QUEM SOU EU

Sou professora de Francês, mas hoje minha principal atividade é escrever e ler, além de cuidar dos meus três vira-latas: Charmoso, Príncipe e Luther.



Gosto de fazer ginástica, sou vegetariana e adoro animais em geral, menos baratas.



Sinto especial prazer quando meus textos agradam aos meus leitores. Espero continuar produzindo e me comunicando com todos os meus amigos, neste maravilhoso universo da net.



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quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Tchaikovsky e eu

Já faz mais de um ano. Estava na Saraiva, olhando as novidades, quando descobri uma obra que me chamou a atenção: a biografia de Piotr Tchaikovsky. Peguei o livro – 882 páginas – e sentei-me para ver as fotos e ler o prefácio. Fiquei sabendo que o autor, o historiador russo, Alexander Poznansky , tomou como missão pesquisar profundamente a vida do compositor, o que não havia sido feito até então. Entusiasmei-me. Sempre gostei de biografias.  Havia ainda uma de Dostoievski, que pensei em comprar logo que acabasse de ler a de Tchaikovsky.
Já nas primeiras páginas comecei a me embaralhar com os nomes.  Ilhya Petrovictch era seu pai, e sua mãe Alexandra Andreevna.  Tchaikovsky , como esperava a família, foi estudar Direito na mais conceituada escola, fundada pelo Príncipe Gueorguievitch Oldenburgsky (????? Será que copei certo????) A disciplina era rígida, mas o Principe  levava, nos fins-de-semana, os alunos para se divertirem em seu palácio. E este lazer continuou com o novo diretor, cujo nome não vou escrever porque é tão enrolado quanto o primeiro. UFA!!!! Mas o que fazer se sua vocação é outra? Conforme diz seu irmão Modest, são as óperas, os ballets , enfim todo o mundo musical que o fascinam! Por outro lado, sua vocação sexual desabrocha lenta, mas claramente.
Uma vez concluído o curso de Direito, vai trabalhar no Departamento de Justiça, onde ocupa alto posto. Mas o conflito interno é intenso, entre a música e a burocracia, a independência e o rigor do cargo. Por fim, entra para o Conservatório de Música, onde seu pai é aconselhado, por certo fulano, a fazê-lo desistir, já que não vê nele pendores musicais! Mas Tchaikovsky insiste, da mesma forma que dá fim ao seu conflito de homossexualidade. Na Rússia  Czarista, ao contrário do Ocidente, onde homossexuais eram queimados, esta opção era considerada um pecado com qualquer outro. Ivan IV e Pedro o Grande praticavam esta forma de relação. Aliás, também foram homossexuais Alexandre, o Grande, da Macedônia, Ricardo Coração de Leão, Leonardo da Vinci, Michelangelo, o grande geógrafo, naturalista, antropólogo, Alexander Von Humboldt, e outros de que não me lembro. E que não vêm ao caso.  Até aí tudo bem, estou no início do livro, há ainda poucos personagens, apesar de já existir certa confusão na minha cabeça. À medida que a biografia avança... Já li alguns romances russos, mas aqui a pesquisa é profunda e os atores brotam das páginas como mato  da terra molhada!
Então, tenho a idéia de anotar os nomes num caderno de capa dura. O trabalho é grande porque, como o livro é volumoso, tenho que lê-lo sentada na cama, com almofadas nas costas e sobre as pernas, cada vez que anoto um nome, soletrando-o, tenho que tirar o livro – 882 páginas - da almofada e colocar o caderno, indicando de quem se trata. Por vezes, me embaralho com os nomes e penso que fulano é beltrano, já que há pouca diferença, uma ou duas letras, entre um e outro. Aos poucos descubro que há grande número de garotos de programa na principal Avenida de São Petersburgo, cujo nome não interessa. Foi nesta ocasião que Modest, irmão do compositor, declara seu homossexualismo.  