QUEM SOU EU

Sou professora de Francês, mas hoje minha principal atividade é escrever e ler, além de cuidar dos meus três vira-latas: Charmoso, Príncipe e Luther.



Gosto de fazer ginástica, sou vegetariana e adoro animais em geral, menos baratas.



Sinto especial prazer quando meus textos agradam aos meus leitores. Espero continuar produzindo e me comunicando com todos os meus amigos, neste maravilhoso universo da net.



Seguidores

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Pavane pour une infante défunte

“Infante” é princesa espanhola. Pavane uma dança de movimento lento. Maurice Ravel compôs a obra em 1899, para a princesa de Polignac, na verdade uma judia americana, casada com o conde Edmond de Polignac, da mais antiga nobreza francesa. O título da obra, na verdade, não tem nada a ver com a morte de uma criança. Ravel explicou, tendo tal título causado certa perplexidade, que se tratava simplesmente de uma licença poética. É uma linda, e profundamente melancólica, composição, digna do gênio do grande compositor impressionista.
Lembrei-me dela ao ver a foto do rostinho sorridente de Luana Eger, de três anos, a primeira vítima da tragédia de Santa Catarina. Luana, ao contrário da princesa de Polignac, morreu no alvorecer da vida. E pertencia a uma família pobre, seu pai é um simples comerciário, e, como todas as outras vidas que conhecemos ceifadas ainda na aurora, logo será esquecida, salvo por sua família. Luana é o símbolo desse absurdo com que nos deparamos a cada dia, da morte, da dor, da destruição. Crianças como Luana morrem soterradas, assassinadas, seviciadas. Crianças que são vítimas de alguma força perversa da natureza ou dos homens. Talvez de ambos.
Vi outros rostos infantis, sorridentes, como o da linda Luana. Todos agora mortos. Vi pais, mães, avós, expondo sua dor, tentando entender o porquê de tanto sofrimento. Mas como entender? Lembro-me de “La peste” de Albert Camus, em que, de repente, a cidade de Oran, no norte da África, é invadida por ratos que aparecem mortos aos montes. Mas logo desaparecem, dando lugar à morte de homens, mulheres, crianças. Lembro-me de certo Doutor Rieux, médico herói, tentando salvar vidas. E também de sua revolta diante do sofrimento, maior ainda quando a vítima é uma criança. E da incapacidade do padre em explicar tanta dor de inocentes. E lembrei-me, então, de minha tia Maria, e de tantas outras Marias, personagens reais, vítimas do mesmo mal daquelas do romance de Camus: a peste bubônica. Em Porto Alegre, dos anos vinte, ratos infestavam a cidade imunda, governada por outros ratos, e arrastavam-se doentes, antes que a morte começasse a ceifar vidas humanas. Ignorância, perversidade? Possivelmente ambas. Um dia, meu tio Alfredo vendo um rato que se arrastava pela sala, observa, numa premunição: “Este rato está doente. E isto pode ser grave!”. Mas ninguém presta atenção. Afinal, ratos infestam casas, de todas as classes sociais. Até que a morte chegou para os humanos, e levou Maria, e também sua melhor amiga, e vizinhos, adultos e crianças.
Não importa se o mal veio dos homens ou da natureza ultrajada, enfurecida, justa ou injustamente. O que importa é que a vida vai nos falando, cada vez mais severamente, que nossos limites humanos são infinitamente estreitos. Se a juventude nos faz crer em nossa imortalidade, os anos nos trazem a cruel consciência de tudo que não podemos. E podemos tão pouco! O absurdo de que nos fala Camus, em toda sua obra, tragicamente faz parte da vida. Luana, Isabela, os dois irmãos seviciados, assassinados, esquartejados, queimados, pelo pai, pela madrasta, pela vizinha covarde, pelos médicos omissos, pela Conselheira Tutelar, por todos nós, de quem já nem lembramos mais, os namorados adolescentes, também já quase totalmente esquecidos, Maria, sua melhor amiga, todos que não puderam prosseguir sua caminhada, nos trazem a dolorosa convicção de nossa intrínseca incapacidade em vencer o sofrimento e a morte. Ou, quem sabe, nossa insensibilidade, se a dor e a morte forem do outro. E o absurdo do sofrimento que conduz à morte surge de todos os lados, e dele ninguém pode escapar. Surge da natureza, dos homens, de um deus vingativo, do demônio.
Camus, em obras anteriores, nos dizia que somente no suicídio, ato supremo de rebeldia, poderíamos afrontar este Deus, no qual ele não cria, que nos atormenta com o absurdo da vida. No entanto, em “La Peste” resgata o amor como a única arma de que dispomos para este desafio. E ainda relembra, por intermédio do doutor Rieux, que o sofrimento “havia confrontado os homens ao absurdo de suas existências e à precariedade da condição humana.”
Não haverá “Pavane” para Luana, nem para os garotos supliciados, nem para Isabela, nem para Maria, nem para sua amiguinha, mas para todos nós, que ainda cultivamos a esperança, haverá sempre a possibilidade de exercer o amor, o verdadeiro, aquele expandido, que recobre toda criação, de que falava Dom Helder Câmara.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

A manchete errada
O título não é meu. Roubei-o de Demétrio Magnoli, extraordinário sociólogo da USP. Ilustra um artigo publicado no Globo, logo antes da eleição de Obama. Magnoli chama a atenção para a importância da eleição de Obama, mas não por ser negro. Assinala que, ao contrário de Jesse Jackson, Obama jamais se apresentou como negro, mas como americano, filho de um negro queniano e de uma branca americana. Tem uma irmã, filha de sua mãe com um indonésio, e que é casada com um chinês. Obama tem parentes na África, que comemoraram, com danças típicas, sua vitória. É cidadão do mundo, que supera até as chamadas fronteiras nacionais. Obama significa o pós-racial, o pós-radical nacional, Obama é o pós-moderno.
Dizem que o século XIX só acabou com o fim da Primeira Guerra. Encanta-me pensar que Obama, com sua bela figura pós-racial, nos introduz, afinal, no Terceiro Milênio. E uma vez derrubado o muro que dividia o mundo em dois, Obama significa o pós-ideológico, onde não cabe nenhum sectarismo. Com ele, não dá para pensar em passado, não dá para ser anti-semita, não dá para fanatismos nacionalistas ou religiosos. Tudo isso nos parece ridículo e, ainda mais, odioso. Com ele, recriamos força para brigar contra qualquer preconceito, como sua mãe, que pertencia àquela geração nascida durante ou logo após a Segunda Guerra, e que, nos anos 60 e 70, começou a dizer não ao que estava estabelecido. Obama é o ressurgimento vivo, jovem e belo, de um velho sonho. Temos vencido muitos preconceitos, mas ainda há muita coisa a fazer. Mas, se Obama representa nossa definitiva entrada no século XXI, cotas raciais representam a volta ao passado. Cotas raciais dividem, quando o que se espera é a união, cotas raciais empurram para debaixo do tapete o grande problema do ensino público e promovem a estagnação do país. E tenho certeza de que, no futuro, vamos ter um novo tipo de preconceito, contra o profissional negro, suspeito de pertencer às cotas e de ter tido, portanto, sua trajetória facilitada. E os movimentos negros, que procuram estimular ao máximo a segregação? Mas é politicamente correto defender cotas e movimentos negros, seja a que custo for.
Lembro-me de meus primórdios como professora de francês. Tínhamos, então, a impossível tarefa de transformar nossos alunos, e nós mesmos, em franceses. Pronúncia perfeita, entonação, e até gestualidade! Durante cerca de duas horas, tentávamos em vão uma tarefa, já de cara, impossível. No pós-colonialismo, encontramos o justo objetivo, somos brasileiros, espanhóis, ingleses, chineses, que falam, ou aprendem uma outra língua. Somos para sempre nós mesmos, seja onde for e em qualquer circunstância. Estamos impregnados de nossa cultura, e sem ela não somos A nem B. E não importa, ou não deve importar, se somos brancos, negros, bonitos, feios, homo ou heteros, se somos dotados ou não. Se somos jovens ou não. Neste novo milênio, nossa luta deve ser contra QUALQUER tipo de discriminação. E ele, na verdade, só poderá ser novo se nos despojarmos de nossas velhas e fedorentas mazelas. Nós que vivemos aqueles anos de chumbo, que chutamos o balde, que abrimos portas fechadas, que penetramos em quartos escuros e proibidos. Nós, mulheres, que repudiamos o machismo, o casamento como profissão, a maternidade como único projeto de vida, a servidão feminina, que durante séculos nos humilhou. Vamos partir deste pós-racial e reiniciar, ao lado dos mais jovens, a luta que iniciamos na nossa juventude e que agora, como num belo despertar, nos parece fascinante, como naqueles velhos tempos. Ainda que estejamos certos de que a vitória jamais será definitiva, que sempre haverá muita coisa a combater.
E afinal, quem sabe, nós, contemporâneos dos velhos sonhos de um mundo mais justo, poderemos dizer que valeu a pena, e que não sonhamos o sonho errado ou impossível.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Candidata a amásia de Chavez.

Há algum tempo, vi uma entrevista da ex-mulher de Hugo Chavez. É uma mulher madura, bonita, tanto que foi rainha de beleza na Venezuela. Não compreendo como conseguiu casar-se com Chavez, aquela figura pornográfica – não vou ficar repetindo o que acho dele, porque acaba ficando chato. Mas o interessante é que a ex-mulher o odeia quase tanto quanto eu. Talvez até mais, já que compartilhou a vida com ele. E faz-lhe aberta campanha oposicionista.
Mas, afinal, quem serviria para mulher, ou amante, de um tipo tão asqueroso? Isto despertou minha curiosidade. Procurei nos jornais, nas páginas de política, onde abunda gente nojenta, ou nas policiais, procurei nas desclassificadas que andam por todo lado, em prédios de classe média, ou de luxo. Olhei para todos os lados, observei atentamente. É verdade que ainda não procurei nos sites pornôs, ou nos filmes de mesmo teor da SKY. Mas, afinal, estas são profissionais, e podem até, apesar da profissão meio duvidosa, ser pessoas de bem. Porque acho que para ser amante do indigitado, a mulher tem de ser desclassificada como ele, ofender nossos ouvidos, emitindo afrontas a todas pessoas de bem, debochando de nossos valores fundamentais, mentindo ostensivamente, enganando. Tem que ser uma mulher proibida para menores “e maiores” de 60 anos. Olhei, procurei e não vi. Ou melhor, vi, ouvi, já comentei, mas ela me escapou, não entendo porque.
Mas como sou perseverante, continuei atenta, certa de que algum dia encontraria, assim por acaso, a candidata ideal. E foi à noite, descansando depois de um dia de trabalho –casa, bicharada, cozinha e ainda minha vida intelectual, que compartilho atualmente com uma tal de Mme. de Staël - , que descobri, durante a propaganda eleitoral para Prefeitura de São Paulo, minha candidata, ou melhor a candidata ideal para Chavez. É nossa velha amiga Martinha, aquela mesma que, depois do desastre que matou quase 400 pessoas, dos congestionamentos monstruosos dos aeroportos, onde pessoas desmaiavam, choravam, se agrediam mutuamente, exaustas por esperas de intermináveis, aquela Martinha, membro da mais pura “zelite” paulista, aquela Martinha que nos sugeriu o inesquecível “relaxar e gozar”.
Perplexa, ouvi mais ou menos o seguinte: “Você conhece Kassab? Sabe se é casado, se tem filhos....?” Francamente, não me lembro do resto, mas devia ser tão imundo quanto aquelas primeiras perguntas. Se ouvisse aquilo vindo de alguma campanha da “Tradição, família e propriedade”, já me sentiria ultrajada. Mas partindo da Martinha! Martinha, aquela que sempre “defendeu” as chamadas minorias sexuais. Logo ela, que sempre fingiu ser a defensora dos que têm opção sexual pelo mesmo sexo. E que têm direito a isso! Estava desmascarado seu fingimento, a estratégia que usou, cinicamente, durante anos, para fazer-se conhecida e chegar a Prefeita da maior cidade do Brasil! Finalmente, desmascarada! E afinal, o que temos a ver com as opções sexuais de nossos governantes? Ou seja, para ela vale TUDO para vencer as eleições, até renegar seu “passado?”.
Para refrescar a memória de gente como Martinha, que espero não seja nenhum de meus leitores, gostaria de lembrar alguns exemplos que iluminam a história da humanidade. Eram homossexuais guerreiros como Alexandre da Macedônia, Ricardo Coração de Leão, e alguns outros de que não me lembro agora. E artistas geniais como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Caravaggio, e outros cuja história pessoal desconheço. E há, por outro lado, gente como Hitler, cuja sexualidade é meio discutível, mas que possivelmente não era gay, sendo provavelmente um misógino. Mas não se discute a masculinidade de Mussolini. Sua amante, Clara Petacci, 29 anos mais jovem do que ele, era uma linda jovem da alta sociedade italiana, que foi executada e pendurada pelos pés à exposição pública junto ao amante. As fotos dos dois mortos são impressionantes! Mao deve ter tido amantes, mas provavelmente todas feiosas, como convinha ao regime que presidia com mão de ferro. Stalin teve várias mulheres, sendo que uma delas suicidou-se. Será que não foi por causa dele? Pol Pot, aquele do Camboja, tenho certeza, também não era homossexual.
Então, Martinha, defensora dos milhões de homossexuais, que, por este país afora, sofrem, ainda, discriminações e agressões, não confunda as coisas. Se Kassab for gay ou machão, isto é problema DELE. Quanto a você, acho que deve abandonar aquele marido, que parece não lhe dar muita bola – dizem as más-línguas que o interesse do tal fulano era só o de ganhar espaço e intermediar a compra do “Aerolula”, o que lhe rendeu uma fortuna com dinheiro nosso – e procurar um macho à sua altura.
E não conheço ninguém mais digno de você do que Chavez.
E só para terminar. Nesta campanha do vale-tudo, Lula, num dos seus ataques histéricos de estupidez, denunciou preconceito contra a Martinha. Evidentemente, por parte da “zelite” machista. Vale lembrar, como lembrou um pequeno editorial do Globo, que Martinha nasceu “Schmidt de Vasconcellos” e permanece “Matarazzo Suplicy!”
É pouco?

