QUEM SOU EU

Sou professora de Francês, mas hoje minha principal atividade é escrever e ler, além de cuidar dos meus três vira-latas: Charmoso, Príncipe e Luther.



Gosto de fazer ginástica, sou vegetariana e adoro animais em geral, menos baratas.



Sinto especial prazer quando meus textos agradam aos meus leitores. Espero continuar produzindo e me comunicando com todos os meus amigos, neste maravilhoso universo da net.



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sábado, 27 de março de 2010

La buena y la mala educacion

Nestes dias em que assisto ao fim de vida de uma mulher, lembrei-me do filme de Almodavar intitulado “La mala educacion”. A obra do espanhol só vem ao caso pelo título. Na verdade, Almodovar não é dos meus cineastas prediletos, mas tem o mérito de por a nu, sem escrúpulos, com absoluta “mala educacion”, tudo aquilo que a “boa sociedade” joga para baixo do tapete. E poucos têm a coragem de fazê-lo.

Mas, para começar, falemos um pouco do que poderia significar “La buena educacion”, que acho resultaria num filme muito interessante. Simone de Beauvoir já havia falado desta boa educação no seu livro “Mémoires d´une fille rangée”, onde conta sua vida e a educação que quiseram lhe impor. Conta sua infância, adolescência e o início de suas indagações, sua vida universitária, e a transformação definitiva ao encontrar Sartre. Trata-se de obra de uma grande intelectual, onde sua visão crítica do mundo que a cerca impressionou-me imensamente, assim como seu magistral “Le Deuxième Sexe”.
Estas obras me trouxeram muitas outras indagações, além das que já tinha, e novos conceitos que substituíram muitos dos que me haviam sido incutidos desde muito cedo. São as minhas metamorfoses, que fizeram de mim o que sou hoje. Mas, enfim, o que pretendo é fazer aqui algumas observações corriqueiras, ou talvez divagações, sobre aquilo de que não se falou: “La buena educacion”. E por que não também sobre a “mala”?

Afinal, o que é uma “jeune fille rangée”, ou a mulher, neste caso não importa a idade, provida de “buena educacion” ? E aí sou obrigada a retomar velhos chavões, que mesmo que hajam desaparecido do vocabulário da maioria das pessoas, ainda fazem parte das crenças profundas de muita gente. E logo me vem à mente aquela mulher que, coitada, não foi escolhida (seguramente porque tem algum defeito), e por isso não se casou, e assim sendo deve morrer “moça”. Ao pensar nela, na “buena educacion” , vejo claramente aquela que jamais se “perdeu” , a pobrezinha a quem nenhum homem “fez mal” . E morreu virgem. E ao cogitar da “buena educacion” , não há como impedir que me venha à memória minhas colegas de Faculdade, sem nenhum projeto profissional, que disputavam o mais belo enxoval! Será que isto ainda existe? ...enxoval?

Uma mulher bem educada, jovem ou não, pouco importa, tem algumas regras a seguir, ainda que isto lhe custe a felicidade e a vida. A “buena educacion” , humilha, mata, destrói, corrompe. A “buena educacion” me faz pensar em mulheres traídas, que não quiseram tomar seu próprio rumo, porque isto lhes exigiria um esforço, e, talvez, um compromisso que não se sentiam capazes de assumir, ainda que o fossem. A “buena educacion” faz-me lembrar de uma eterna criança, prima de minha mãe, e seu marido, que, gravemente doente, adotou uma menininha para que cuidasse da mãe na velhice, sendo a própria considerada incapaz para fazê-lo. O trágico é que esta “menininha” foi a grande causadora de sua morte.

Ao pensar na “buena educacion” , lembrei-me de histórias de mulheres que desenvolveram doenças graves, e morreram, afogadas na infelicidade de casamentos mal-sucedidos e filhos egoístas. Mulheres que deram a vida e tão pouco receberam em troca. Mas jamais disseram um palavrão, nem tiveram a coragem de enxotar de casa gente que as atormentava. Afinal “mulheres educadas” não podem buscar a felicidade. Mulheres educadas afogam suas mágoas com outras mulheres educadas, e, sem queixas, deixam a vida levá-las. Mulheres vítimas da “buena educacion” passam pela vida sem cogitar delas próprias, são boas mães, boas esposas, sacos de pancadas para todos.