É uma época de intensa dissipação na vida do compositor. E escreve a Modest acerca do enorme prazer que desfruta junto a certo garoto de programa. Não esconde mais seu homossexualismo, e em 1869 vai a um baile de máscaras vestido, de mulher. Anoto no caderno “Vladimir Shilovsky, provável incentivador da idéia, gostando os dois de gozação”. E os nomes continuam: Botchetchkarov, alcoviteiro homossexual, Nikolay Lvovitch, outro alcoviteiro que o levou a um “rendez-vous” com um rapaz encantador. Mas será que eles voltarão a figurar na biografia, terão alguma importância, além de alcoviteiros? SOCORRO!!! Por que não conheço alguém que saiba russo e possa me acompanhar nas minhas leituras, relembrando os nomes? Só conheço, de ver na televisão, Wladmir Putin, Dmitri Medvedv, e o Ministro das Relações Exteriores!!! Cada tarde que passo lendo minhas costas doem. Por que não se chamam como todo mundo: João, Pedro, Correia, Lula, Silva, Viana, Maria, Dilma? E os alcoviteiros, Renan, Romero? Isto é o normal...
Durante estes anos, ele se mantém como professor no Conservatório, mas suas viagens são freqüentes, seja a São Petersburgo, Paris, e às mais lindas cidades italianas. No entanto, ainda espera o pai – a mãe morreu cedo – que seu filho cumpra o dever de todo homem, ou seja, que se case e forme uma família. Vladmir Shilovsky , aquele que induziu Tchaikovsky a vestir-se de mulher, e que tinha “problema” análogo ao seu, resolve casar-se. A respeito deste casamento, com uma condessa rica - Alexeevna Vassilieva – (anotei o nome e sua função, já que não sabia de sua importância) comenta em carta ao irmão Modest: “(Shilovsky ) ...rompeu a virgindade da mulher......Ontem almocei com ele. A mulher é uma feiosa terrível e parece estúpida, mas é muito “comme il faut.” O casamento do amigo – que parece durou três anos –   dá-lhe  impulso para uma solução análoga para seu “problema”. Alguns membros da família sabem de sua homossexualidade, mas não seu pai.  Além disso conhece, através de sua música, uma protetora rica – Nadejda Filaretovna Von Merck, viúva de um riquíssimo industrial alemão, obcecada pela beleza de sua música. Durante anos, ela praticamente o sustenta,  pois o compositor gasta muito mais do que recebe como professor do Conservatório e vive sem dinheiro. No entanto, em uma carta, ela deixa explícito o que considera apropriado ao caráter de um homem superior. Tchaikovsky prevê algum problema, caso ela desconfie de seu homossexualismo. Evita, portanto, de conhecê-la pessoalmente, o que não traz para a protetora nenhuma desconfiança.
Nikolay Kondratiev, fazendeiro rico, apesar de casado e pai de uma filha, mantém relações íntimas com seus empregados jovens. Fatos como este eram comuns naquela sociedade, sobretudo na rural, onde normas de conduta eram especialmente “liberais”, entre senhores e “mujiques”, servos da terra.  O próprio Tchaikovsky, apesar de amar fraternamente seu lacaio, Aliosha, para ele empregado , companheiro, fraternalmente amado, em um período sombrio de sua vida, escreve a seu irmão Modest:” Ele entendeu perfeitamente bem o que eu precisava dele no momento e satisfaz com abundância todas as minhas exigências.” É preciso lembrar que Tchaikovsky nasceu, viveu e morreu sob o regime czarista, em que diferenças sociais eram consideradas ontológicas.
 O modelo expresso por Kondratiev talvez seja mais um impulso para o compositor “cometer” o casamento. A noiva chama-se Antonina Miliukova. Casam-se, mas o marido jamais consegue consumar o casamento. Antonina tenta todos os meios e só consegue como resultado seu ódio mortal. Esta foi uma época de conflitos intensos que quase levam o compositor à loucura ou à morte. Afinal, Antonina parece se convencer da realidade quanto ao homem que ama sinceramente, e volta à sua casa. Virgem!
Para terminar este texto, que já se torna muito longo , e que contei até onde consegui ler, quero transcrever uma anotação de Tchaikovsky no seu diário: “ Quando conheci Léon Tolstoi, fui tomado de medo e embaraço. Parecia-me que aquele grande entendedor do coração humano , com um olhar, penetraria em todos os esconderijos da minha alma...”
Bem, acho que até meados do próximo ano posso concluir a leitura. E confesso que em certos momentos fiquei tão confusa que passei por cima de pessoas e nomes. A biografia é muito detalhada e minha cabeça não deu conta!
 E desisti, definitivamente, de ler a biografia de Dostoievskchaikovsky e eu