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Preto, branco e colorido.

- Ah! ...
Minha amiga estava perplexa, boquiaberta, com o que eu acabara de lhe dizer. Minha amiga não é uma boboca qualquer. É uma mulher inteligente, engajada nos movimentos sociais, engajada de fato, tanto que abandonou o PT há muito tempo, antes mesmo de grande parte dos que acreditavam nele. Abandonou quando descobriu que era tudo mentira, e o que ela fazia, dedicando aos excluídos os mais jovens anos de sua vida, era pra valer. Minha amiga cuidou de prostitutas, viveu entre elas, cuidou dos presidiários, não viveu entre eles, mas deu o melhor de si para que pudessem recomeçar. Foi quando trabalhava com presidiários, que conheceu seu marido, ele também dedicado a causas humanitárias. Casaram-se, tiveram dois filhos. Ele morreu. Ela foi sua companheira fiel, dedicada, até o momento final.
- Ah!...
Esta surpresa vinha do que eu lhe contava. E a mim não parecia nada de extraordinário. Contei-lhe que, quando Ricardo e eu decidimos viver juntos, eu já havia tido uma longa história de efêmeras paixões, contei-lhe que nunca havia ligado para virgindade, e que minha vida de mulher adulta e experiente era muito mais antiga do que ela poderia imaginar. Lembrei-lhe que Ricardo já havia sido casado, que saíra do casamento por estar apaixonado por outra mulher, que não era eu, que antes de me conhecer também tivera grandes e efêmeras paixões. Contei-lhe que falávamos de nossos passados, com suas paixões e decepções, naturalmente. Contei-lhe que tínhamos uma história pregressa, que não podíamos, nem queríamos apagar, que fazia parte de nós e que se o fizéssemos teríamos apagado parte de nós mesmos. Contei-lhe que temos o princípio fundamental, quase religioso, de respeitar mutuamente nossa individualidade, o que significa que não somos um só corpo e uma só alma. Contei-lhe que cada um de nós tem seu projeto pessoal, em que o outro não se intromete, mas procura ajudar, como bom companheiro.
E mais ainda, contei-lhe que a meus pais, que amei sinceramente, não foi permitido determinar nada em minha vida adulta. Que tínhamos, apesar de alguma resistência deles, sobretudo de minha mãe, uma relação em que não se colocava a “experiência” e “sabedoria” dos mais velhos. Escutei-os e aceitei somente na medida em que eu própria concordava. Contei-lhe que não fui hipócrita, ocultando-lhes a parte de minha vida que poderia desagrada-los, ou chocá-los. Contei-lhe que tive grandes embates com eles, mas que fui eu que pude encarregar-me, no final de suas vidas, deles próprios e dos grandes problemas que tínhamos em casa. E isto porque eu já havia vivido muito!
Falhei-lhe, enfim, de um mundo que não é preto e branco. Falhei-lhe de um mundo onde não posso ser classificada como “mulher da vida”, nem como “mulher da morte”, como me lembrou Ricardo. Sou uma mulher livre, que não gosta de instituições, que ama sinceramente seu companheiro, e a si mesma. Repito que desde bem cedo repudiei aquele sermão do casamento de um só corpo e uma só alma. Que sempre tive consciência de minha responsabilidade diante da vida e que me classifico como “colorida”, de variadas cores, como o arco-íris, que tanto admiramos.
Como disse Soeur Emmanuelle, religiosa francesa, que convivia com no Cairo com os pobres de religião muçulmana, amar dá à vida uma belíssima coloração. Cativante.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Dostoievsky, Alice e o papa-hóstia.

“Deves amar tudo o que Deus criou,
tanto o universo como o ínfimo grão de areia.
Amar a folha pequenina como também cada raio de sol.
Os animais e as plantas. Se amares todas as coisas,
atingirás o mistério divino que nelas habita e assim,
dia a dia, tua capacidade de perceber a verdade aumentará,
e a tua consciência se abrirá a um amor que abrange tudo.”
O texto não é meu. Quem me dera! É de Dostoievsky. Mas sinto-me feliz em poder dizer que é assim que sinto a presença de Deus. E duvido que haja uma verdadeira crença no sagrado que não atente para toda a criação do Criador. Quando falo com amor nos animais, quando admiro a natureza, quando olho uma florzinha, quando reparo nas estrelas, quando o perfume das flores me encanta, sinto a presença do Criador.
Foi com minha mãe que aprendi a amar a Deus desta forma. Minha mãe, que nunca ia à igreja, não comungava, não confessava. Que jamais se preocupou com Primeira Comunhão dos filhos. Nem sei se meu irmão foi batizado. Nunca ouvi falar em madrinha ou padrinho seus. No entanto, foi com esta mulher, aparentemente descrente, que aprendi a apreender Deus em toda criatura. Foi com ela que aprendi a respeitar as pessoas, fossem elas quem fossem, sem jamais discriminá-las. Talvez porque ela própria tenha sido discriminada pela sua condição de “filha natural”. Foi com ela que aprendi a amar animais e natureza, respeitando-os e rebelando-me, sem temor, contra os que não o fazem. Foi minha Alice, alheia a qualquer religião, mas profundamente imbuída da consciência da presença de Deus, que me ensinou a emocionar-me com o que diz Dostoievsky.
Certa vez, ouvi da mãe, papa-hostia, de um sujeito, também papa-hostia, que o tal fulano havia matado o gato de “estimação” da família com um ponta-pé. Motivo: supunha-se que uma certa criança houvesse se assustado com o bichano. E contava com naturalidade! Quanta maldade, quanta covardia! Imediatamente, tive a certeza que toda aquela religiosidade era falsa. Estávamos num jantar em casa de amigos comuns. Perplexa, retruquei alguma coisa, se fosse dizer o que sentia iria provocar indignação, não contra o perverso, mas contra mim. Mas deveria ter expressado meu sentimento de revolta, e desprezo. Certamente, ficaria melhor, pelo menos comigo mesma.
É por isso que digo, obrigada, mãe. Pela tua capacidade de amar, pelo teu efetivo amor a Deus. E tenho certeza de que conquistaste, lá onde estás agora, a plena capacidade de perceber a VERDADE. O mistério divino que não vemos, que se esconde por trás do que vemos, e que somente alguns são capazes de perceber.
É por isso, mãe, que tua lembrança terá sempre para mim o suave perfume das flores que tanto amavas.

Quanto a mim, me pergunto: será que não fui parceira do Demônio, não expressando o que sentia de fato diante da maldade que me contava, com tanta naturalidade, a beata?

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Possuídos II

No meu último artigo, aconteceu algo estranho. Sempre tive muito cuidado com a correção, coerência e coesão textual. Pois desta vez, relendo-o no dia seguinte, constatei muitas gralhas, incorreções na utilização de termos, repetições. Estranho!
Tenho uma hipótese, o Demônio se sentiu atingido e resolveu se vingar. Bateu com o rabo no teclado, fechou meus olhos, deixou-me insensível para algo que para mim sempre constitui um trabalho, além de intelectual, profundamente artesanal. E tudo isso sem que eu percebesse minimamente. Só não conseguiu me calar.
Não o temo, sei que ele não tem como me vencer.
E se querem lutar contra ele, por favor, divulguem aquela denúncia do suplício do filhotinho de cachorro. Lembrem-se de que, para o Demônio, gente, bicho, adulto ou criança, é tudo objeto de cobiça.
Não façam como aqueles médicos que se calaram diante das crianças barbaramente surradas. Ou como a Conselheira Tutelar que mandou de volta para casa – ou para a morte - as duas crianças. Eles também são parceiros de Demônio.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Possuídos.

Ele está nos meio de nós.

Há um filme fantástico, estrelado por Denzel Washington, intitulado “Possuídos”. Seu tema é a encarnação do Demônio em diversos indivíduos. Apodera-se de seus corpos, diverte-se penetrando naqueles que nele esbarram, leva-os a cometer atrocidades indescritíveis. Basta um simples, ligeiro toque no possuído e o Demônio já possui outro. Passeia pelos parques, pulando diabolicamente de um para outro, leva homens e mulheres comuns a cometer atrocidades indescritíveis. Seu desígnio é causar dor, morte, destruição. Diverte-se.
Há alguns anos, o Embaixador Carlos Henrique Cardim, amigo de Ricardo, meu marido, foi visitar seu mestre, Leszek Kolakovski, filósofo polonês radicado na Inglaterra, professor de Oxford. Conta Cardim que, no decorrer da conversa, perguntou-lhe se acreditava em Deus, ao que o velho mestre respondeu prontamente: “Não sei se Deus existe, mas que o Diabo existe, não há dúvida”.
Eu, não filósofa, creio na existência de Deus, mas também estou convicta da existência do Demônio. Não aquele de rabo, preto, com tridente, lançando no ar o odor fétido do enxofre. Meu Demônio parece-se mais com o do filme, e habita entre nós. Encarna em certos indivíduos, faz notar sua presença cometendo atrocidades, e certo da impunidade, sai rindo de cada um dos “bons”. Quando um pai, ajudado pela mulher, madrasta das crianças, mata, esquarteja, queima os pedaços dos cadáveres e joga no lixo o que restou, não há dúvida de que o demônio cumpriu seu desígnio de crueldade. Quando vemos uma criança ser jogada, provavelmente ainda viva, pela janela, por seu próprio pai, não podemos deixar de ver sua marca inconfundível. Quando vemos os dois monstros enforcando por divertimento o filhotinho de cachorro, temos que acreditar que ele lá está.
Quando uma nação inteira enlouquece e saúda Hitler, é para o Diabo seu momento de apoteose, sua glória. Quando Stalin faz morrer de fome milhões de camponeses, o demônio ri e esfrega as mãos. Quando Mao faz o mesmo com milhões de chineses, que glória deve sentir o Maligno! Quando Pol Pot, no Camboja, elimina milhões de pessoas inocentes, inclusive crianças, nos seus Khmers vermelhos, lá está ele novamente, triunfante. Quando assistimos, horrorizados, aos acontecimentos de 11 de setembro, sabemos que não foi em nome de Deus, isto seria totalmente impossível, mas sim mais um triunfo do Diabo. E lembrem-se de que este não é um atributo exclusivo do fanatismo islâmico, mas também da Santa Igreja Católica, com suas fogueiras purificadoras da Inquisição.
Mas, afinal, por que o mal se encarna em certos indivíduos? O filme parece, a princípio, excluir qualquer possibilidade de escolha, não importa quem pode ser “tocado”, não pelo “sagrado” mas pelo “diabólico”. Assim, ele pode passar de leve, sem causar muito dano, indo divertir-se com alguém, talvez mais “acessível”. Como acredito na liberdade com a mesma firmeza com que acredito em Deus, sendo esse traço o que nos deferência dos outros animais, e dos objetos, se somos “condenados à liberdade” como diz Sartre, a escolha do Mal, que está entre nós, é nossa opção. E o Demônio conhece nossos gostos. Não sou teóloga, nem filósofa, mas conheço a vida e as pessoas. E afirmo, com absoluta convicção, que quem escolheu fazer da dor alheia seu “projeto” deve ser definitivamente eliminado da sociedade.
Há aqueles casos que chamam de “sociopatas”, incapazes de conviver em sociedade. Dizem os doutores que se trata de indivíduos que não tiveram opção, que nasceram doentes, que não são responsáveis pelos seus crimes. Então que sejam trancafiados pelo resto da vida. Que nos diga a história do Bandido da Luz Vermelha, considerado “recuperado” pelos doutos psiquiatras forenses, e que logo ao sair cometeu outro crime. Aliás, caso semelhante ocorreu na França, provocando um sério desentendimento entre juízes e Sarkosy, nesta época, se não me engano, Ministro da Justiça. O que fazer de tipos com Champinha (?), aquele que matou com requintes de crueldade o casal de namorados em São Paulo? Dizia-me um amigo psiquiatra, a respeito de um criminoso que havia matado muitas mulheres: “Ele simplesmente queria matar”.Ou seja, nada de querer a qualquer custo justificar o crime com sofisticadas análises psiquiátricas.
E também seriam “sociopatas” tipos como Hitler, Stalin, Pol Pot, Mao, e tantos outros que passaram à História pela sua crueldade? E a mulher que torturava a menina, os torturadores da ditadura, encabeçados pelo Delegado Sergio Paranhos Fleury? E os de tantas outras ditaduras? E a babá que espancava a criança? Sociopatas ou simplesmente tipos que escolheram o mal? Confesso que não tenho elementos para levar adiante este debate. Psiquiatras, cientistas políticos, historiadores, todos teriam sua versão para tanta maldade. No entanto, uma coisa jamais poderão negar:
O Mal está entre nós, e se manifesta diante de nossos olhos. Mas quantas vezes, por comodismo ou covardia, nos calamos? Sem dúvida, desta forma, também nós escolhemos a parceria do Demônio. Não seriam seus parceiros os médicos que se calaram quando, há algum tempo atrás, os dois meninos assassinados foram param no hospital após uma surra da madrasta?
Crime: haviam tirado dois pãezinhos do armário.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

MARPESSA DAWN (1934-2008)

No Louvre, mil botões da cultura florescem,
Em juvenis Giocondas e em Picassos geniais.
Percorrendo os salões as emoções crescem
Num concerto divino, sem acordes finais.