Desde bem jovem, comecei a colocar em questão esta “buena educacion” e a cogitar da “mala” . É verdade que tive sempre a consciência de que tudo dependia de minha independência econômica, o que conquistei graças ao meu esforço, e me orgulho disso. Não fiz alarde de meus conceitos, levei meus pais, já velhos, para temporadas em estações de águas, mas não adotei jamais os princípios de uma menina bem comportada.
Minha “mala educacion” me permitiu chutar a dicotomia "moça/mulher" , “livre/escrava” (Quantas vezes ouvi dizer que fulana era uma mulher livre?) , "casada/encalhada" , "perdida/achada(?)" , "mulher da vida/mulher da morte (!)" , e alguns outros de que não me lembro. Contou-me meu mastologista – sou do grupo de risco já que minha mãe teve câncer de mama- que a maioria das mulheres que opera de câncer, sofreu desilusão amorosa ou foi abandonada. Ao que retruquei que há também aquelas cujos maridos trazem para elas a doença. E alguém já ouviu falar de algum marido traído, ou abandonado, que tenha desenvolvido, pela mágoa, câncer de próstata? Maridos traídos ou abandonados – em geral por maus-tratos às mulheres – muitas vezes resolvem o problema na base do tiro na cabeça. Da mulher.

Minha “mala educacion” me fez ficar “encalhada” aos olhos das mulheres de “buena educacion” até bem tarde. Mas me permitiu cultivar paixões, efêmeras, mas saborosas, o que moças bem-educadas não puderam fazer. Minha “mala educacion” me permite ainda hoje usar roupas colantes ao fazer minha ginástica diária, apesar dos meus muitos anos vividos, almoçar em restaurante diferente de meu companheiro, já que sou vegetariana, viajar quando quiser, ter minhas próprias opiniões. E, acho eu, ajudou-me a encontrar o amor, de alguém que se cansara, bem mais tarde do que eu, de moças bem-comportadas. Minha “mala educacion” me tira do célebre “grupo de risco”, me faz livre, e feliz, porque, afinal, não há bem maior do que a liberdade. E isto meu ginecologista, que me apresenta números, não sabe. E sei que somente a vontade de Deus poderá determinar o que virá.

A mulher que vejo, com sincero pesar, viver seus últimos dias, viveu todos os outros com seu exemplar comportamento. Deixará saudades, muitas. Haverá muita dor. Mas será que valeu a pena não ter tido um dia, pelo menos, de “mala educacion” ?

quarta-feira, 17 de março de 2010

Pegadas do passado

“Eu sonhei que tu estavas tão linda.
Numa festa de raro esplendor.
Teu vestido de baile, lembro ainda
Era branco, todo branco, meu amor
.................................................."

Voltei ao meu passado mais remoto. A primeira imagem que me veio à mente foi de minha avó Joana. E logo surgiu minha mãe, a pequena luz da máquina de costura acessa, pedalando ao som do rádio. Quem sabe aquela mesma canção, na voz poderosa de Carlos Galhardo.

Estávamos, Ricardo e eu, jantando em Tiradentes, à luz de velas, comemorando um dos meus tantos e tantos anos vividos. De repente uma dupla de músicos, violão e bandolim, entrou, e então ouvi esta canção. E com ela abri o arquivo de minha história.

Minha história... Cheguei àquele momento da vida em que começamos a rememorar, a trazer de muito longe lembranças adormecidas, mas que, ainda que adormecidas, estarão para sempre conosco. Até o momento final. Não tenho ilusões de que meu futuro é infinitamente menor do que meu passado. E não poderia ser de outra forma. Tenho tantas histórias para contar! Sempre fui boa observadora, e ouvinte. Cheguei a escrever um livro sobre a história de minha família baseada exclusivamente no que ouvia, sobretudo de minha mãe. Tenho-o guardado. Nem sei quem o leu, mas isto pouco importa. O que importa é o prazer de contar, de falar de um mundo que não existe mais; pessoas, lugares, hábitos, dramas. Não sei se algum dia contarei, não mais “tudo que me contaram”, mas “tudo que vi e vivi”. Diz Ricardo que tenho o talento gaúcho do “contador de histórias”. E aí está meu amado Érico Veríssimo.