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Paris antes da festa – II

E vamos continuar nosso passeio em Paris sob o 2º. Império.
“Mont-de-Piété”, ou “Ma Tante”.
Havia sido fundado em Paris ainda no século 17 e atendia o mais vulnerável, desde o pequeno burguês em apuros, até o miserável. Quase todo pobre, senão todo, recorria a este empréstimo sob empenho. Ali eram depositados objetos variados, cuidadosamente examinados e avaliados. Muitos jamais foram resgatados, e iam a leilão. O que fazer se não havia dinheiro? Podia ser o espaço onde aqueles que haviam descido ao mais baixo nível iam depositar seus objetos: havia desde relógios até colchões velhos e deformados, móveis quebrados, roupas íntimas, utensílios de cozinha e de trabalho. E todo aquele amontoado muito valia para seus proprietários! Muitas vezes representava tudo o que tinham! Muitos objetos banais, mas também objetos bizarros. Dentre estes destacava-se um, que voltava freqüentemente: era o queixo de prata de um ex-combatente, que se desfigurara em alguma batalha. Estes eram chamados “gueules cassées” – mais ou menos “caras quebradas”. Estava lá sempre que seu miserável soldo atrasava. Não se sabe se algum dia não pode pagar e sua queixada foi a leilão!
Atualmente os empréstimos, regidos pelo Crédit Municipal, estão em alta, o que reflete a crise. Entre 2008 e 2013 , o que o francês chama de “prêt sur gages” mais que dobrou indo de 74 millions a 190 millions de euros. Evidentemente, os objetos empenhados são diferentes daqueles de outrora.
“Vida” ou “sobrevida”, como faziam os mais miseráveis? Estes eram chamados “chiffonniers” – “chiffon” significando trapo, retalho. Catavam pelas ruas tudo que pudessem vender. Eram os nossos catadores de lixo seco. Chafurdavam no lixo caseiro à procura de algum objeto que pudessem recolher. Tendo enchido suas sacolas, chiffonniers retornavam para suas miseráveis habitações numa caminhada de uma , duas horas. Então, mãos habilidosas, separavam minuciosamente o que fora trazido. Tudo podia ser reutilizado, transformado. Mechas de cabelos, então sempre longos, encontradas no meio da sujeira, em chumaços embaraçados, eram cuidadosamente separadas de acordo com a cor, a textura , o comprimento. Estes fios poderiam servir para enchimentos dos elaborados penteados.
Apesar dos parques e jardins da nova Paris, muitos preferiam diversões macabras, como o passeio ao necrotério, reconstruído e aumentado. Cadáveres anônimos, em geral recuperados do Sena, ali ficavam expostos pelo menos durante três dias. Assim, o poeta Gérard de Nerval, que se suicidara, por ali passou dias, nu, os olhos abertos, olhando sem ver. “Diz o historiador de Paris, Hervé Maneglier, “ Vem-se aqui, como ir-se-ia a um espetáculo, procurar uma emoção” Tal foi o caso de um corpo encontrado pouco a pouco: tronco, depois membros, finalmente a cabeça. Descobriu-se que se tratava de um agricultor, morador dos arredores da cidade. Logo depois outro corpo nas mesmas condições foi achado, vindo da mesma região. Um trabalho minucioso da polícia identificou o assassino, que foi preso e condenado à morte.
É a fascinação da morte! O que dizer então das fogueiras medievais, que serviam de diversão a um público ávido de sensações sórdidas? Conta o historiador Maurice Druon, na sua obra “Les Rois Maudits”, o que foi o holocausto dos Cavaleiros da Ordem dos Templários, ordenada por Philippe Le Bel, no século 14. Havia um imenso público, eram vendidos confeitos, e as pessoas vinham elegantemente vestidas. Durante a  Revolução Francesa, já não era mais  o fogo, mas a guilhotina. O povo vinha, assim como na Idade Média, assistir ao espetáculo. Mulheres traziam tricô e tagarelavam, enquanto cabeças rolavam e o sangue jorrava. Eram as chamadas “tricoteuses”. Pois esta atração mórbida persistiu no 2º. Império. A  princípio pública, a execução tornou-se quase secreta, tentando evitar distúrbios anteriores. Mas ainda assim, o público, ao saber de uma imolação, chegava de madrugada para ver passar o carro que transportava a guilhotina. E enquanto esperavam, comiam, tomavam vinho, davam gritinhos de prazer. Até a chegada do condenado, que não viam, mas que provocava verdadeiro delírio!!!! Mas seriam somente estes homens do passado, ou somos nós também, no século XXI, que nos deliciamos com a morbidez, o sórdido sofrimento? Na televisão, programas de grande audiência nos fazem crer que sim.
Mais la vie est belle!!!!!
 Uma vez construída uma rede de esgotos na cidade, sendo parcialmente resolvido o saneamento básico, a vida parisiense torna-se muito mais prazerosa. Grandes redes  de esgoto atravessam a cidade, mas somente os mais ricos têm água em casa.  Na verdade, o banho com água corrente só surgirá no fim do século 19. As casas de operários são quase todas privadas do abastecimento do água. Até o fim do século, em cidades como Rennes e Bordeaux o lixo caseiro é jogado nas ruas assim como o conteúdo dos urinóis. As fossa sépticas despejadas em camburões abertos. Enfim, o saneamento básico continuou ainda por muitos e muitos anos um problema parisiense e francês.
Mas, por outro lado, há tanta coisa boa! Teatros, cafés-concerts, onde se degusta e se consome música, teatralizações. Há as lindas operetas de Jacques Offenbach, alemão radicado em Paris, filho de um cantor de sinagoga, cujo apartamento está assinalado ao lado da Opéra Garnier. Berlioz oferece ao público uma obra prima: A sinfonia Fantástica. Considerado o maior ator de todos os tempos, Fréderick Lemaître extasia platéias. Georges Feydeau diverte o público com seus “vaudevilles”, comédias rápidas. Félix Nadar inaugura a fotografia de estúdio, tendo fotografado os mais famosos, como Baudelaire, Victor Hugo, Dumas Filho e muitos outros. “Grands Magazins” são abertos ao público em geral: Louvre – o 1º. , já desaparecido e que tive o prazer de freqüentar, La Samaritaine, Le Printemps, Le Bon Marché, todos estes persistindo até hoje.