À saída da sala de Osíris aparecem
Num canto, a sua esfinge e com traços iguais,
Num outro, uma mulher. Seus membros se estremecem
Em êxtase despido de fórmulas rituais.

Marpessa Dawn! Te vimos e não te esqueceremos,
Deusa egípcia que vieste trazer-nos a visão
De mundos milenares. Em teu rosto hoje vemos
Séculos de mistério, de dor e de paixão.

Sob o manto de prata das noites de luar
Tua oriental beleza voltarei a cantar...

Paris, Novembro de 1986.

Foi em Paris, visitando o Museu do Louvre, que Ricardo conheceu a beleza negra que atuou, em 1959, no filme “Orfeu do Carnaval”. Tornaram-se amigos e se corresponderam durante algum tempo. Marpessa Dawn morreu há cerca de um mês aos 84 anos.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

ETERNAMENTE, TEMPO DE AMA-LO.

"Quando a primavera chegar
Nos veremos de novo
Falaremos de coisas vividas
e sempre vivas
De afetos passados, de afetos presentes,
Falaremos de rosas, de espinhos
de contos de fadas,
De crianças brincando,
Mas sobretudo de nós.
Ouvirei teu silêncio, ouvirás o meu,
Nos daremos as mãos e dançaremos,
uma dança sem espaço, sem tempo;
Uma dança sem fim,
e nos envolveremos
no doce manto da ternura.
Ah! Quando a primavera chegar"...


Minha amiga Rosane mandou-me um lindo poema que fala do amor que eternamente a unirá ao seu amado que tão cedo partiu.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

De meu amor para mim.

Llegaste al mediodía
Hada de mis ensueños
Para que, juntos, vivamos
Tardes luminosas...
Beatrice/Maria Lúcia
Eres mi guía
En la selva obscura de los afanes
Y de las tareas inacabanadas.
12 de Agosto de 2008 11:46

terça-feira, 16 de setembro de 2008

CINEMA MUDO

“Sobre tecnologia antigrampo, a única eficaz é não abrir a boca.”
A jóia é do Ministro Chefe do Gabinete de Segurança Institucional, o inigualável General Jorge Felix. O General é brilhante! Conseguiu semear o medo em todos nós. Estamos todos ameaçados de ser grampeados! Porque parece que grampear é simples de realizar e impossível de resolver. Eu, particularmente, tenho andado meio cabreira com uma barulheira que surge repentinamente, bem no meio de uma conversa. Porque, tendo um Ministro como o General (e da SEGURANÇA seja lá do que for), posso até acreditar que arapongas, que pertencem ao mesmo governo do espantoso militar, sejam tão desastrados quanto ele, a ponto de anunciar o grampo. Na verdade, meu único delito é ser contra este governo.
Uma vez que acredito nesta possibilidade, penso em algumas situações complicadas. Temo, por exemplo, que um simples pedido de esclarecimento a minha ginecologista possa desencadear uma avalanche de fofocas sobre minha vida particular e, sobretudo, sexual. Arapongas, em geral, são ignorantes e inescrupulosos, é claro. Assim, seguindo o conselho do General, vou abdicar do telefone em casos médicos. Porque há também o psicoterapeuta com quem falo muito raramente pelo telefone, mas a quem posso recorrer em caso de GRANDE necessidade. Perigosíssimo!
Mas há coisas simples, como, por exemplo, conversar com uma amiga e, sem querer, fazer algum comentário sobre outra, ou outras. De agora em diante, terei o máximo cuidado, falando o menos possível, vigiando meus pensamentos e cortando qualquer insinuação maldosa. Dizem que fêmeas não suportam fêmeas. Aliás, tenho reparado minha cadelinha, que brinca com machos, mas avança sobre fêmeas. E por falar em conversas telefônicas femininas, lembro-me de que certa vez meu pai teve que vir do quartel, furioso, para verificar se havia esquecido em casa certo documento. Fez questão de vir pessoalmente para poder constatar pessoalmente que minha mãe estava há horas conversando com amigas no telefone. Indignado, quis saber com quem conversava durante tanto tempo: “Com uma amiga, trocávamos receitas”. Eu era ainda bem pequena e acreditei piamente. Minha mãe não seria capaz de criticar outra mulher. Ou seria? Bons tempos aqueles em que os únicos grampos conhecidos eram os de cabelo.
Talvez, seguindo os sábios conselhos do General, seria melhor cortar de uma vez de nossas vidas o telefone. Afinal, temos a Internet. O problema é que Walquíria, uma de minhas principais interlocutoras, só olha seus e-mails uma vez por semana. Não conheço o endereço eletrônico de meu terapeuta, minhas sobrinhas se esquecem de ver a correspondência. Quanto à ginecologista, que mora defronte à minha casa, já resolvi que vou visitá-la quando surgir qualquer dúvida.
Ainda estou estudando outras estratégias para calar a boca e me proteger. É importante. Já conclui que sempre que o Felix abre a sua e exala um veredicto, a gente tem que acreditar. Lembram-se daquele: “Quanto menos transparência, melhor”? Aliás, dizem que o Lula ficou tão contrariado com as bobagens ditas pelo general que cancelou as participações dele nas reuniões matinais dos dias seguintes. Mas então, não seria melhor o mandar calar a boca e ficar em casa definitivamente, dizendo besteiras para a mulher?

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

ESTATUTO DO ALÉM

Sempre considerei o “Estatuto da criança e do adolescente” um instrumento estratégico para o crime organizado, que utiliza crianças e adolescentes, além de promover a total impunidade de cruéis assassinos “di menor”. Não só eu, mas quase toda sociedade brasileira. Mas diante do crime monstruoso cometido pelo pai e pela madrasta de dois meninos de 12 e 13 anos, resolvi inteirar-me do conteúdo do dito Estatuto. Afinal, tratando-se de algo tão polêmico, é preciso que a sociedade o conheça melhor.
Data de 1990, e tem como artigo 5o: “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou OMISSÃO, aos seus direitos fundamentais”. Lendo nos jornais a história das duas infelizes crianças, ficamos sabendo que foram encontrados na rua, já tarde da noite, e que disseram aos policiais que os encontraram que haviam sido expulsos de casa. E aí entra um outro artigo do Estatuto, que vale a pena lembrar: “Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais”. E diz ainda em artigo mais adiante: “A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis”.
Aí leio no jornal (O Globo-domingo, 7 de setembro): “Na delegacia, a conselheira Edna Aparecida Ribeiro Amante decidiu leva-los de volta para casa. Os meninos não queriam ir e pediram para serem levados a um abrigo, pois tinham medo de voltar para casa.” Ou seja, a tal Conselheira Tutelar, nem siquer procurou averiguar nada – o que é artigo do Estatuto- , mostrou total ausência de compaixão, autorgando-se o dom da propriedade da verdade, acima de qualquer denúncia feita por duas crianças aterrorizadas Mas afinal, que tipo de gente eles empregam no tal de Conselho Tutelar? E o que é, afinal, o tal Conselho Tutelar, que tem nos seus quadros gente tão desqualificada? Diz ele, num de seus primeiros artigos acerca de suas funções: “Atender às crianças e adolescentes que tiverem seus direitos ameaçados por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; por falta; omissão ou abuso dos pais ou responsáveis; ou em razão de sua conduta”.E que atendimento tiveram os infelizes? A Sra. Amante, sabe-se lá de quem, traçou-lhes o trágico destino.
Uma vizinha da “família” declarou na televisão, candidamente, que ouvia as surras e os pedidos de clemência das duas crianças. E é claro ficou na dela. Afinal, o que ela tem a ver com a vida dos outros? Lembro-me então de minha avó Joana, mulher transgressora das leis do bom comportamento, mas de grande valor moral. Ainda bem jovem não teve medo de invadir a casa de um vizinho, que, bêbado, espancava a mulher e os filhos. Tomou-lhe das mãos o cinto e deu-lhe uma surra. E o covarde não rebateu. De outra vez, invadiu a casa de uma vizinha que surrava constantemente a enteada. Arrancou a criança das mãos da megera e levou-a para nossa casa, onde ficou até que a avó materna viesse busca-la. Ao pai, chamou-o, bem gauchamente, de “banana”, desmoralizado. Será que a humanidade piorou tanto que não se encontram mais Joanas e sim Amantes e vizinhas medrosas e omissas.
O Estatuto é bem elaborado, procura proteger e dignificar a criança, ainda que algumas vezes derrape no excesso. No Art. 16, parágrafo VII, lê-se que o direito à liberdade compreende buscar refúgio, auxílio e orientação. Ou seja, o que os coitados dos garotos procuraram. Continuando, lemos princípios nobres como o que diz que as entidades, dentre as quais acredito estar o tal Conselho Tutelar, têm a obrigação de comunicar à autoridade judiciária, periodicamente, os casos em que se mostre inviável ou impossível o reatamento dos vínculos familiares. Ou ainda, o que serve tanto para o tal Conselho quanto para a tal vizinha, que é dever de TODOS prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente.
É pena que o Brasil seja o Brasil. Dizem que a culpa é dos portugueses, que só se interessavam pelas nossas riquezas. Agora é tarde para mudarmos de colonizadores. O fato é que do Estatuto só ficou para a sociedade a sua parte macunaímica, do herói sem nenhum caráter, defendida por tipos como Eduardo Greenhalgh, aquela que beneficia bandidos. É pena que Joanas, ainda que não sejam boas-moças, mas corajosas e honestas, quase tenham desaparecido, que Amantes – provavelmente de algum bandido – decidam num organismo que deveria primar pela decência, e que vizinhas covardes confessem tranqüilamente sua covardia.
E agora, defensores dos direitos das crianças e dos adolescentes, o que vai acontecer com Edna Aparecida Ribeiro Amante? Ela, tanto quanto a vizinha medrosa, infringiu o Estatuto. Afinal, não disse o Presidente que qualquer trabalho infantil terá seu responsável punido, e tem que ser denunciado, já que fere o referido Estatuto? E no caso da tragédia das duas crianças, não vale a mesma regra?
No fim da vida, cega, a megera que surrava a enteada dizia a minha mãe: “Como eu gostava de Dona Joana! Nós sempre nos demos tão bem!”
Minha mãe e eu nos entreolhávamos e sorriamos.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Feios e fedorentos

Estávamos, Ricardo e eu, degustando um vinho chileno, com queijos, e outros petiscos. Nossa saleta de jantar estava iluminada com velas nos castiçais vermelhos, que fazem os meus encantos. A televisão estava ligada, mas conversávamos distraídos. De repente, minha atenção desperta. Surge na tela uma cena cinzenta, uma mulher cinzenta, árvores cinzentas, casas cinzentas. Um mundo cinza, feio, sem graça, infeliz. Senti-me como o escritor russo, Máximo Gorki, ao ver pela primeira vez uma filmagem, em 1896. Odiou-a. Odiou aquele mundo em preto e branco, sem som, sem vida. E descreveu-o: “Ontem à noite, estive no Reino das Sombras. Se vocês pudessem imaginar a estranheza desse mundo! Um mundo sem cores, sem som. Tudo aqui - a terra, a água, o ar, as árvores, as pessoas-, tudo é feito de um cinza monótono. Raios de sol cinzentos, num rosto cinzento, folhas de árvores que são cinzentas como a cinza. Não a vida, mas a sombra da vida.” E assim prossegue descrevendo aquele espectro de vida que a tela lhe mostrava. Não poderia supor que assistia ao início de uma coisa maravilhosa, que todos os dias nos encanta.
Mas ao ver aquelas cenas, de um mundo cinzento – não me lembro se havia algum som –, além de Gorki, me vieram à lembrança meus antigos anos 70, ou mais precisamente meu namorado Robert, que, afinal, tornou-se para mim símbolo daquela época. Da mesma forma que ao ler o texto de Gorki, há algum tempo, lembrei-me dele. Francês, parisiense, conheci-o durante um Congresso. Èramos jovens. Por coincidência ele morava em Porto Alegre, onde ainda mora, cidade para onde eu me mudaria logo depois para fazer meu Mestrado. Com ele aprendi a descobrir do que não gostava, e também do que gostava. Aprendi que não queria viver à chinesa, ao estilo Mao, com roupas cinzas, como as da moça da propaganda. Descobri que não queria ser igual a todo mundo. Descobri que gostava de saltos altos, de cabelos cuidados, com estilo. Descobri, como a moça, no final da propaganda, que gostava de batom, de perfume, de roupas elegantes, de riso, de alegria, de beleza. Descobri que gostava do conforto, do aconchego do lar. Enfim, descobri que gostava de tudo aquilo que ele considerava “da burguesia decadente”. Aprendi que adorava, e adoro, ser burguesa.
Robert foi minha primeira experiência com o mundo triste do socialismo real. Ou será que ele fazia confusão entre feiúra, sujeira, fedor, e revolução? Ao ver, nas Olimpíadas, a beleza de espetáculos que nos ofereceram, o sorriso esfuziante dos chineses, imagino que vivem um momento de quase transfiguração. Mas quando vi os pobres camponeses, trabalhadores braçais que não receberam seus salários, que não sabem como voltar para suas miseráveis aldeias, que não podem siquer sentar nas calçadas, imagino o mundo cinza com que sonhava meu amigo Robert para concretizar a sua tão sonhada revolução socialista. Que afinal, não tirou ninguém da miséria. Muito pelo contrário.
Uma candidata, no seu programa, apresentou-se como contemporânea dos Tupamaros, também sou. Somos daqueles tempos já antigos. Hoje quase ninguém mais sabe quem foram. E, se algum dia sonhei em ser companheira daqueles rebeldes, o sonho começou a se extinguir com o mundo cinza que me apresentava meu namorado francês. Mas se sonhamos o sonho errado, o sonho de um mundo melhor, mais justo, este não acabou.
Como é bom ser burguês! E tenho certeza de que, a julgar pela sua elegância, sempre que o encontro em algum Congresso, Robert, hoje, também pensa assim. Aliás, basta ver alguma cena de Cuba para constatar que não deu certo. E que, apesar da beleza tropical, tudo é feio, sujo, parece fedorento...e cinza. Mas quem sabe, como na história do cinema, alguma coisa maravilhosa está prestes a acontecer por lá?
Um esclarecimento, tratava-se de uma propaganda de “O Boticário”, loja pra lá de burguesa.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Esteja onde estiver.