Naquela noite, de frente a meu companheiro de tantos anos, diante de uma taça de vinho, falei ...e falei. Foi como se a memória de meu computador natural se abrisse e despejasse no ar, ao som de minha voz, tantas histórias. Falei de gente que já havia esquecido há muito tempo, revivi sensações. Lembrei-me da rua escura, num bairro distante, onde minha família se instalara após a transferência de meu pai para a cidade. Era iluminada por escassos postes altos, de luz amarelada, e, nas noites quentes, a criançada se reunia para brincar. Quase não havia trânsito e livremente transitávamos de uma calçada para outra. E ao descrever a rua, que revia de forma tão clara na minha mente, lembrei-me da mulher paupérrima que vivia em um casebre nos fundos de uma velha casa, bem defronte à nossa. Achava-a feia, mal-cheirosa. Nesta época, eu não tinha mais do que quatro anos. Somente bem mais tarde soube de sua miserável vida de prostituta. Tinha olhos azuis, cabelos louros, seguramente oxigenados, dentes estragados. Morava com a mãe e uma filha. Pobre gente! Já devem ter morrido há muito tempo.

Depois, mudamo-nos para uma vila, onde moravam quase exclusivamente militares. Lembro-me de minhas amiguinhas, todas filhas de militares, mas só guardei o nome de duas: Evinha e Léa. Brincávamos de pique - esconde, nos enfurnando nas varandas das casas, todas em estilo anos quarenta. Ou então brincávamos de estátua, o que eu detestava, já que nunca conseguia imobilizar-me de repente. E me lembro do cruel plano de surra numa menininha, justo no dia em que chegamos de mudança. Era filha da amante de um major, cuja filha fazia parte do grupo. Fiquei estarrecida. Por que bater nela? Não me lembro o que disseram, mas subi para casa aos prantos. Lembro-me bem que meu irmão me perguntava se haviam me maltratado, mas eu não sabia responder. Como acabou a história? Não tenho a mínima idéia.

E havia ainda tanta coisa a contar! Meu pavor dos “sujos”, que desfilavam no Carnaval, a cabeça coberta por uma fronha com dois buracos para os olhos e um para a boca. Acho que era assim, pois a única vez que vi um deles de perto, foi quando ele tocou meu ombro e, virando-me, vi aquele monstro medonho. Disparei aos gritos. Eu tinha cinco anos, mas disso me lembro bem. E dos beliscões de minha irmã, dez anos mais velha, quando eu ficava chateando seu namoro. Apaixonei-me por um de seus namorados, chamava-se José Félix, era gaúcho, como minha família, e lindo! Fiz até promessa quando ele propôs reatar o namoro, mas não deu. Fiquei penalizada. Como minha irmã podia ser tão burra!? E também me lembrei da moça loura, alta, que passava bem defronte à vila, na saída do colégio. Um dia deixou de passar, e então alguém me disse que havia morrido. Fiquei consternada! E também das festas de Cosme e Damião, quando a gente recebia um cornetinho feito de papel rosa, com balinhas dentro. E do meu horror à papinha que minha avó me obrigava a comer, feita de café com leite e pão picado, hábito da América espanhola, transplantado para a região da fronteira com a Argentina. Vi meu pai e minha mãe comerem isto a vida inteira. E sempre me causou o mesmo horror da infância. Lembrei-me de tanta coisa daquele passado tão remoto!

Hoje, aprendi a valorizar cada dia vivido, e dar graças por haver passado por muito sofrimento sem perder a alegria de viver. Compreendi a efemeridade de tudo e que de nada valem pequenas e mesquinhas vaidades, ainda que eu tenha a minha, mas que não é pequena nem mesquinha. Ouvindo naquela noite os dois músicos, que tocavam aquela velha canção, tive a certeza de que havia vencido. Sofrimentos, tive muitos, perdi minha família original, vi meu pai morrer cada dia, vítima de uma terrível cardiopatia, minha mãe sofrer durante seis anos,confinada à uma cama, minha irmã ser condenada pelo câncer, meu irmão morrer poucas horas depois de haver sido internado. Mas estou viva, lembrando aquele passado distante, diante do homem que amo, e brindando à vida.