E não podemos terminar nosso passeio pelo Paris de antanho sem Les Halles Centrales, centro de abastecimento da cidade. Concebida em 1855, ano da Exposição Internacional, que reuniu Reis e Imperadores. Foi uma construção audaciosa, toda feita de vidro e ferro, que causou mais sucesso do que os pavilhões rebuscados da Exposição. Ainda existia quando morava em Paris, mas confesso que não a conheci. De noite lá funcionavam restaurantes considerados de ótima qualidade.  Meu pai gostava de freqüentá-los à noite, lá tinha feito amizades. Tomava sempre em um certo restaurante a famosa sopa de cebola. Uma noite, em conversa com o proprietário, lembrando-o de que era brasileiro, militar, e, portanto, não poderia concorrer com ele, pediu-lhe a receita. Foi assim que passamos a saborear em casa uma verdadeira sopa de cebola parisiense. Não sei que fim levou a receita, mas talvez um dia a encontre. Les Halles foi demolido, o que foi considerado um verdadeiro vandalismo, em 1971. Dizia-me um antigo namorado parisiense que interesses especulativos encabeçados pelo então Presidente Georges Pompidou foram o motivo da  barbárie. Pompidou morreu três anos depois de câncer. Pouco pode aproveitar do seu butim.
Mas Paris, aquela cidade fedorenta do século 13, a cidade transbordante do poeta Boileau, a cidade que recebeu “tant bien que mal” o revolucionário Haussmann, tem na sua longa história um charme “exquis” nenhuma outra  cidade tem. E Paris será sempre Paris.
Como diz a canção interpretada por Maurice Chevalier:
“Paris será toujours Paris,
La plus belle ville du monde.”

Queira Deus que continue ..........