“Esteja onde estiver, em outros espaços, em outros tempos, ou em outras dimensões, lá estará ele, livre de todas as servidões, nos esperando, para, juntos, fazermos parte do infinito”.

Esta foi uma homenagem que meu amigo Waldyr prestou a meu cunhado. O ano é 2005. Foi enviada a um jornalista que a publicou agora, em 2008, quando chegou a vez de Waldyr partir. José Carlos, meu cunhado, advogado, jornalista, escritor, poeta, foi um de seus melhores amigos. Waldyr, médico, amava as letras, tinha grande sensibilidade e talento, e era um ótimo “causeur”. Em um jantar em nossa casa, distraiu-nos, a mim e a Ricardo, com as velhas histórias de sua família, originária do Líbano. Waldyr partiu, Zé partiu, como é o normal da vida. Mas partiram quando ainda havia muita coisa a fazer e aproveitar. Partiram também alguns de seus melhores amigos, nenhum deles na velhice, e imagino que devam, agora, juntos, participar desse insondável infinito, que nos espera a todos.
Imagino que Waldyr, com seu riso tonitruante, que se anunciava ainda de longe, tenha provocado grande alvoroço entre os amigos que talvez já o esperassem. Não posso saber o que têm a se dizer, mas posso apostar que o papo vai ser longo, cheio de saudade. Ele, o recém-chegado, com a sensibilidade à flor da pele, ao revê-los, deve ter chorado e feito chorar. Posso apostar que chorou por ter sido obrigado a deixar aqui aqueles que amava intensamente, mas também creio que suas lágrimas vieram daquela emoção que sentimos ao reencontrar alguém que amamos e que não vemos há muito tempo.
Há alguns dias falei da espuma dos dias, do imperceptível fio do presente, da incerteza do amanhã. A morte de meu amigo me traz novamente à lembrança tempos antigos, contemporâneos daqueles de que falei então. Caxambu era o palco de encontro de nossas famílias. Eu tinha com meus pais uma negociação tácita de leva-los a passear e, depois, seguir meus próprios programas. Afinal, eu era bem jovem! Havia muita gente, além das crianças. Dos adultos, sobramos Marlene, viúva de meu amigo, sua velha mãe e eu. Aos poucos, a vida foi levando, levando para este insondável infinito, quase todos. Risos, brincadeiras, na hora do almoço, no jantar, foram se extinguindo. Caxambu foi esquecido, as crianças tornaram-se adultas, e há hoje outras crianças. Os jovens de então, nós, ficamos órfãos já há tempos. Hoje, os novos órfãos são aquelas crianças de então. Velhas fotos mostram flagrantes de amigos, de brincadeiras, de momentos de felicidade compartilhada. Jamais vamos esquecer aqueles dias. Mas o “futuro” daquele “presente” já antigo, insondável como o infinito, provou, mais uma vez, a sua total imprevisibilidade. Meu irmão Sergio partiu, ainda tão jovem! Partiu Zé, Teresa, minha inesquecível irmã. Quem poderia supor que um dos mais velhos os sobreviveria? Dos adultos, estamos aqui, Marlene e eu, para relembrar, rir e chorar.
Waldyr foi o amigo fiel que nos acompanhou em nossas sucessivas perdas, até que, tendo perdido todos os que comigo escreveram minha história mais antiga, senti sua mão amiga, seu abraço, que me dizia “Pode contar comigo”.
Obrigada, meu amigo. Um dia, não sei quando, sei que poderei falar-lhe de minha gratidão.
E até Deus sabe quando.

sábado, 16 de agosto de 2008

Quem se habilita?

“Quem se habilita a despachar Chavez para o outro mundo?”
É uma pergunta cruel, uma proposta indecorosa, vale uma punição de Deus, afinal o homenzinho é filho Dele. Será? Para mim, Chavez nasceu de um incesto do demônio com alguma demônia irmã. Procuro no que conheço de governantes desclassificados, corruptos, ordinários, feios, nojentos, e não encontro nada parecido. Somoza, Stroeesner (?), Pinochet, e tantos outros rebentos horrendos surgidos, por esta América Latina, parecem gente melhor perto dele. Os grandes monstros da História contemporânea, Hitler, Mussolini, Mao, Stalin, e aqueles de nome arrevesado lá do Extremo Oriente, tinham, pelo menos, um pouco mais de compostura. E afinal, já foram varridos do convívio humano, por decisão da vida. Porque Chavez tem a compostura de um dono de bordel. E olhe lá!
Perto dele Lula parece um Churchill, um Roosevelt, toma ares de estadista. O índio fica parecendo um refinado galã de cinema. Rafael Correa, do Equador, aliás, o mais cultivado de todos, parece Dom Quixote ao lado de Sancho Pança. Só se compara a ele, o tal de Ortega, figurinha mais do que subalterna, acusado de haver estuprado a enteada, com ou sem a conivência da mulher, durante anos. Aliás, de tão subalterna, pensei que houvesse morrido, e levei um susto quando apareceu como Presidente. Ou seja, trocaram Somoza por Ortega, e tudo ficou na mesma podridão, só que agora à esquerda. Isto sem esquecer a patética figura de Cristina Kichner, tentando repetir Evita, sem ter nenhum de seus atributos, a começar pela inteligência e carisma. Ah! E ainda tem um ex-Bispo, oriundo da Teologia da Libertação, que, é claro, se alinha com todos estes e está tentando, em nome de uma ideologia que não deu certo em lugar nenhum, extorquir dinheiro do companheiro Lula. E pairando sobre todos o morto-vivo, Fidel. Ou será que já desencarnou e a gente nem ficou sabendo? Porque, nos regimes totalitários, tudo é mantido em segredo.
Não temos, e continuaremos a não ter, nenhuma importância no cenário mundial. Nossos povos vivem, em sua maioria, em condições precaríssimas. A corrupção grassa. Antes era a direita que nos infelicitava, mas havia esperança. Hoje somos assolados pela ideologia do fracasso, aquela que afundou todos os países onde se estabeleceu. E tem produzido para o mundo capitalista um exercito de prostitutas e proxenetas. Afinal, é preciso sobreviver. Tenho medo do que está por acontecer, aqui, no Brasil, tenho medo do MST, da Via Campesina, da Teologia da Libertação, que se perdeu nos descaminhos do marxismo.
É preciso lembrar que os Bárbaros invadiram o Império Romano não para destruí-lo, mas, sobretudo, porque queriam usufruir dos benefícios de uma civilização que oferecia aos cidadãos aquilo com que eles, Bárbaros, sonhavam. Porque, afinal, como já descobriram os chineses, lá ao jeito despótico deles, o que todo mundo quer é poder viver bem, confortavelmente, com segurança. E para nós, que não temos cultura despótica, com liberdade.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

A espuma dos dias

Já é chavão dizer que não há nada mais incerto do que o amanhã. O amanhã pode me trazer coisas boas ou más, ótimas ou péssimas: ganho na Loteria, recebo uma linda declaração de amor, sou vítima de bala perdida, descubro que tenho um câncer, perco inesperadamente um ente querido, sou chamada pela Receita Federal. A incerteza do amanhã, de cada momento além deste fiozinho invisível do presente, chama-se vida. É não conhecermos o amanhã que nos impulsiona, ainda que isto possa parecer absurdo. É como na novela das nove, onde, uma vez que já se sabe quem é a assassina, espera-se, sem poder saber de antemão, o desenrolar do drama. E é o não-saber que torna tudo interessante. Como na vida, onde, é claro, não podemos esquecer a variável fundamental da liberdade humana.
Não sei o que me acontecerá dentro de poucos minutos: saio com minha cadelinha e um carro em alta velocidade nos atropela e nos leva para o outro mundo, eu abraçadinha a ela, toda trêmula. E se, como estou pensando em coar um cafezinho, o gás explode, ou deixo cair a cafeteira e provoco queimaduras? Minha mão pode tremer, uma barata passar, e a água fervente cair impiedosamente sobre mim. Enquanto falo, aquele fiozinho de presente já se transformou em passado, e este novo presente imediatamente será um passado. Mas afinal, se o presente é tão fugaz e o futuro é uma incógnita, o que nos resta?
A constatação da fascinante incerteza do amanhã, e da quase invisibilidade do presente, a única que me assegura alguma coisa de “palpável”, aprendi com a vida. Resolvi falar dela, quando a morte de uma amiga me trouxe a lembrança de velhos tempos, de imagens antigas quase esquecidas, ainda que seus protagonistas estejam para sempre presentes na minha história. Reuníamos, uma vez por semana, para um lanche noturno, na casa de minha irmã, Teresa. Éramos quatro mulheres de idades bem diferentes, e eu era a mais jovem. Minha mãe, minha irmã, e a amiga de quem falei há pouco. Por vezes, meu cunhado aparecia para tomar um cafezinho de boca-de-pito. Conversamos até lá pelas dez. Em casa, minha mãe e eu encontrávamos invariavelmente meu pai e meu irmão. Havia, na chegada, recriminações de meu pai, e uma invariável lamúria de minha mãe, o que fazia seu jeito de ser. Mas se entendiam bem, lá do jeito deles. Este era um presente meio chato por vezes, mas que me parecia sólido, quase permanente. O que não percebi é que, a cada dia, pouco a pouco, coisas foram acontecendo, e tudo foi se transformando. Teresa mudou-se. Meu pai acusou doença cardíaca, mudei-me para meu apartamento, ele piorou, trouxe-o para junto de mim. Nossas relações se inverteram e passei trata-lo como filho. Morreu. Pouco tempo depois, minha mãe fez uma queda, caiu em depressão, passou na cama seis anos. Virou minha filha. E morreu. Morreu meu irmão Sérgio, sem que tivéssemos tempo de nos dar conta de que estava doente. Foram algumas horas. Também morreu meu cunhado, inesperadamente. Morreu Teresa, vítima de um câncer, logo ela que sempre pareceu ter saúde perfeita. E agora se foi a amiga Cecília, de quem, malgrado eu, estava afastada há bastante tempo. Tomando um cafezinho entre duas aulas, encontrei Ricardo e, finalmente, conheci o verdadeiro amor. Dia a dia, a vida foi se transformando, até que daquele tempo só sobraram eu e minhas recordações. E até estas já estavam quase esquecidas. Este “amanhã”, que vivo hoje, daquele “presente” antigo é tão inesperado quanto o desenrolar da novela das nove.
Mas, como tenho dito, a vida me ensinou muita, muita coisa, e uma das mais importantes é saber alargar a fugacidade do presente, por pelo menos vinte e quatro horas, e se não houver um grande incêndio a vista, aproveitar ao máximo esta dádiva divina. Afinal, como será o amanhã?
Isto é saber ser feliz.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

“La p... respectueuse”

