uma
Paris cuja vida intelectual e artística jamais havia morrido. Paris que, anos
depois, numa continuação daquela Primeira Guerra, que todos pensavam que não se
repetiria, não se deixou sucumbir às intenções de Joseph Goebbels, Ministro da
Propaganda Nazista, que sentia profunda
inveja da cultura francesa. Já em 1913, no Théatre de l´Elysées, a “Sagração de
Primavera”, obra do genial Igor Stravinski, com coreografia de Michel Foukine,
e apresentando o maior bailarino de todos os tempos, Vaslav Nijinski, Paris
estava na vanguarda. É verdade que a apresentação sofrera a maior vaia de que
se tem notícia na história da arte cênica. Mas na década de 20, isto já era
passado
Paris
é uma festa. Com dólar barato, para lá convergiram muitos intelectuais americanos,
como os romancistas Ernest Hemingway, Scott Fitzgerald e John dos Passos, o
fotógrafo Man Ray, cuja amante, Kiki de Montparnasse , de corpo escultural, ele
utilizou de maneira genial. Para lá também foram o poeta Erza Pound, o irlandês
James Joyce. O pintor judeo-russo, Marc Chagall já emigrara anos antes e se
tornara amigo de talentos, como Modgiani. Com a revolução russa, em 1917, a emigração
de outros gênios foi inevitável. Afinal, como conviver com a arte de Estado? Para
lá foram Igor Stravinski e Sergei Prokovief. E também Sergei Diaghilev, criador
e diretor dos "Ballets Russes", o coreográfo Michel Foukine e Vaslav Nijinski,
que desenvolveu esquizofrenia alguns anos mais tarde. Morreu em um manicômio em
Londres ,em 1950. Isto sem esquecer as sensacionais apresentações de Josephine Baker,a escultural
negra americana
E
havia também muitos intelectuais franceses. Jean Cocteau, poeta, escritor,
dramaturgo, o jovem Raymond Radiguet , morto aos vinte e três anos de febre
tifóide. E Eric Satie, grande compositor e pianista, Fernand Léger, professor
de Tarsila do Amaral, Georges Braque, um
dos fundadores do Cubismo. E Maurice
Utrillo, o pintor de Montmartre, cuja mãe,
a bela Suzanne Valadon, também pintora, fora amante de Satie, de
Toulouse-Lautrec, dentre outros artistas, pintores e músicos. Gabrielle ou Coco
Chanel revolucionava a indumentária das mulheres. Abolia os longos cabelos,
lançava tailleurs de linhas retas que colocavam em destaque a estrutura
fundamental do corpo feminino. Foi mulher de muitos amantes, dentre os quais
Stravinski, amou e foi amada. Quebrou tabus. Escritores, pintores e escultores
freqüentavam o apartamento, de paredes cobertas quadros, onde viviam Gertrude
Stein, romancista e poetisa americana, e sua companheira Alice Toklas.
Após a Revolução de 1917, membros
da nobreza russa haviam fugido para Paris, e tornou-se chique ter uma
governanta duquesa ou condessa. Muitos condes e duques tornaram-se mordomos ou
choferes de taxis. Eram pessoas de vasta cultura, muita “finesse d´esprit”, e
serviam uma burguesia endinheirada que, na maioria das vezes, carecia desses
itens.
Os artistas e intelectuais, que
até o início da Guerra, haviam se reunido em Montmartre, agora emigravam para
Montparnasse. Seus locais preferidos de encontro eram Le Dôme, La Coupole, La Rotonde.
Todos estes sobreviveram até nossos dias. Na Coupole, ainda podemos observar
nas colunas pinturas de Braque, Picasso, Léger e outros, que, muitas vezes,
trocavam arte por um belo jantar. A vida corria bela, ainda que o povo sofresse
os efeitos do conflito. Mas ninguém pensava na miséria que devastava o povo
alemão, que era obrigado a pagar todos os prejuízos à França e à Inglaterra. A
chamada Républica de Weimar , que fora instalada após a Grande Guerra, estava
em frangalhos. A inflação era a maior que já se verificou em todos os tempos. Erich
Maria Remarque, escritor alemão, conta no seu livro, “ O obelisco negro”, que
as pessoas acordavam de madrugada para comprar o pão, pois ao meio-dia estaria
mais caro. Ninguém se lembrou que a miséria é um terreno fértil para o
surgimento de lideres carismáticos que prometem a redenção. Não se conhecia um
simples sargento da Grande Guerra, que, obcecado pela vingança, iludindo a
todos, fosse capaz de promover tamanha barbárie com o apoio de um povo culto. Não
se poderia imaginar: a Grande Guerra não
acabara.
Mas Paris resistiu. E mesmo sob o
domínio nazista a cultura francesa não cedeu graças aos esforços de
intelectuais como Cocteau, Sartre, Simone de Beauvoir, Jean-Louis Barrault,
Picasso, que passou a ocupação em Paris, Albert Camus e tantos outros. E em
1944, libertada da ocupação nazista, Paris retomou toda sua luz. Até.......não
sabemos quando.
Quero oferecer este texto a meu
falecido irmão, Sérgio, que me ensinou desde criança o prazer da leitura, da
admiração da pintura e da boa música. Sérgio tinha uma inteligência superior.
Lembro-me de que quando moramos em Paris, foi assistir à “Sagração da
Primavera”, na Salle Pleyel, regida pelo próprio Stravinski, já velho e morando
em Nova Iorque. Ao seu lado, sentou-se Jean Cocteau, cuja obra também admirava. Chegou
em casa delirante de alegria. Aquele fora um dia de glória em sua vida.
Obrigada, meu irmão .
Descanse em paz
4 comentários:
Querida Maria Lúcia, você nos deu banho de cultura. Saudades de nossos longos bate-papos em sua casa. Um beijo!
Um passeio pela luminosa cidade. Dá vontade de passar uns tempos por lá, só para respirar o ar...
Muito obrigada pelo lindo texto. E nos emociona também! beijo.
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