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Paris antes da festa- I

Conta-se que um dia o rei Philippe Auguste, no século 13, estava em seu palácio, a beira do Sena, onde atualmente situa-se o Palácio da Justiça. Chegou perto de uma janela, para ver correr o rio, e justo neste momento passavam algumas carroças revolvendo o lixo de toda espécie que recobria o chão. Desprendeu-se então um tal fedor que sua majestade  desmaiou. Foi então que o rei resolveu agrupar o “prévôt” – uma espécie de Prefeito - e os burgueses, para que, juntos, pavimentassem as ruas de Paris, que, nesse tempo, praticamente se resumia à Ile de La Cité, no centro do rio.  A pavimentação foi feita com uma espécie de rocha triturada, que os franceses chamam de “grès”.
Seu neto, Luís IX – São Luís de  França, apesar de haver mandado muita gente para a fogueira – passando à noite por uma rua, recebeu em sua capa bordada com ouro um “pot de nuit” repleto de excrementos. O autor do crime era um rapaz que dobrava a noite estudando. Como Saint Louis era santo perdoou o assustado estudante.
Mas apesar do “grès”, Paris, que já se expandia pela “rive gauche” e “droite”, continou imunda. Todos dejetos eram jogados nas ruas, porcos circulavam e o mal cheiro, evidentemente, persistia. No  século  XVII,  o poeta Boileau, em “ Les embarras de Paris”, fala das dificuldades em caminhar na cidade , onde multidões se espremem nas ruas estreitas, brigam, carroças passam, cavalos escorregam e lançam lama para todo lado. Finalmente, nosso personagem sujo de lama, amarrotado, sem saber que caminho tomar, foge para onde pode.
É verdade que bastante coisa havia sido feita ao longo dos séculos, mas a cidade ainda era muito medieval. No século XVIII, muita gente, incluindo Voltaire, se preocupava com uma urbanização conveniente. Dizia Restif de La Bretonne, escritor erótico do século XVIII,  que , de tão estreitas, “... eram ruas onde duas pessoas não podiam passar sem se beijar.” Obras magníficas foram construídas ao longo dos séculos, mas tratava-se sempre de embelezamentos pontuais. Nada que integrasse o tecido urbano. Ruas estreitas e prédios altos, uns colados aos outros, onde o sol jamais penetrava e a humidade era permanente. O ambiente insalubre, com esgoto e casas de alimentos misturando- se, em nada se pareciam com as grandes praças e os grandes “hôtels”.  Não havia nem sombra de um plano urbano, a tal ponto que o “plano” de Paris era comparado a uma porcelana “craquelée”.
Durante a Monarquia de Julho, que vai de 1830 a 1848, o Prefeito , Rambuteau (nome de uma estação de metrô), tenta algumas melhorias, sobretudo no que diz respeito ao saneamento básico. A epidemia de cólera de 1832 havia matado cerca de cinco por cento da população em certos “arrondissements” , que poderíamos chamar de bairros. Famílias pobres viviam amontoadas em um quarto , sem banheiro. As latrinas, em geral no último andar,  transbordavam de fezes, e o serviço de limpeza era a tal ponto precário que os dejetos se derravam pelas escadas. Pelo chão todo tipo de detrito, restos de animais mortos, de alimentos, e muitas outras coisas. E sempre o mal cheiro dos corpos, das roupas, das latrinas, enfim, tudo irrespirável. E havia proprietários que transformaram seus cômodos em dormitórios onde miseráveis se amontoavam para passar a noite. “Em um cômodo no quarto andar, tendo apenas cinco metros quadrados – escrevia a Doutor Henry Bayard – encontrei 23 indivíduos, homens e crianças, deitados de qualquer jeito sobre cinco leitos. O ar era de tal forma infecto que senti náuseas.....” Aliás, note-se que até alguns anos atrás,  dormitórios eram alugados para emigrantes miseráveis, que dormiam sentados com os braços apoiados sobre alguma coisa, não sei exatamente o que, e que pela manhã eram despertados quando uma corda que segurava o apoio era retirada.
Mas, uma vez derrubada o Monarquia de Louis Philippe em 1848, estabelece-se uma 2ª. República, já que a 1ª. , aquela  nascida na Revolução Francesa, havia sido tragada por Napoleão Bonaparte, que alguns anos depois se proclamara Imperador. É nesta 2ª. República que surge um personagem singular, de quem vale a pena falar mais tarde. Trata-se de Louis Napoléon Bonaparte, sobrinho do primeiro. Candidata-se a Presidência e vence, entre outros, o célebre poeta romântico, Lamartine. Mas em 1852, o Presidente, dá um golpe e torna-se Imperador - Napoleão III - , já que seu primo que seria Napoleão II morrera na Áustria, ainda adolescente. Apesar de golpista, com uma história pregressa que arrepiar, mostra-se um grande estadista. É o primeiro governante a, de fato, transformar Paris. Para isso chama um desconhecido Georges Haussmann, nomeado Prefeito, e transformado em Barão.
A respeito do Imperador e Haussmann, dizia-se, conjugavam-se a esperteza e o mau gosto. Mas a verdade é que a Paris que vemos hoje jamais existiria sem a atuação destes dois. Ajudados pelos irmãos Pereire – judeus sefarditas – , grandes banqueiros, Napoleão III e Haussmann conseguiram a mais bela transformação que uma cidade já sofreu. Para isso, Haussmann não exitou em colocar abaixo todo o centro da cidade, onde se aglomeravam as mais fétidas ruas. Expulsou operários para um exílio nos arredores e a medida que a cidade  se embelezava, os mais pobres iam sendo expulsos e cada vez para mais longe. Napoleão I havia começado a Rue de Rivoli, Haussmann foi até o fim, bordejando o Louvre. No lugar das antigas ruelas, grandes avenidas “boulevards”, dizia que tinha a obsessão da linha reta. Mas suas grandes perspectivas nos encantam. Sob sua influência criou-se o estilo “haussmannien” , de prédios amplos, com cerca de cinco andares, com belas sacadas. É bom lembrar que que as largas avenidas tinham também uma função estratégica: impedir as barricadas, que haviam sido arma poderosa nas Revoluções de 30 e de 48.
Mas e a vida dos pobres, no seu exílio cada vez mais longínquo? E dos que chegam sem para trabalhar nas demolições e construções? Assim, de exílio em exílio, a cada nova demolição e renovação, vão cada vez mais se afastando de seus lugares de trabalho. Especuladores constroem com os restos das demolições, moradias irrespiráveis, em ruelas tão, ou mais estreitas do que aquelas destruídas. E de um momento para outro pode haver novos deslocamentos, para locais ainda mais afastados. Operários chegam a andar três ou quatro horas para chegar ao trabalho. A vida dos pobres torna-se cada vês mais dura!
Ainda há uma segunda parte do trabalho, já que teria ficado longo demais para um blog. Logo postarei “Paris antes da festa II”.  


sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Paris é uma festa Os anos loucos - 1920