Sartre certamente não se inspirou nela. Sua peça é bem antiga, ainda que a p... a que me refiro também seja antiga. Aliás, muito mais do que a obra de Sartre, que, se não me engano, data de 1947.
A p... a que me refiro não é francesa, certamente nunca saiu do Brasil. Não é famosa, e tenho certeza de que jamais freqüentou uma sala de teatro. Nunca ouviu falar de Jean-Paul Sartre. E sua história, real, não tem nada a ver com a peça. A p... a que me refiro é uma velhinha, toda vestida de preto, tênis brancos, como seus cabelos, puxados para trás num coque desajeitado. O rosto é marcado por rugas profundas, as faces encovadas, a boca murcha, os lábios quase invisíveis, denunciando total, ou quase total falta de dentes. Nossa p... brasileira não pode andar rápido, já que lhe falta o ar.
Ao vê-la transitar pela praça, durante o dia, caso nos passe pela cabeça alguma associação, podemos pensar numa vovó que se dirige para casa a fim de preparar o almoço da família. Se for à noite, ficaremos surpreendidos ao vê-la sozinha em lugar ermo e perigoso. Chama-se “Rosinha”, ou “Dona Rosinha”, nome de guerra que assumiu desde os 17 anos, ao tornar-se prostituta. Era o ano de 1953. Ou seja, está nas ruas há cinqüenta e cinco anos! Nossa p... não é “respectueuse”, é uma pobre mulher, gasta pela vida, e, provavelmente, pela sua falta de inteligência. Conta ao repórter que a entrevistou que durante algum tempo foi faxineira e abandonou a vida “fácil”. Mas voltou. Talvez por ganhar mais. Diz serenamente que faz programas por necessidade. “Dona Rosinha” não tem nada, jamais terá aposentadoria, vive num casebre com uma cadelinha vira-lata. No meio da bagunça e sujeira, há, jogados pelo chão e atrás de arruinados móveis, velhos retratos de família amarelecidos pelo tempo, retratos de uma família que provavelmente nem existe mais. Ou se ainda existe, já a esqueceu há muito. Só Deus como acabará seus dias.
Tranqüilamente, conta como aborda os possíveis clientes, que muitas vezes não compreendem a princípio o que ela lhes propõe. Muitos se compadecem e aceitam, pagando-lhe trinta reais. Não consigo imaginar que tipo de homem poderá manter relações sexuais com a velha senhora. Estarrece-me pensar que, durante pelo menos trinta anos, jamais lhe tenha passado pela cabeça a idéia de progredir, de aprender um ofício. Mas os tempos eram outros, e prostituta era considerada um ser inferior, criado para o pecado, sem possibilidade de redenção. Não havia programas de recolocação social, e, francamente, não sei como funcionam hoje. Dona Rosinha, a puta velha brasileira, seguramente, precederá no céu muita gente bem comportada, que bate no peito, que vai à missa ou ao culto, que tem poder. Deputados, religiosos, socialites - muitas delas caras prostitutas disfarçadas -, banqueiros, Ministros, mensaleiros, amigos do homem, e, certamente, ele próprio.
Não foi Jesus que disse aos fariseus:
“As prostitutas vos precederão no paraíso.”?

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Ecos do MEU passado

Há algum tempo, falei em ecos do passado, referindo-me à minha avó paterna. Ainda pretendo escrever sobre minha avó materna, figura inesperada naquela sociedade brasileira, conservadora. Mas agora, estes ecos referem-se a mim mesma, ao meu passado e ao que ele representa hoje para mim.
Durante este mês de férias estive em Florianópolis, linda cidade, e, é claro, fiquei o máximo que pude com minha prima, e amigona, Maria Helena. Nativa da ilha, ela conhece recantos deliciosos, onde se vê um pôr-do-sol inigualável, onde se pode comer os mais deliciosos frutos do mar, onde o mundo infestado de poluição – que cada dia mais se parece com aquele de Pequim – está tão longe quanto Urano. Encontrar Maria Helena me trás sempre recordações, boas, longínquas, mas sempre saborosas. Ouvir seu suave sotaque, típico da ilha, com algo de lusitano, mas muito mais doce, quanta recordação me trás!
Falo do passado sem nostalgia, da mesma forma que falo e brinco com a passagem do tempo, com a perda da juventude, com a inexorável aproximação do desfecho. Para quem, como eu, já sofreu tantas perdas, esta convicção não deixa nenhum laivo de dor ou angústia. Vejo tudo com naturalidade, procurando viver os anos que me restam da melhor forma possível. Revejo meus velhos conceitos, minhas expectativas e sinto-me recompensada, porque afinal, consegui o fundamental. Muita coisa deixei pelo caminho, e não arrependo-me. Estar com Maria Helena, e nem preciso expressar-me verbalmente, produz em mim uma espécie de reminiscência profunda, como se nos déssemos as mãos e olhássemos em silêncio tudo que já fomos e sonhamos. Falo por mim, e não posso saber o que significam para ela estes contatos. Mas cada um de nós é um, único, e sentimentos são unipessoais e intransferíveis. Muitas vezes, sinto-a mais ligada àqueles sonhos que, felizmente ou infelizmente, já abandonei há muito. Fossem eles ideológicos ou não.
Estar com minha “velha” prima, é um mergulho numa época de sonhos, de quebra de tabus, de conflitos familiares, de paixões efêmeras. É relembrar um tempo em que todos estavam por aqui, os que amamos e foram partindo pouco a pouco, mas que um dia, nós duas, resgatamos, uma ao lado da outra, sem que fosse preciso palavras, suas presenças, nossos sonhos, e nossos vinte anos.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Meu ombro direito

Há algum tempo, escrevi sobre minhas desventuras com meu pé esquerdo. Já era a terceira vez que me dava problemas. Felizmente, com os ligamentos mais ou menos recuperados, estou de volta às minhas atividades. Aliás, já faz bastante tempo. Acho que desde de dezembro. Só que agora, vítima das mais variadas luxações transitando por meu corpo, instalou-se uma tendinite no ombro direito. E lá estou eu de volta às sessões de fisioterapia.
Já me sinto em casa. Freqüento a clínica desde 2002. Primeiro foi o pé esquerdo, algum tempo depois, novamente o tornozelo esquerdo, depois o joelho direito, novamente o tornozelo esquerdo, e agora o ombro direito. Tornei-me conhecida, e até querida: “Então, você aqui de novo!” Ninguém ainda me disse que sentiu saudades de mim, mas no fundo acho que ficam apostando quanto tempo vou permanecer afastada. Há inegavelmente algumas vantagens, como a ficha que não tenho que fazer, as conversam de amigo para amigo com os que cuidam de mim. Falamos de meus bichinhos, do shopping, do meu novo estilo de cabelo. Além disso, como se trata de ombro, não preciso de me arrastar, posso apresentar-me elegante, o que é tão importante para mim. E levar uma vida normal, passeando com Tilinha, indo ao restaurante, fazendo compras. É claro que não faço exercícios para os braços e preciso de ajuda dos professores e amigos para pegar os pesos das pernas.
As terríveis bolsas de gelo foram trocadas por bolsas de água quente, mas na clínica tenho que suportar a dor daqueles aparelhos de dão um puxão, acompanhados de uma temida bolsa de gelo, que alguns dias atrás quase me enregelou. As conversas continuam as mesmas, é engraçado, basta às pessoas entrarem numa sala de fisioterapia para pensarem em tendões, ligamentos, fraturas, etc. Ninguém fala da novela, quem seria afinal a assassina e se Donatela é pior, ou melhor, do que a outra. Ou xingar o Lula, o Dantas, o Greenhald. Levo sempre um livro, mas basta abri-lo para começar a ouvir os velhos papos. E ainda não consegui misturar ligamentos com Barack Obama. Ou Saint-Just, o enfezado jacobino, que deve ter tido todo tipo de desligamentos, já que teve a cabeça cortada.
Hoje cedo, quando tomávamos café, vimos uma propaganda interessante e que talvez explique minhas aventuras fisioterapeutas. Era de um tal Crecin, que tinge o cabelo deixando-o com cor de pêlo de rato. Dizia, mostrando primeiramente cenas dos anos 70: “Aquela geração que achava que não envelhecia, afinal chegou lá”.E aí pareciam eles hoje. Mas, afinal, os coroas se apresentavam em ótima forma, gatões de meia-idade, todos surfando, capazes de fazer inveja em muito garotão. Fiquei pensando e Ricardo, como que advinhando meus pensamentos acrescentou: “Foi a nossa não é?”
Será que a carapuça está me servindo? Também eu pensei que nunca envelheceria?

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Meu porteiro e os milhões da VarigLog

Meu porteiro chama-se Bruno. Tem cerca de 21 anos. Trabalha durante todo o dia e estuda à noite. É claro que Bruno não conhece nada do caso Varig -VarigLog. Acho que nunca ouviu falar nisso. Bruno é um dos milhões de brasileiros que, provavelmente, votou no Lula – como, aliás, eu mesma, excetuando a última eleição – e também, muito provavelmente, acredita no homem. Deve acha-lo um semelhante, ouvindo Lula dizer aquele mundo de besteiras, de palavras chulas (Bruno, pelo menos diante de mim, jamais disse coisas inconvenientes, enquanto o chefe as diz diante de toda a nação). E ainda vê todo dia aquela cara do chefe, de pobre coitado.
Mas, afinal, o que tem a ver o caso da Varig com meu porteiro? Confesso que tive que ler mais de uma vez (agora mesmo estou relendo) a reportagem onde se conta toda a transação obscura da venda da Varig e da VarigLog. Como tudo que é obscuro, a história é cheia de meandros, de atalhos, de personagens que parecem ter saído de um romance policial, daqueles que a gente comprava em bancas de jornal. Tem um chinês, que é nascido lá, mas viveu aqui e agora é testa de ferro de um grupo americano. Um milionário com cara de bocó, que ninguém pode acreditar que tenha toda a fortuna declarada. Nem Denise Abreu acreditou nisso. Tem umas mulheres feiosas, com cara e roupas caipiras, bem ao estilo dona Marisa, e um advogado com pinta de metalúrgico – nada contra a categoria! Até aí, nada de extraordinário, sobretudo para nós, acostumados a assistir aos mais inusitados espetáculos de falta de ética e de estética. Mas o que é de dar medo é que, ao final da briga pela compra da Varig, venceu a Gol, cujo advogado, Roberto Teixeira, é compadre do chefão. Ou seja, venceu a companhia que oferecia 418 milhões de dólares a menos do que a TAM. Por que será? E para quem terá ficado toda esta dinheirama, já que não somos tão idiotas em acreditar em jogo limpo?
Falei tudo isto para contar minha história com Bruno, um pobre brasileiro, que trabalha o dia inteiro e estuda à noite, na esperança de melhorar sua renda, que deve ser pouco maior que um salário mínimo. “Bruno, você já imaginou o que significam 418 milhões de DOLARES?” – perguntei-lhe. Foi como se eu tivesse feito uma pergunta em aramaico. Coitadinho do Bruno! “O que a Senhora disse?” Repeti a pergunta. “Sabe, eu não consigo imaginar nem um milhão de reais!” - “Pois bem, Bruno, alguém, não sei quem, ou quem(s), papou 418 milhões de Dólares”. A princípio, tentei estimular o garoto a imaginar quantias elevadas. Estabelecemos uma brincadeira. - “E então, Bruno, já conseguiu?” E ele com aquele jeitão mineiro: - “Num dá nem pra começar”. Acrescentei à nossa brincadeira um processo pedagógico, que já dura alguns dias. - “Então, vamos lá, vai ser aos poucos. Vamos começar com os primeiros números: 4, por exemplo. O que você compra com 4 reais?” “E com 4 dólares?” Aí, ele já se complica. Dou o valor em moeda americana. - “Tudo isso? Aí eu já comprava um queijinho, salame, e manteiga”. – “Não exagere Bruno, tudo está mais caro. Agora vamos acrescentar 1, e temos 41”. “É muito Bruno?”- “Nem tanto, mas já melhora muito”. - “Então pensa no que poderá comprar com 41 reais e depois com cerca de 70, já que estamos falando de dólares”. Todos os dias pergunto-lhe - “E aí, já deu para imaginar 418 milhões de dólares?” Bruno ri. Faltam-lhe alguns dentes, é um menino pobre, trabalhador.
Não quero cansa-lo, já que conheço a dureza de sua vida. Hoje, chegamos aos 418, assim, sem nenhum zero, e em reais. Talvez seja tudo que ganha por mês. Amanhã, estava pensando em converter em dólares. Não sei exatamente a cotação, mas acredito que chegue a cerca de 680 reais. Depois disso, não sei se vou conseguir ir em frente. Talvez, eu deva recomeçar e mostrar tudo em reais. E parar no primeiro zero. Mesmo porque, eu também fico meio desvairada com tantos milhões. Aí, então, ficaremos nos 4.180 reais, uma quantia que Bruno só conseguirá juntar depois de trabalhar um ano.
Nosso jogo recomeça todos os dias, quando saio para a minha ginástica. Faz frio, Bruno está encolhidinho, chegou às seis horas. - “E aí, Bruno, já consegui algum progresso?” Ele ri: - “Nada, nem meu professor conseguiu!”
Estou como Bruno, e como seu professor, não consigo imaginar esta soma, que eles conseguiram abocanhar tão facilmente!

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Meu amigo Kiko.

