QUEM SOU EU

Sou professora de Francês, mas hoje minha principal atividade é escrever e ler, além de cuidar dos meus três vira-latas: Charmoso, Príncipe e Luther.



Gosto de fazer ginástica, sou vegetariana e adoro animais em geral, menos baratas.



Sinto especial prazer quando meus textos agradam aos meus leitores. Espero continuar produzindo e me comunicando com todos os meus amigos, neste maravilhoso universo da net.



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sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Pavane pour une infante défunte

“Infante” é princesa espanhola. Pavane uma dança de movimento lento. Maurice Ravel compôs a obra em 1899, para a princesa de Polignac, na verdade uma judia americana, casada com o conde Edmond de Polignac, da mais antiga nobreza francesa. O título da obra, na verdade, não tem nada a ver com a morte de uma criança. Ravel explicou, tendo tal título causado certa perplexidade, que se tratava simplesmente de uma licença poética. É uma linda, e profundamente melancólica, composição, digna do gênio do grande compositor impressionista.
Lembrei-me dela ao ver a foto do rostinho sorridente de Luana Eger, de três anos, a primeira vítima da tragédia de Santa Catarina. Luana, ao contrário da princesa de Polignac, morreu no alvorecer da vida. E pertencia a uma família pobre, seu pai é um simples comerciário, e, como todas as outras vidas que conhecemos ceifadas ainda na aurora, logo será esquecida, salvo por sua família. Luana é o símbolo desse absurdo com que nos deparamos a cada dia, da morte, da dor, da destruição. Crianças como Luana morrem soterradas, assassinadas, seviciadas. Crianças que são vítimas de alguma força perversa da natureza ou dos homens. Talvez de ambos.
Vi outros rostos infantis, sorridentes, como o da linda Luana. Todos agora mortos. Vi pais, mães, avós, expondo sua dor, tentando entender o porquê de tanto sofrimento. Mas como entender? Lembro-me de “La peste” de Albert Camus, em que, de repente, a cidade de Oran, no norte da África, é invadida por ratos que aparecem mortos aos montes. Mas logo desaparecem, dando lugar à morte de homens, mulheres, crianças. Lembro-me de certo Doutor Rieux, médico herói, tentando salvar vidas. E também de sua revolta diante do sofrimento, maior ainda quando a vítima é uma criança. E da incapacidade do padre em explicar tanta dor de inocentes. E lembrei-me, então, de minha tia Maria, e de tantas outras Marias, personagens reais, vítimas do mesmo mal daquelas do romance de Camus: a peste bubônica. Em Porto Alegre, dos anos vinte, ratos infestavam a cidade imunda, governada por outros ratos, e arrastavam-se doentes, antes que a morte começasse a ceifar vidas humanas. Ignorância, perversidade? Possivelmente ambas. Um dia, meu tio Alfredo vendo um rato que se arrastava pela sala, observa, numa premunição: “Este rato está doente. E isto pode ser grave!”. Mas ninguém presta atenção. Afinal, ratos infestam casas, de todas as classes sociais. Até que a morte chegou para os humanos, e levou Maria, e também sua melhor amiga, e vizinhos, adultos e crianças.
Não importa se o mal veio dos homens ou da natureza ultrajada, enfurecida, justa ou injustamente. O que importa é que a vida vai nos falando, cada vez mais severamente, que nossos limites humanos são infinitamente estreitos. Se a juventude nos faz crer em nossa imortalidade, os anos nos trazem a cruel consciência de tudo que não podemos. E podemos tão pouco! O absurdo de que nos fala Camus, em toda sua obra, tragicamente faz parte da vida. Luana, Isabela, os dois irmãos seviciados, assassinados, esquartejados, queimados, pelo pai, pela madrasta, pela vizinha covarde, pelos médicos omissos, pela Conselheira Tutelar, por todos nós, de quem já nem lembramos mais, os namorados adolescentes, também já quase totalmente esquecidos, Maria, sua melhor amiga, todos que não puderam prosseguir sua caminhada, nos trazem a dolorosa convicção de nossa intrínseca incapacidade em vencer o sofrimento e a morte. Ou, quem sabe, nossa insensibilidade, se a dor e a morte forem do outro. E o absurdo do sofrimento que conduz à morte surge de todos os lados, e dele ninguém pode escapar. Surge da natureza, dos homens, de um deus vingativo, do demônio.
Camus, em obras anteriores, nos dizia que somente no suicídio, ato supremo de rebeldia, poderíamos afrontar este Deus, no qual ele não cria, que nos atormenta com o absurdo da vida. No entanto, em “La Peste” resgata o amor como a única arma de que dispomos para este desafio. E ainda relembra, por intermédio do doutor Rieux, que o sofrimento “havia confrontado os homens ao absurdo de suas existências e à precariedade da condição humana.”
Não haverá “Pavane” para Luana, nem para os garotos supliciados, nem para Isabela, nem para Maria, nem para sua amiguinha, mas para todos nós, que ainda cultivamos a esperança, haverá sempre a possibilidade de exercer o amor, o verdadeiro, aquele expandido, que recobre toda criação, de que falava Dom Helder Câmara.