1920. A Guerra acabara. Numa noite fria de janeiro, Amedeo Modigliani, o belo pintor e escultor judeo-italiano, acaba de morrer. Tuberculoso. Na mais negra miséria. Viera morar em Paris em 1906, e nunca sua genialidade fora reconhecida. Sempre perseguido pelo egocentrismo e vaidade de Picasso. Modi, como o chamavam seus amigos, era belíssimo, talentosíssimo e, pela lógica, teria de ter um belo futuro, mas afundara no alcoolismo e nas drogas. Sua companheira, que abandonara a confortável  vida burguesa, Jeanne Hébuterne, que já lhe dera uma filha, olhou o rosto imóvel do homem que amava de todo seu ser, não derramou uma lágrima. Grávida de nove meses, voltou à pobre “mansarde” onde moravam e lançou-se pela janela. O que valia a vida sem Modi?
Mas, por um desses azares do destino, neste ano em que o mundo perdia Modi, estouravam os prazeres em uma Paris cuja vida intelectual e artística jamais havia morrido. Paris que, anos depois, numa continuação daquela Primeira Guerra, que todos pensavam que não se repetiria, não se deixou sucumbir às intenções de Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda Nazista,  que sentia profunda inveja da cultura francesa. Já em 1913, no Théatre de l´Elysées, a “Sagração de Primavera”, obra do genial Igor Stravinski, com coreografia de Michel Foukine, e apresentando o maior bailarino de todos os tempos, Vaslav Nijinski, Paris estava na vanguarda. É verdade que a apresentação sofrera a maior vaia de que se tem notícia na história da arte cênica. Mas na década de 20, isto já era passado
Paris é uma festa. Com dólar barato, para lá convergiram muitos intelectuais americanos, como os romancistas Ernest Hemingway, Scott Fitzgerald e John dos Passos, o fotógrafo Man Ray, cuja amante, Kiki de Montparnasse , de corpo escultural, ele utilizou de maneira genial. Para lá também foram o poeta Erza Pound, o irlandês James Joyce. O pintor judeo-russo, Marc Chagall já emigrara anos antes e se tornara amigo de talentos, como Modgiani. Com a revolução russa, em 1917, a emigração de outros gênios foi inevitável. Afinal, como conviver com a arte de Estado? Para lá foram Igor Stravinski e Sergei Prokovief. E também Sergei Diaghilev, criador e diretor dos "Ballets Russes", o coreográfo Michel Foukine e Vaslav Nijinski, que desenvolveu esquizofrenia alguns anos mais tarde. Morreu em um manicômio em Londres ,em 1950. Isto sem esquecer as sensacionais  apresentações de Josephine Baker,a escultural negra americana
E havia também muitos intelectuais franceses. Jean Cocteau, poeta, escritor, dramaturgo, o jovem Raymond Radiguet , morto aos vinte e três anos de febre tifóide. E Eric Satie, grande compositor e pianista, Fernand Léger, professor de Tarsila do Amaral,  Georges Braque, um dos fundadores do Cubismo.  E Maurice Utrillo, o pintor de Montmartre, cuja mãe,  a bela Suzanne Valadon, também pintora, fora amante de Satie, de Toulouse-Lautrec, dentre outros artistas, pintores e músicos. Gabrielle ou Coco Chanel revolucionava a indumentária das mulheres. Abolia os longos cabelos, lançava tailleurs de linhas retas que colocavam em destaque a estrutura fundamental do corpo feminino. Foi mulher de muitos amantes, dentre os quais Stravinski, amou e foi amada. Quebrou tabus. Escritores, pintores e escultores freqüentavam o apartamento, de paredes cobertas quadros, onde viviam Gertrude Stein, romancista e poetisa americana, e sua companheira Alice Toklas.
Após a Revolução de 1917, membros da nobreza russa haviam fugido para Paris, e tornou-se chique ter uma governanta duquesa ou condessa. Muitos condes e duques tornaram-se mordomos ou choferes de taxis. Eram pessoas de vasta cultura, muita “finesse d´esprit”, e serviam uma burguesia endinheirada que, na maioria das vezes, carecia desses itens.
Os artistas e intelectuais, que até o início da Guerra, haviam se reunido em Montmartre, agora emigravam para Montparnasse. Seus locais preferidos de encontro eram Le Dôme, La Coupole, La Rotonde. Todos estes sobreviveram até nossos dias. Na Coupole, ainda podemos observar nas colunas pinturas de Braque, Picasso, Léger e outros, que, muitas vezes, trocavam arte por um belo jantar. A vida corria bela, ainda que o povo sofresse os efeitos do conflito. Mas ninguém pensava na miséria que devastava o povo alemão, que era obrigado a pagar todos os prejuízos à França e à Inglaterra. A chamada Républica de Weimar , que fora instalada após a Grande Guerra, estava em frangalhos. A inflação era a maior que já se verificou em todos os tempos. Erich Maria Remarque, escritor alemão, conta no seu livro, “ O obelisco negro”, que as pessoas acordavam de madrugada para comprar o pão, pois ao meio-dia estaria mais caro. Ninguém se lembrou que a miséria é um terreno fértil para o surgimento de lideres carismáticos que prometem a redenção. Não se conhecia um simples sargento da Grande Guerra, que, obcecado pela vingança, iludindo a todos, fosse capaz de promover tamanha barbárie com o apoio de um povo culto. Não  se poderia imaginar: a Grande Guerra não acabara.
Mas Paris resistiu. E mesmo sob o domínio nazista a cultura francesa não cedeu graças aos esforços de intelectuais como Cocteau, Sartre, Simone de Beauvoir, Jean-Louis Barrault, Picasso, que passou a ocupação em Paris, Albert Camus e tantos outros. E em 1944, libertada da ocupação nazista, Paris retomou toda sua luz. Até.......não sabemos quando.