Kiko se foi, que pena! Não posso pensar nele sem tristeza, sem me lembrar de sua patinha esquerda - acho que era canhoto - estendida para mim, cumprimentando-me alegremente. Kiko me reconhecia, saltava à minha volta, feliz, sabia o quanto eu havia feito para salvá-lo da maldade dos outros e me agradecia. Depois daqueles anos de rua, onde possivelmente sofrera o que sofre todo pobre cachorro de rua, Kiko foi amado. Meu amiguinho se foi, e imagino que deva estar ao lado São Francisco, estendendo a patinha esquerda para todos, Santos e animaizinhos que cheguem perto de seu grande amigo.
Foi há alguns anos. Teresa, minha irmã, e eu o encontramos numa noite fria. Cachorro de porte médio, pelo cor de mel, meio escasso. Deitava-se de forma estranha como se quisesse cobrir uma parte do corpo que lhe fazia mal. Cuidadosamente, para que não se assustasse, acariciamos sua cabeça, e seu olhar carinhoso nos impressionou. Mas percebemos um pedido de socorro, que só aqueles que amam os animais conseguem ver. Aos poucos, fizemos com que se virasse um pouco e constatamos, horrorizadas, que a parte direita de seu corpo estava coberta por uma só chaga, uma bicheira havia tomado conta de forma assustadora. Não podíamos voltar para casa, sem fazer nada. Com a ajuda do celular, localizamos um amigo que o levou para uma clínica, a única que o aceitou já naquela hora tardia. E naquelas condições! Kiko passou várias semanas em tratamento, teve que sofrer uma pequena cirurgia. Quando saiu, estava completamente restabelecido. Lindo, feliz! Foi adotado por uma família, que lhe deu o nome de Kiko. Gente simples, mas com imensa grandeza de alma, coisa que não se encontra facilmente.
E Kiko foi levando aquela vidinha de cachorrinho feliz. Seu maior amigo era Michael, filho menor da família. Mas também era amigo de todos os outros meninos da rua, com quem brincava. Conhecido por crianças e adultos. A todos estendia a patinha, seu sinal de amizade. Era como se dissesse: “Olá, amigos, como estão? Eu me sinto na melhor das formas”.Às vezes fugia, ia para casa de vizinhos, ou dava passeios mais longos. Mas logo voltava para a família que, afinal, era a sua.
Kiko morreu, como morrem todos os seres vivos. A família humilde tentou salvá-lo. Telefonaram-me logo que deu sinal de estar doente. Afinal eu era madrinha e sempre me encarregara de cuidar da saúde de meu afilhado. Mas meu telefone nunca respondeu, caindo sempre na secretária eletrônica. Pensaram que eu viajara. Em casa, misteriosamente mudo durante quinze dias, sem que conseguíssemos qualquer explicação. Desta vez não foi o destino (ou quem sabe nossas escolhas), que marca nossa partida, que deu fim à vidinha de Kiko. Foi uma tal de OI, aquela que deu milhões a Lulinha, aquela que pertence à família do Presidente do PSDB, o mais importante partido de oposição. Aquela cujo Presidente, irmão do Presidente do partido da oposição, foi um dos maiores financiadores da campanha de Lula. Afinal, quem sou eu para reclamar? Uma simples cidadã servida por uma servidora, que pela importância de seus chefes e apaniguados tem crescido desmesuradamente e que, para facilitar as coisas, até provocou mudanças na legislação.
Kiko é a primeira vítima de que tenho notícias de toda esta sem-vergonhice. A família, desolada, ainda não se acostumou com sua ausência. Seu “enterro” foi acompanhado por todos seus amiguinhos que deixavam as lágrimas correrem livremente. Como eu própria no dia em que soube que nunca mais ele me estenderia a patinha, nem saltaria à minha volta, naquele gesto de “Obrigado!”.

Adeus, Kiko! Quem sabe a gente se encontre algum dia lá do outro lado?

terça-feira, 6 de maio de 2008

“O mundo como vontade e representação”

Mãe coruja olha o gavião e implora-lhe: “Por favor, não devore meus filhinhos!” “Mas então, dona Coruja, como vou identifica-los? Minha natureza é de devorar presas fracas!” Ao que responde a mãe: “São lindos! Tenho certeza de que vai reconhece-los e encantar-se” E o gavião, no seu vôo à procura de presa, encontra um ninho, onde se acotovelam bichinhos horrendos: “Estes não podem ser os filhos de Dona Coruja!”. Ao voltar, a mãe desespera-se encontrando o ninho vazio. Procura, inconsolável, o gavião, chora, lamenta-se: “Como foi capaz de fazer isto?” E o gavião defende-se: “Mas dona Coruja, a senhora havia me dito que eram lindos!”.
“O mundo como vontade e representação” é uma grande obra de Arthur Schopenhauer, filósofo alemão (1788-1860). Foi publicada em 1818, e consta de quatro volumes. Confesso que não li, mas pretendo faze-lo logo que outras tarefas forem cumpridas. Interessei-me desde o título, e minha curiosidade ficou maior ainda ao saber da primeira frase com que Schopenhauer inicia sua obra filosófica: “O mundo é minha representação”.
Dona Coruja, se houvesse sido um pouquinho mais objetiva, teria salvado as vidas dos filhotes. Dizia um velho amigo, ateu, que somente um Ser seria totalmente objetivo, e este Ser seria Deus. E completava: “Como Deus não existe, a ninguém esta REALIDADE é accessível”.Para entendermos o mundo que nos cerca, o organizamos, estabelecemos valores, que são quase sempre culturais. Mas também partimos de nossa própria experiência. Resolvi falar deste princípio básico universal que rege nossas vidas, lembrando-me de uma história a que assisti há muito tempo. Um amigo muito lindo havia, segundo me contaram, encontrado uma noiva igualmente linda, modelo fotográfico, de carreira bem sucedida. Acreditei, não havia porque duvidar. Enfim, algum tempo depois, acabei conhecendo a garota. E fiz uma constatação: aqueles que a julgaram linda, modelo fotográfico, com uma bela carreira, simplesmente não a viram, mas sim “a namorada do rapaz lindão”, conseqüentemente, ela também lindona. Aos poucos a história foi sendo desmontada, até que do início não havia sobrado quase nada.
A cada momento, estamos criando sobre o mundo que nos cerca, pessoas ou objetos, alguma representação, uma imagem que obedeça a nossos valores culturais ou pessoais, às nossas expectativas, ou vontade. E ainda, estamos, permanentemente, criando alguma representação de nós mesmos. Há momentos em que somos poderosos, corajosos, transgressores, ou obedientes. Há momentos em que montamos uma imagem de vítimas. E, afinal, quem somos de fato? Os que têm poder usam estas múltiplas representações para manipular. Quando Francisco Weffort compara Lula à “metamorfose ambulante”, está expondo uma estratégia de que afinal todos nos servimos. O que choca no Presidente é que esta estratégia não obedece a nenhum princípio ético ou estético. O homem é um dia protetor do MST, e no dia seguinte abraça Blairo Maggi, Governador do Mato Grosso e maior produtor de soja do mundo, já apelidado de “Estuprador da Floresta” Ao lado do “estuprador”, Lula fala mal do Conselho Missionário Indigenista, da Pastoral da Terra, até ontem seus aliados. E é claro dos ecologistas. Um dia acha normal a “bolsa ditadura” e no outro elogia Médici. Durante anos, Lula foi o operário honesto, libertário, corajoso. Acreditamos nessa representação, não tínhamos porque duvidar. E como na história da noiva de meu amigo, descobrimos uma outra “realidade”. Mas afinal, quem é o verdadeiro Lula, ou a verdadeira noiva? Não sabemos. O que sabemos, seguramente, é que aquilo em que acreditávamos era uma imagem montada por eles, ou por outros. Quem sabe, no caso de Lula, por nós mesmos, ávidos por respirar liberdade? Se não temos acesso à realidade substancial que nos cerca, o que nos resta é optar pelo consenso, referente à parte mais esclarecida de nosso universo cultural. Hoje sabemos, que pena, que Lula não é o operário libertário em que acreditávamos, apesar de sua popularidade. E nem a noiva do bonitão é tão lindona e bem sucedida.

quarta-feira, 30 de abril de 2008

Isabela e todos os outros.

O assassinato de Isabela nos fez esquecer a menina torturada de Goiânia. Como já havíamos esquecido o menino estraçalhado, arrastado pelos bandidos, como já havíamos esquecido o brutal assassinato do casal de namorados em São Paulo (aliás, alguém ainda se lembra?), como já havíamos esquecido o garoto nissei, morto por funcionários de seu pai, que, aliás, de tudo faz para que jamais esqueçamos a tragédia. E por que será que nos esquecemos tão facilmente? Porque um caso terrível atropela outro, que atropela outro, e outro? Nossa memória, simplesmente, não consegue armazenar tudo? Não quero dizer que em outros países não haja violência. O que nos choca por aqui é a banalização, com os “di menor” sem nenhuma punição e livres aos 21 anos de qualquer mancha na sua ficha, com assassinos pagando as vidas que tiraram com cestas básicas, e até com lições de cidadania. Há cerca de uma semana, um bêbado matou uma família inteira, mãe e dois filhos, negou-se a fazer o teste do bafômetro, e saiu livre. Afinal são seus direitos de cidadão! Ficou para o pai a dor indescritível da total perda. Soube que alguns dias depois, o bandido foi preso. Babaca, devia ter fugido e logo seria esquecido. Mas também sei que logo será liberado. Outro, aliás, com antecedentes criminais como traficante, durante um “pega”, matou três ou quatro mulheres. Como não foi preso em flagrante, pagou fiança e foi para casa. Alguns dias depois, o delinqüente foi preso, mas já está solto novamente, beneficiado por algum destes instrumentos jurídicos feitos para favorecer a bandidagem. E estou certa que vai pagar sua pena com cestas básicas.
O assassinato de Isabela nos choca porque, ao que tudo leva a crer, foi executado pelo próprio pai. Ou pelo menos foi ele que a jogou pela janela. E é gente que pertence à classe média, onde não se supunha – quanta inocência- que não ocorresse este tipo de monstruosidade. Isabelas existem aos montes, nas camadas mais pobres, vítimas do alcoolismo, das drogas, do abandono. E quase sempre são os próprios pais os responsáveis. Ouvimos nos noticiários, lemos nos jornais, mas toda esta podridão tornou-se corriqueira. Talvez, quem sabe, por algum mecanismo psicológico, esqueçamos, porque não há como viver no meio de tanta sujeira. Como suportar a imundice nossa de cada dia se armazenarmos tanta coisa? E ainda há todo tipo de safadeza política, onde se acumulam os casos de bandidagem e só uns poucos (dá até uma pontinha de pena do Bejani!) são penalizados. Dizem que fomos mal colonizados, que aos portugueses jamais ocorreu formarem um verdadeiro país, mas que estavam somente preocupados com nossas riquezas. Assim, não elaboramos uma ética do trabalho, do progresso, e nem da justiça. Mas agora é tarde, não podemos voltar no tempo, escolher outros colonizadores, etc. O que podemos é escolher melhores governantes. Sentirmo-nos parte efetiva de uma sociedade. Se fomos capazes de levar adiante movimentos como “Diretas Já” e “Fora Collor” por que não podemos agora tentar mudar alguma coisa? Exigindo mudanças no Código Penal, no mal-fadado Estatuto do Menor e do Adolescente, e em tantas e tantas outras coisas? Nós, que fazemos parte da camada esclarecida da população?
Por que, se não for possível mudar o que vemos todos os dias, que tal repetirmos aquela antiga piada do tempo da ditadura: “Por favor, o último a sair, apague as luzes do aeroporto”.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

ECOS DO PASSADO – II

Minha avó, na verdade, não calculou mal o passo que dava ao casar-se com um desconhecido. Ela simplesmente deixou-se levar pela paixão. Conceição, como Ana de Assis, aquela que viveu a tragédia do assassinato de Euclides da Cunha, são paradigmas reais de mulheres, que homens geniais, como Dostoiesky e Flaubert, profundos conhecedores da alma feminina, e também dos descaminhos românticos por onde eram encaminhadas, descreveram nas histórias de Anna Karenina e Emma Bovary. Eram mulheres alimentadas pelo sonho romântico, do príncipe encantado, do amor sem limites, sem razão, sem tréguas. Creio que a história de minha avó vale, sobretudo, como ilustração de um tempo, de uma mentalidade, onde não havia lugar para mulheres que quisessem ser alguma coisa mais do que mães de família.
Dizem que era uma mulher inteligente, sedutora, capaz de levar uma conversa com os amigos masculinos, que não gostava das mulheres que freqüentavam a sociedade tacanha de Uruguaiana. Gostava de ler, de música, de divertir-se. E era mal vista. E ainda foi mais mal vista pelas cunhadas, que não achavam conveniente seu comportamento. Mas ela pouco se importava. Tudo isto me contou uma velha prima, que havia ouvido de sua mãe, uma das cunhadas de Conceição. Foi mãe jovem, provavelmente dedicada, mas não ao ponto que se exigia de uma mulher bem comportada. Ela gostava de sua vida, SUA vida, com seus livros e suas músicas suas conversas inconvenientes para uma senhora de sua condição social. Encontrou no seu ator, possivelmente garboso, aquele príncipe de seus romances, e apaixonou-se.
Mas foi em Porto Alegre, depois da volta do Rio de Janeiro, onde fora tentar recomeçar sua história de paixão, que ela se deu conta do que realmente lhe acontecera. A filha que tivera com seu homem já havia morrido, e de forma trágica – falo dela em “Morte na aurora” - o dinheiro, depois da morte da mãe, tornava-se escasso, por mau gerenciamento dos irmãos. Sua herança fora desperdiçada, e seus filhos a censuravam. Na necessidade foi pianista em bares e restaurantes, ela que havia se apresentado ainda bem jovem no famoso teatro São Pedro, em Porto Alegre, um dos mais belos do Brasil.
No entanto, ainda conservava antigas amizades. E, como era mulher inteligente e interessante, sua presença era valorizada, ainda que ninguém lhe oferecesse trabalho, o que era considerado ultrajante para uma mulher de sua classe. Contava minha mãe que, nestas ocasiões, colocava as poucas jóias que ainda lhe restavam, o seu melhor vestido, arrumava-se como uma dama, que realmente era, e ia ao encontro dos velhos amigos do passado, que, ainda que conhecessem sua história, tinham por ela grande carinho. Assim, encaminhou seus dois filhos menores, meu pai e meu tio Armando, para a carreira militar, onde tiveram belas trajetórias. E disto falo depois. O filho mais velho, que sempre detestou o padrasto, tornou-se funcionário público, tendo tido uma vida extremamente atribulada. Onofre, o segundo, era deficiente mental.
Aos poucos a vida, ou a morte, foi-lhe tirando os velhos amigos, tornou-se descuidada com a aparência. Sua situação financeira era desastrosa e creio que os filhos a ajudavam. Vendeu o casarão da família, que até pouco tempo ainda estava de pé, no bairro da Glória em Porto Alegre. Passava os dias lendo e tocando piano, meio indiferente a tudo.
Nunca mais havia tido notícias de seu homem, até que, muitos anos depois, veio a saber, não sei como, que ele morrera no Rio, totalmente arruinado. E fora enterrado com indigente.
Minha avó morreu aos cinqüenta e nove anos, de câncer.
Mas havia vivido mais de cem. E viva as mulheres que não se conformaram com sua condição subalterna de fêmeas. Pagaram caro pelo seu “pecado”, mas é graças a elas que hoje somos mulheres livres. Capazes de escolher nossos caminhos e nossos homens. Mas hoje, acima de tudo, somos conscientes, de que não vale a paixão sem a independência econômica. A única que nos permite a verdadeira liberdade e, quem sabe, a paixão.

