Meu
coração acelerava. Durante meses! Era desesperante ouvir o telefone tocar sem
nenhuma resposta! Sabia que alguma coisa havia acontecido, e temia o pior! Mas
como? Neste caso, teriam desligado. Foi uma das primeiras coisas que fizemos
quando minha irmã morreu. Não havia mais necessidade dele! Mas era claro que
alguma coisa havia acontecido! Lembro-me da última vez em que nos falamos.
Lembro-me de sua voz meiga, seu jeito calmo de falar, não importava o que
fosse: “Lúcia, olha tu sabes o que me aconteceu...?” A princípio queria ter
notícias, depois a simples ausência de sua voz me apertava o coração.
Conheci
Marizza há mais de quarenta anos, éramos bem jovens. Eu tinha meus sonhos,
aqueles que todos temos na juventude. Minha amiga já lidava com a dura
realidade. Seu tempo de chorar e gemer havia chegado cedo. Mas ela suportava
estoicamente. No auge dos meus anos, meus sentimentos por ela eram um misto de
piedade e admiração. Durante anos, apesar de morarmos longe, mantivemos contato.
E quando estava em Porto Alegre ia sempre à sua casa. Lembro-me dos lanches que
me preparava com tanto cuidado. E sempre foi assim! Depois fui estudar na
cidade, e continuei freqüentando sua
casa e me deliciando com seus lanches. Apesar de tudo, Marizza e Arminda, sua
mãe, faziam bom o ambiente. Era aconchegante! Apesar de tudo! Não pretendo
escrever um romance policial, obrigando meus amigos a adivinhar o que havia de
trágico nesta família. Sua irmã mais velha, Clarisse, ensandecera, aos vinte e
dois anos.
Clarisse
era uma linda mulher. Loira, alta, belos olhos azuis amendoados. Como é comum
no sul, era uma mistura de alemão e italiano. Culta, tocava flauta, piano, tinha
uma linda voz. Era o orgulho da família. Mas ninguém ainda conhecia a força
moral daquela garota chamada Marizza. Olho uma foto de sua família, pai, mãe,
irmão, irmã e ela própria, e sinto que
para todos nós há um tempo na vida. “ Tempo de nascer,e tempo de morrer; tempo
de plantar, e tempo de arrancar a planta.” “ E tudo que ele fez é apropriado em
seu tempo. “ Olho a foto de minha família reunida, também pai, mãe, irmão,irmã
e eu ainda neném no colo de minha mãe . “Observo a tarefa que Deus deu aos homens
para que dela se ocupem: tudo que ele fez é apropriado em seu tempo.” Até pouco
tempo éramos as duas sobreviventes. Meu tempo havia chegado, sem que eu me
desse conta!
Neste
drama familiar, com três criancinhas, uma mãe totalmente ensandecida, um pai
aterrorizado que não conseguira suportar a trágica história da mulher que
amara, para a família era tempo de construir. E unidos começaram a dura tarefa
de construir dentro da destruição. Orlando morreu alguns anos depois. O irmão
caçula, Sérgio, seguiu seu caminho. Coube, então, a tarefa inteiramente à avó e
à tia. E quanta coragem! E como é possível educar três crianças vendo a mãe
naquelas condições? Mas não foi um tempo de guerra, foi um tempo de paz, não
foi um tempo de odiar, foi um tempo de amar, não foi um tempo de destruir, foi
um tempo de construir! Quanta beleza na história destas duas mulheres
guerreiras! Quantas serão as mulheres capazes de trazer em si tanta luz, capaz
de iluminar os caminhos de três crianças?
Formaram
homens. Fortes como elas, que viam a mãe sem revolta, mas com carinho, com amor
filial. Capazes de rir com suas maluquices, sem jamais escarnecer. Lembro-me de
algumas passagens engraçadas de Clarisse, como no dia em que cismou que
Ricardo, meu companheiro de então, estava com o nariz sujo. Repetia-lhe: “ Vai
limpar o nariz, porcalhão!” Até que alguém, ou ele próprio, a fez parar. Ou do
dia em que chegamos, Teresa e eu, e contamos uma viagem que havíamos feito a
Roma. Ouvindo, perguntou Clarisse “E viram o titio?” Era o Papa João Paulo, que ela havia cismado ser
seu tio. “Não é mãe, ele é nosso tio!”.
Arminda confirmava, ria e abanava a cabeça.
Arminda
cumpriu seu tempo há alguns anos, já estava bem velhinha. Mas antes de partir
viu, com a coragem de sempre, partir sua filha doente e seu filho caçula, ainda
jovem. Estoicamente. E se foi com a tranqüilidade de quem cumpriu uma missão
suprema. Com Marizza formou homens de bem, profissionais respeitados, pais de
família.
Lendo,
como sempre faço, nas minhas também inúmeras dores e perdas, encontro um trecho
que bem se adapta ao momento de dor que vivo: “Também colocou no coração do
homem o conjunto do tempo, sem que ele possa atinar com a obra que Deus realiza
desde o princípio até o fim.”
Marizza
cumpriu seu tempo. Partiu. Foi feliz? Muito! Talvez a mais feliz de todas
minhas amigas. Soube como ninguém saborear seus tempos de rir, de bailar, de
construir. Lembro-me de um dia, pouco antes daquele silêncio, em que me
queixava da chatice dos domingos, ao que ela retrucou: “Mas para mim é tão bom! Vou ao cinema no shopping com uns amigos e depois tomamos um cafezinho com
alguma coisa Bah! É tão bom!” Bela Marizza que aprendeu tão bem aproveitar seus
bons tempos.
Até
qualquer dia! Agradeço o exemplo que me deixou!
2 comentários:
Quando é que você vai publicar em livro suas ótimas crônicas, amiga? Cada vez melhor! Beijos
Simplesmente lindo, terno, sensível. A ida de um amigo é tão triste, fica uma saudade tão grande dentro da gente, e o que temos são as boas memórias, os ótimos momentos, é o que temos até o dia do reencontro. Beijo!
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