Quero oferecer este texto a meu falecido irmão, Sérgio, que me ensinou desde criança o prazer da leitura, da admiração da pintura e da boa música. Sérgio tinha uma inteligência superior. Lembro-me de que quando moramos em Paris, foi assistir à “Sagração da Primavera”, na Salle Pleyel, regida pelo próprio Stravinski, já velho e morando em Nova Iorque. Ao seu lado, sentou-se Jean Cocteau, cuja obra também admirava. Chegou em casa delirante de alegria. Aquele fora um dia de glória em sua vida.
Obrigada, meu irmão . Descanse em paz

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Somos todos macacos

Tenho alguns parentes, lá pelo sul, que se dizem brancos. E até parecem. E como todos os brasileiros velhos falam de uma antepassada índia, que foi laçada por um branco e daí surgiu a família. Folclore... Como dizia José Wilker, se não me engano na mini-série “Brado Retumbante”, “somos uma nação mulata”. Somos daquele grupo que, nos períodos mais negros da segregação americana, tinha a “gota de sangue”, ainda que aparentemente fosse mais branco que o Lula. Mestiça sou eu, minha vizinha, meu pai, o Prefeito, o Delegado. Mestiço é o vizinho metido a besta, o gari, meu homem, meu amigo. Mestiços somos todos, excetuando-se algumas colônias no sul, e que já começam a se miscigenar.
E viva este colorido, que nos dá força para enfrentar tanta coisa! Dá ao povão saúde para enfrentar o SUS- é claro que ninguém é de ferro -, para tomar o ônibus super lotado, cheio de micróbios. Este colorido que dá a nós, mulheres brasileiras, a bunda que encanta os gringos, cujas mulheres são tão falhas neste item! E não nos queixamos, ainda que sejamos os campeões da hiperlordose. É esta miscigenação que permite a mim, como a muitas outras mulheres brasileiras driblar o tempo. Eu que tive um bisavô mulato, uma avó cabrocha e um avô descendente de alemães. Misturar, dar aquele tempero especial que faz com que sejamos tão encantadores para os gringos (ainda que eles desconheçam nossos bastidores!). É dar aquele tempero que faz com que a comida da mamãe tenha um sabor tão especial! É a pimenta, o alho, o cuminho, a raiz forte...  É o Brasil no que ele tem de bom!
Meu sobrinho Bertrand teve que arrancar alguns dentes e colocar aparelho. Havia dentes sobrando para sua arcada branca. Negros têm dentes maiores e lindos! O mesmo aconteceu com Felipe, filho de minha sobrinha Ludmila. Tenho um dente um pouco proeminente, o que alguém já me disse que é charmoso – que bom-, porque não arranquei o que sobrava. Tenho uma mancha na perna, Felipe idem, ambas diagnosticadas como mistura racial.
Onofre, meu bisavô, e seus antepassados estão presentes em mim e em toda a família. Onofre tinha uma mãe negra, e um pai branco. Sinto especial prazer em imaginar essa tataravó negra como um tição, com aquele corpo sinuoso, que, graças a Deus, eu como sua descendente , herdei. Com aquele cheiro de canela, que tanto louva Jorge Amado. Gosto de imaginá-la no seu andar sensual, na sua ginga que encantou o homem que a fez mãe de seus flhos.

 O fenômeno racista é muito antigo. No princípio éramos todos macacos. Pouco a pouco viramos gente. Ficamos aparentemente diferentes. Razões desconhecidas nos levaram a raças diversas. Razões conhecidas nos levaram a explorados e exploradores. Mas para mim, e para milhões de outras pessoas, felizmente, aquela mulher com cara de Arlequim jamais vai significar nada além de mais uma. Jamais terá o cheiro de canela, nem o corpo sinuoso, nem a pele resistente ao tempo, nem a sensualidade que se expande em nós. Será sempre, apesar de mestiça, uma cara de Arlequim, que só se fez notar pelas caretas.  

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Meu cesto de cerejas

“Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para frente do que já vivi até agora.
Tenho muito mais passado do que futuro.
Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas...
As primeiras, ele chupou displicentemente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço...”

Se viro a cabeça e olho para atrás, vejo um longo caminho, onde fui jogando as sementes das cerejas. Alguns caroços ainda trazem vestígios de cor esmeralda da fruta, estes estão mais distantes. À medida que se aproximam de mim, tornam-se mais limpos. Neste longo caminho posso perceber os que me precederam, e cujos cestos já se esvaziaram há tempos. Eles são muitos e sinto saudades.  Dou-lhes adeus. Até qualquer dia.
 Viro-me para frente, meu cesto está pousado no chão. Quantas cerejas haverá nele? Não me importo em contar. Vejo que restam ainda algumas. Preciso preservá-las? Ou não seria melhor saboreá-las tranquilamente, sem pressa. Faço as contas da média da idade de meus irmãos, que me disseram adeus. Já ultrapassei o limite. Estou em débito! E de quanto poderá ser meu débito? Bem, minha mãe viveu muitas décadas a mais do que sua única irmã, que se foi aos dezessete anos. Mas há uma vantagem para minha tia; continua linda e jovem, no retrato que tenho diante de mim. Minha mãe envelheceu, engordou, teve artrose, osteoporose!
Viro a cabeça e constato que há um longo caminho. Cada porção de caroço deixado no chão, como numa trilha, representa um momento, de tristeza ou alegria neste passado que pouco a pouco marcou meu rosto, e orgulho-me de cada uma dessas marcas. Há tanta história! Meu primeiro amor, meu primeiro beijo, meu primeiro contato sexual. Tive os amores que quis ter, as viagens que me fascinavam, a liberdade que construi e que curto a cada momento de minha vida. Enfim, só quero lembrar-me do bom... Como se isso fosse possível!
Meu débito, se assim eu fizer meus cálculos já está grande. Economizo minhas cerejas? Faço pilates, musculação, cuido da pele, do cabelo. Mas sinto que não há como economizar. Mudanças foram aos poucos me transformando. Tenho pequenos- felizmente pequenos- problemas de saúde. Não gosto mais  de cidades grandes, de barulho, de muita gente ao meu redor. Eu, que passava as noites de sábado dançando! Não consigo mais, e nem quero.
Não me importa mais a opinião dos outros, minha personalidade amadureceu. Vivo como gosto. Não estou a procura de nenhuma honraria. Aprendi a fugir de gente chata, e não tenho medo de ser, se for preciso, indelicada. Como disse Jane Fonda, estamos no Terceiro Ato e não há o Quarto! Vou esvaziar tran-qui-la-men-te minha cesta, e quando chegar ao fim, vou poder dizer como Neruda: “Confesso que vivi!”.