domingo, 6 de abril de 2008

LULA OU “A METAMORFOSE AMBULANTE”

“Metamorfose ambulante” faz parte, ou é título, de música de Raul Seixas. Foi lembrada por Francisco Weffort, fundador do PT, por ocasião do “vale tudo” sindical, promovido por Lula. Weffort desligou-se do partido há muitos anos, quando aceitou o convite de Fernando Henrique para ser Ministro de Cultura. Naquele tempo, o PT era o partido dos “puros”, como os Jacobinos da Revolução Francesa, que acabaram na guilhotina. Não desejo mesma sorte aos petistas, mesmo porque não há mais guilhotina. Mas naqueles tempos de pureza (não os da Revolução Francesa), não se admitia NENHUM acerto com partidos considerados conservadores. O mesmo expurgo já havia acontecido com Luíza Erundina.
Pois o que vemos agora é um festival de metamorfoses sem-vergonha. Sei, por minha própria experiência, o quanto a gente muda ao longo da vida. São mudanças sutis, que ela nos ensina, e que ocorrem pouco a pouco. E disto já falei anteriormente. O que estarrece agora é a desfaçatez com que o homem e seus asseclas renegam, pelas piores razões, tudo em que acreditaram um dia, há tão pouco tempo. E é sempre para pior. Porque todo mundo conhece a sem-vergonhice do peleguismo fisiológico (desculpem-me a redundância). Fiscalizar um dinheiro que é “doado” pelo trabalhador é dever do Estado, ou melhor, do TCU, que representa a sociedade. Mas, como determinou Lula, continuamos nos tempos do peleguismo getulista, montado também para favorecer o ditador, creio que ainda durante o famigerado Estado Novo. Peleguismo que compra os chefes sindicais e assegura votos. “Recebam e façam o que quiserem com o dinheiro. Mas assegurem o apoio a mim”.Há dirigentes sindicais que vivem vidas de rico, como o que chega ao trabalho no “Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil” a bordo de uma Mercedes. E há ainda dezenas de outros exemplos escandalosos. Joaquinzão era, nos anos 70, um líder sindical que se dava muito bem com a ditadura e dela se beneficiava, além de obter para o governo de então o apoio de seus sindicalizados metalúrgicos. E Lula era contra, com toda razão. Agora mudou de “idéia”.
Mudou também em relação à CPMF, ao contato indecoroso com partidos de direita (e que direita!), como PP, PTB- criação do General Golbery –o PMDB fisiológico. E alguns outros, criados ”ad hoc”, para garantir votos ao governo. Já beijou as mãos impolutas de Jarder Barbalho, e um dia desses defendeu Severino e Renan. Isto porque sabe que ambos têm votos daquela população ignorante do Nordeste, aquela que recebe a “Bolsa família” e que o considera um paizão. E que nunca, já que este não é o projeto do governo, sairá da pobreza.


E por falar em pobreza, lembrei-me do Ziraldo, aquele pobre jornalista, defensor de nossos direitos democráticos, que, a título de “indenização” vai receber mais de um milhão de reais e ainda uma pensão vitalícia de quatro mil e tantos reais. Ele e mais alguns iguais a ele. E não podemos jamais esquecer a lapidar frase do heróico Ziraldo: “Eu quero que morra quem está criticando. É tudo cagão”.
Fernando Gabeira, que foi preso e torturado, não quer indenização. O jornalista Raimundo Pereira, fundador do extinto jornal “O Movimento”, um dos maiores opositores da ditadura, “disse que nunca reivindicou indenização, por não considerar justo ser ressarcido”.(O Globo)
Felizmente, há gente como Gabeira e Raimundo Pereira. Mas, que pena, também existem os Joaquinzão, Ziraldo, Lupi, etc. E isto sem esquecer o chefe.

E viva a Bolsa Ditadura!

Uma amiga pediu-me o segundo capítulo da história de minha avó. É triste, e mais ainda porque foi censurada, desprezada a vida inteira por ter amado demais. E diante de tanta pornografia como as que venho de descrever, só me resta contar a sua história e redimi-la. Logo vou voltar à sua triste e injusta vida de mulher de um tempo, que, felizmente, já acabou.
Mas será que não foi substituído por outro, tão sem-vergonha e hipócrita quanto aquele antigo?

domingo, 30 de março de 2008

ECOS DO PASSADO -1

Minha avó Conceição, mãe de meu pai, foi uma mulher que merece ser lembrada, ainda que quase nada se fale dela na família. Conceição foi quase esquecida e dela não restou nenhuma foto jovem. Não sei como se parecia. Foi uma mulher que viveu fora de seu tempo, que ousou, mas cuja ousadia, infelizmente, não teve o respaldo da variável econômica, aquela que, segundo Marx, condiciona todas as outras. Ou seja, minha avó não tinha, como todas as mulheres de sua época, independência econômica, a única que nos permite total liberdade.
Pertencia, por parte de mãe, a família tradicional paulista, Almeida Prado. Seus antepassados haviam migrado para o sul do país, para estabelecimento de estâncias, numa época em que as terras devolutas abundavam. Por lá se fixaram, mas formaram uma espécie de elite fundiária, onde se falava francês, comia-se em pratos de porcelana inglesa e tomava-se vinho ou água em recipientes de cristal. A região era a da fronteira oeste do Rio Grande do Sul, rústica, que tem a vizinhança da Argentina. Uruguaiana deveria ser na época uma cidadezinha totalmente insignificante, - e ainda é-, mas por onde corria muito dinheiro, oriundo, sobretudo, da venda de gado.
Nada sei do pai de minha avó, a não ser que tinha o sobrenome Noronha. É figura totalmente apagada. Já a mãe, parece que viúva bem jovem foi uma mulher enérgica, que dirigiu os negócios da família com mão firme e morreu relativamente cedo. Sendo Buenos Aires mais próximo do que Porto Alegre, Conceição criou-se freqüentando a capital argentina, indo a teatros, assistindo a concertos, havia estudado piano desde criança com professores importados de Porto Alegre. Falava espanhol fluente, o que não é tão raro por aquelas bandas. Mas também lia francês e inglês. E lia sofregamente tudo que lhe caia nas mãos, romances, livros de divulgação, almanaques. Tenho dela, uma única lembrança, folhetins de “La mode illustrée”, que contam histórias de amor em capítulos, cuidadosamente colecionados e belamente encadernados, vindos diretamente de Paris.
Conceição casou-se cedo com o filho de um estancieiro. Chamava-se Felippe, era o pai de meu pai. Tiveram quatro filhos, todos homens. Mas Felippe morreu cedo, aos trinta e três anos. Deixou-a viúva aos vinte e nove anos. E ávida por viver. E foi assim, pouco tempo depois de viúva, que conheceu um ator. Creio que foi em Porto Alegre, já que o dito fazia parte de uma companhia de teatro portuguesa, de cujo nome jamais me esqueci: “Maria Malta”. E apaixonou-se perdidamente. Por ele enfrentou a família, o filho mais velho, os amigos, os preconceitos. Imaginem só! Casaram-se, apesar de tudo. Foram morar em Porto Alegre. Logo depois, ela engravidou e teve uma filha, Maria, que morreu aos doze anos, uma história que já contei aqui. O que Conceição não sabia é que seu homem era um ex-alcoolatra, que pouco tempo depois voltou ao vício. E aí se instalou o inferno na sua vida. Censurada por todos, pela família, pelos amigos e, sobretudo, pelos filhos, ela decidiu separar-se do único homem que amara de fato. Ele voltou para o Rio, para sua Companhia de teatro. Algum tempo depois, sem conseguir superar a paixão, Conceição, acompanhada de um filho doente, seguiu para o Rio. Lá viveu algum tempo, até que não pode mais suportar e voltou para o sul.

O resto da história, eu conto depois.

terça-feira, 25 de março de 2008

Uma nova pedagogia

Crianças malcriadas, desobedientes, ladinas. Crianças que não estudam, que põem a língua de fora, que não respeitam os mais velhos. Muito se tem falado sobre a educação permissiva, de inspiração rousseauista, que tem trazido enormes prejuízos às nossas crianças. Muito se tem discutido, com a presença de especialistas, pedagogos, psicólogos, sociólogos, etc. Então, de repente, assim, surgindo do nada, ficamos conhecendo uma tal Sílvia Calabrese, pedagoga, podemos dizer inovadora, que, com a ajuda de seu lugar-tenente, introduziu uma nova metodologia educacional: “Educação pela tortura”.
Aliás, esta prática educacional já conhecíamos há tanto tempo! Podemos começar na Antiguidade, quando os cristãos eram lançados aos leões famintos, ou queimado vivos. O objetivo, Dra. Sílvia agora nos esclarece, daquilo que, durante dois mil anos, consideramos pura crueldade, era impedi-los de seguir o mau caminho, daquele maluco lá da Palestina, que pregava o amor e o desapego aos bens materiais. Afinal, Nero preocupava-se com a idéia de progresso que não via nos mandamentos do judeu. O Império, na verdade, só queria que os cristãos se assustassem, talvez se chamuscassem um pouquinho, e levassem uns arranhões das feras famintas. Mas os educadores erraram a dose – não havia tecnologia adequada -, e acabaram passando à História como bestas perversas. E só agora, graças à Dra. Sílvia descobrimos as boas intenções que cercavam aqueles atos, que nos horrorizam.
E ainda durante a Inquisição, quanta bondade! Torquemada e seus asseclas, especialistas em todo tipo de “pedagogia” –porque de agora em diante sinto um certo constrangimento em falar rasgadamente em TORTURA – só queriam (e até confessaram claramente e nós não entendemos) salvar pobres almas hereges das chamas do inferno. Porque as chamas acessas pela Igreja Católica eram repletas de bondade educativa, assim como todos aqueles castigos, como fazer o perverso engolir chumbo derretido, eram medidas pedagógicas, que tinham o objetivo cristão de EDUCAR, se não para esta, para a outra vida, onde o herege já entrava com os dois pés – se ainda tivesse algum – no Paraíso. E vejam que ficamos séculos xingando a Santa Inquisição, até que a Dra. Sílvia nos trás a luz.
Para falar de fatos mais recentes, passando por cima dos objetivos educativos dos Nazistas, tivemos a oportunidade de tomar conhecimento dos métodos pedagógicos empregados por aquele que considerávamos um monstro – o Delegado Sérgio Paranhos Fleury-, cuja morte, ainda que a Igreja nos acenasse com o castigo do pecado mortal, comemoramos, sobretudo tendo em vista a forma como foi desta para a melhor: afogamento. Agora, com os esclarecimentos da Dra. Sílvia, já me sinto meio culpada de ter comemorado a morte do “monstro”. Porque estou confusa e já nem sei se é monstro ou Educador. Quem sabe, o Dr. Sérgio, como a Dra. Sílvia, não tentavam formar cidadãos cheios de patriotismo, amor aos fracos, generosidade impar? Dr. Fleury, com seus afogamentos, por exemplo, pode ter querido exercitar aqueles ingratos a sobreviverem à cheias, que inundam nossas cidades nas chuvas de verão. Pode ser que quisesse transforma-los em heróis, capazes de salvar crianças e velhos de afogamentos. Há tanta coisa que não sabemos, que julgamos mal!
Dra. Sílvia ao cortar com alicate a língua da perigosa criança que tinha sob sua guarda, tenho pensado nisso, talvez quisesse impedi-la de dizer palavrões, usar palavras de baixo calão, ou falar um péssimo português, o que ouvimos todos os dias. Ao esmagar seus dedos na porta, pretendia impedi-la de roer as unhas, já que não haveria mais unhas. Ao pendura-la pelos braços e expô-la ao sol, tenho pensado que talvez quisesse fazer-lhe um alongamento prolongado, evitando a postura encurvada das adolescentes. Quanto ao sol, era para lhe dar uma bela cor de verão.
Dra. Sílvia e seu lugar-tenente, se este fosse um país justo, com oportunidades para todos, deveriam estar ensinando a outras detentas seu método pedagógico, evidentemente colocando à disposição das outras seus próprios corpinhos. Quanto ao marido, deveria fazer companhia aos outros detentos que conhecem um método infalível para educar gente como ele.
Que pena que este não seja um país decente!

E como já disse uma vez, odeio o politicamente correto.

quarta-feira, 19 de março de 2008

MEUS ANOS VIVIDOS- 2

Há um ano, no meu aniversário, ou melhor, alguns dias depois, escrevi sobre os anos decorridos e sobre o que a vida me havia ensinado. Hoje, com mais um ano vivido, retorno, com uma semana de atraso, para compartilhar com meus amigos este trajeto, cujo começo já ficou longe. E cujo fim, infelizmente, já começa a se aproximar, apesar de todos os meus esforços. Digo isto sem mágoas, amo a vida e agradeço a Deus tudo que Ele me deu, de bom e também de mal. Como diz minha amiga Regina, há dias de sol e dias de chuva.
De todos estes anos vividos, talvez meu maior e mais precioso aprendizado tenha sido a consciência de minha liberdade, condição essencial de todo ser humano. É nossa capacidade de determinar, de escrever nossa história, de fazer-se ela, de ser o que cada um de nós é. Um ser único, inimitável. É o nosso delito humano, a que estamos irremediavelmente condenados. Não se trata de repetir Sartre, mas de constatar, de aprender o que a vida ensinou. Dizer que nascemos e morremos sozinhos, já é meio rotineiro. Todo mundo tem, ou devia ter consciência disso. Do que ninguém fala é de nosso irremediável isolamento pela vida afora, fruto de nossa irremediável liberdade. E repito que não há mágoa nesta constatação Não acho , como Sartre, no seu terrível pessimismo, que o outro seja o inferno. Ele é simplesmente o outro. Tem suas paixões, seus anseios, secretos ou não, vive seu inferno ou seu céu. Só dele. Posso compreendê-lo, aplaudi-lo, compartilhar, mas jamais poderei saber o que realmente lhe vai à alma. Posso amá-lo, meu filho, ou meu amante, mas ele ainda será a ilha de que falava Hemingway , assim como eu. E ainda que ele me conte, de coração aberto, sem nenhuma reticência, olhos nos olhos, tudo que atormenta ou enche de felicidade seu ser, minha leitura será sempre a minha, a que minha experiência, meus sonhos, enfim EU, poderei fazer. É a minha, única, inimitável, e a dele é a sua, igualmente única, inimitável. A dor que, no decorrer da vida, corroe meu coração é só minha, está impregnada da minha história, que é só minha, e que eu escrevi com minha liberdade.
O amor, muitas vezes, leva à decepção (quanta tolice!), quando constatamos que o outro não reage da forma que esperamos. O amor é livre, como todo sentimento, não pode se amarrar, disciplinar. Amor é, ao mesmo tempo, cumplicidade e liberdade. Ama-se como se pode, ou como se quer. E por esta razão é tão absurda, entre tantas outras, aquela preleção nos casamentos de que doravante marido e mulher serão um só corpo e uma só carne. Isto sem falar de seu aspecto meio esquizofrênico. Amar é ser livre, dar liberdade, saber cultivar sua ilha, e respeitar a do parceiro.
E agradecerei sempre a Deus poder dizer como é maravilhosa esta liberdade, com todas suas conseqüências, que cultivamos, eu e meu companheiro tão amado, cada dia, cada momento vivido. São nossas vidas, unidas e livres, voando acima das convenções, e sempre cultivando nossos projetos pessoais.

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

O sonho não acabou - 2

Há dias, falei de meus sonhos de jovem, e, de maneira peremptória, afirmei que, ao final de todos estes anos, nada havia restado. Hoje, ao acordar, refleti e assustei-me com o radicalismo de meu “veredicto”. E se não posso reunir meus amigos e saber o que pensam, passados tantos anos, posso, pelo menos, dizer o que penso eu. Hoje, como mulher madura, livre das ilusões da juventude, tenho algumas convicções. Sei que é injusto dizer que o sonho acabou, que nossas utopias se desvaneceram no ar, como fumaça. Na verdade muita coisa ficou, que mudou muita coisa, e foi tanto que não dá para dizer tudo em tão pouco espaço.
Na nossa generosidade, comum à juventude, sonhávamos com o fim de toda injustiça, dos preconceitos, das guerras. Nosso erro foi crer que isto se conseguiria com os ensinamentos do velho Marx, e que Mao (que Deus nos perdoe!!), Lênin Trotsky, Gramsci, e outros, seriam condutores de um processo “libertador”. Nosso erro foi crer que Fidel e Che eram heróis, e que Cuba era um paraíso. Gente como eu, sem formação teórica, acreditava simplesmente que o mundo se organizava de forma maniqueísta, dividido entre o Bem e o Mal. E o Bem, ou seja, tudo que ficasse à esquerda, teria o dom mágico, como se fosse um processo mecânico, de acertar o que considerávamos errado. Não creio que ousássemos dizer tal barbaridade, mas, sem dúvida, críamos nisso. Só muitos anos mais tarde, quando se rompeu a célebre cortina, pudemos vislumbrar o que havia do outro lado. E não era nada daquilo que imaginávamos.
Mas havia muitos ganhos. Havíamos iniciado a luta contra preconceitos, alguns quase imemoriais. Nossa geração foi aquela que colocou a grande questão da individualidade, seja nas relações familiares ou nas amorosas. A individualidade que tem sua raiz na liberdade, inerente a todo ser humano, e que nos tem sido sistematicamente usurpada. Liberdade de decidir sobre nossa vida, sobre nosso corpo, sobre as grandes e pequenas questões, não permitindo que outros, família ou amores, decidam por nós. Liberdade que nos permite escolher nossa história, recusando o que chamam de destino, já traçado de antemão, ainda que haja coisas que ultrapassem nosso poder de decisão. Mas é inegável que a imensa parte de nossa história decorre de nós mesmos. E, por incrível que possa parecer, foi naquela época, nos anos de chumbo, quando nossa liberdade era tão reprimida, que uma parte da juventude se deu conta desse principio tão fundamental.
Sempre partindo desse grito de liberdade, havíamos colocado em questão o mito da virgindade, e mulheres como eu puderam declarar – para horror de seus pais - que cada um de nós se pertence a si mesmo, e que, sendo seu corpo parte essencial de sua individualidade, somente a cada um compete decidir o que fazer com ele. Lembro-me, sempre perplexa, apesar da distância em anos, do vaticínio de minha mãe sobre a mulher “perdida”. Havia escutado de mulheres que a antecederam, e ainda que fosse “filha natural”, jamais colocou em questão a estupidez que lhe haviam transmitido as mais velhas. Lembro-me também da extrema irritação de meu pai quando me via recusar “bons partidos”. E também de cada uma de minhas colegas de faculdade, noivas em véspera de casamento, disputando o mais belo enxoval.
E havia ainda a maternidade, elemento considerado indispensável para a felicidade feminina. Vi muitas mulheres entrarem em desespero ao constatar que não engravidavam. Dizia-se que mulher e maternidade estavam indissoluvelmente atadas. È claro que maternidade não pode existir sem mulher, nem sem o homem, mas a felicidade não pode se restringir à capacidade de parir. Hoje homens e mulheres decidem livremente sobre sua vida sexual e sobre sua procriação. Homossexuais podem exercem a paternidade, seja pela adoção ou usando métodos que a ciência coloca a seu dispor. Mulheres solteiras decidem ser mães, assumem seus filhos, que não são mais chamados de “naturais”, ou bastardos. Casais casam-se e vivem em casas separadas, porque decidiram proteger sua individualidade. E ninguém deixa de se amar por isso. E, afinal, a televisão, com suas novelas, cujo público é majoritariamente a classe média, sempre preconceituosa, colocou na moda o casamento misto. Viva ela!
Ainda falta muita coisa, os preconceitos estão sempre por aí, nos dizendo a cada passo que, apesar de uma parte de nossa sociedade haver mudado, ainda há muita coisa a ser feita. Há casos de homossexuais espancados, e até assassinados. Mendigos incendiados, domésticas brutalmente atacadas pelos filhos da burguesia “bem-sucedida”, por “terem sido confundidas com prostitutas”. Pais zelosos, exemplares chefes de família, ou de quadrilha, justificam a bandidagem dos filhos, prole oriunda, ela própria, da bandidagem. Gente que acha menor delito espancar qualquer ser vivo do que usar seu corpo como melhor lhe apraz.

E afinal, podemos dizer que o sonho não acabou. Que não sonhamos um sonho errado, mas que tínhamos fé em falso ídolo. Que hoje sabemos que devemos continuar a sonhar, a tentar melhorar, ainda que a juventude tenha passado e nosso ídolo tenha despencado com o Muro e a imensa estátua de Lênin na Praça Vermelha.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

O sonho não acabou - 1

Fiquei curiosa. A propaganda dizia que se tratava de uma mini-série que enfocava o reencontro de velhos amigos, que haviam vivido sua juventude nos anos 70. Pareceu-me uma homenagem ao quadragésimo aniversário dos “68”, aquele ano que se estendeu tão além do seu fim cronológico. Interessei-me. Anos 70 trazem para mim um certo sabor de nostalgia, de ternura, de alguma coisa que deveria ter sido e não foi. Anos 70 foram os mais duros da ditadura. Mas havia tanta esperança! Nossa geração foi aquela que sonhou, que derrubou velhos tabus, que não se curvou a imposições de um tempo que sabíamos que estava terminando.
Como na obra de ficção, eu também gostava de me vestir meio ao estilo hippie. Era bem jovem, e tudo me parecia feito sob medida para mim. Fazíamos da moda uma forma de negação daquilo em que não mais acreditávamos. Lembro-me do desconsolo de minha mãe, quando vim visitá-la pela primeira vez. Ficou realmente espantada com meu pretenso “desleixo”, na verdade mais do que estudado. E meus amigos eram todos mais ou menos como eu. Meus dois namorados mais significativos daquela época, Robert e Miguel, um francês e outro argentino, eram marxistas. Eu não era nada, não tinha nenhuma formação teórica, mas acreditava, sinceramente, que o mundo poderia ser melhor. Aos sábados, freqüentávamos bares, onde se reunia a esquerda de Porto Alegre, cidade então considerada altamente “subversiva”. Lembro-me de um, freqüentado pela esquerda mais radical, que os gorilas deixavam em paz, certos de que dali não sairia nenhuma ameaça. Eram revolucionários sonhadores, teóricos, vestidos “à la Che”, ainda fixados na comovente imagem do herói morto. De nosso grupo, lembro-me do professor de Literatura, como Robert, que nos fez algumas palestras, não me lembro mais sobre o quê. Há algum tempo reencontrei-o no lançamento de um livro seu em Porto Alegre. Comprei-o. Não fala de marxismo, mas de uma pesquisa que fez na Terra Santa sobre a real existência de Jesus. Afinal, conclui que Cristo realmente existiu. Bela pesquisa. Mas não fala de fé. E também havia um crítico de cinema, um baterista, um teuto-brasileiro de uma família de pastores luteranos, rebelado contra tudo. E ainda uma ou duas pedagogas. E também minha prima Maria Helena, trabalhadora social, e seu belo namorado, Etienne, economista. E sem esquecer Miguel, o argentino, engenheiro trabalhando em projeto de revitalização do Guaíba. Projeto, aliás, que ainda se arrasta, sem nada de efetivo.
Hoje, passados tantos anos, perdi muitos de vista. Robert, radicalíssimo naqueles tempos, é hoje um senhor elegante, que viaja sempre acompanhado da mulher. Encontro-o em Congressos, conversamos, mas jamais tocamos no passado. Miguel casou-se, teve um filho, divorciou-se. Nunca mais tornei a vê-lo. Ambos, Robert e Miguel, continuam em Porto Alegre, são professores da URGS – Federal do Rio Grande do Sul-, naturalizados brasileiros. Ivo, aquele da família de pastores, tornou-se um importante membro da comunidade luterana do Rio Grande do Sul. Algum tempo atrás o vi sendo entrevistado na televisão. Disseram-me, não me lembro quem, que o crítico de cinema mudou-se para a Alemanha. Minha prima Maria Helena voltou para Florianópolis, trabalhou durante anos numa secretaria de cunho social do governo estadual, e aposentou-se. Casou-se com Etienne, que morreu jovem. Ela continua trabalhando em obras sociais. É a única com quem mantenho contato permanente e talvez igualmente a única que ainda acredita na utopia. Dos demais nunca mais tive notícias.
Confesso que a mini-série despertou alguma coisa que estava dormindo lá no fundo de mim. Não sei se é a nostalgia de um tempo que, apesar de ter sido duro, alimentou nossas utopias, nos fez sonhar, o que tornava melhores, mais generosos. Ou quem sabe, seja a consciência de que, por lindo e generoso que fosse, tudo se foi e, a mim, só restou o amargo gosto da decepção. Gostaria de poder conversar com cada um deles, perguntar-lhes como vêem aqueles tempos, que julgamento fazem, e se ainda acreditam naquilo que, com tanta emoção, nos mobilizava. Gostaria de repetir Gabeira e dizer que o sonho não acabou, e que nós é que sonhamos o sonho errado.