Esta é uma homenagem a Mário de Andrade ou a Rubem Alves, ou seja ele quem for,  que nos deu de presente um dos mais belos e profundos textos que já li. Obrigada, amigos.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

O que não nos mostraram E não podemos esquecer

Alguns homens, jovens, aparecem numa cena de um filme antigo. Parece que faz frio, vestem sobretudos. São quatro ou cinco. De repente, vemos soldados que lhes metem no pescoço cordas. Serão enforcados. Mas, afinal, quem são eles? Uma voz nos diz que não ficará de pé nenhum sérvio rebelde. Mas já não vimos tanta maldade inimaginável praticada pelos nazistas? Seres humanos amontoados como lixo? Crianças famélicas? Rostos que quase perderam sua humanidade? Por que aquela cena particular causou-me tanto horror?
Um simples gesto. Como aquele de quem arruma alguma gola que o incomoda... Mas ali, aquele jovem procura algum conforto com a corda que lhe quebrará o pescoço dentro de alguns segundos. É como se sua vida fosse prosseguir! Não há desespero em seu rosto. Mostra dignidade, o que faltou a muitos nazistas justiçados em Nuremberg! Logo depois aparece a figura ao mesmo tempo sinistra e ridícula de Hitler! Quanto asco!!!
Já vi e revi esta imagem que sempre me trás muita dor. Ilustra a propaganda de um programa que mostra os filmes secretos da 2ª. Guerra, no Canal Bio, na tevê por assinatura. A imagem me comove, me enoja, me dá calafrios, mas me fascina em toda sua carga de  tragicidade. É como se eu estivesse lá, assistindo a todas as mortes de resistentes que lutavam pela libertação de sua pátria, antiga República Yugosláva, que reunia várias populações naquela região dos Balcans. Mas foi aquele gesto, simples, cotidiano, do pescoço, que mais me emociou. Era seu adeus à vida!
E quem seria este jovem? Um professor, um médico, um artista? Teria um amor,  filhos ? E seus pais? Conheço a bravura destes povos reunidos na resistência ao nazismo, e aos simpatizantes croatas. Sem nenhuma ajuda lutaram isolados, mostrando uma coragem incomparável. Quero imaginar meu mártir como um guerreiro, tão bravo quanto seus compatriotas, e posso fazê-lo ao ver sua dignidade no derradeiro momento.
Já morreu há muitas e muitas décadas. Seu cadáver não dever haver sido restituído á família. Foi empilhado com milhões de outros! Como vemos - meu Deus – fazerem os separatistas pró-Rússia com as vítimas do acidente que eles próprios provocaram.
Se Deus é realmente esta usina de força de que fala John Lennon, que ele nos dê a força de que precisaremos SEMPRE para nos revoltarmos, para gritar ao mundo que não é isso que queremos! Faço a minha parte, revolto-me contra qualquer  tirania, de que é exemplo o jovem sérvio, com seu ultimo gesto de vida. Não sei se meu texto será lido, mas escrevê-lo já reconforta meu coração!   





domingo, 23 de fevereiro de 2014

As múltiplas faces de Eva - III


Tantas são as transformações que ocorrem a cada dia no mundo, que mesmo coisas ditas há menos de vinte anos já se tornaram obsoletas. Gilles Lipovetsky, filósofo francês, tem sua obra fixada nestas transformações. Deixa-a aberta, capaz de captar mudanças e sempre encará-las de frente. Mas a disjunção sexual que aborda nesta sua obra acabou por colocá-lo como reacionário. A começar pelas feministas “enragées”, que o têm como inimigo e ainda acreditam na famosa frase de Simone de Beauvoir: “Não se nasce mulher, torna-se.” É verdade que Simone revolucionou e ensinou mulheres, como eu mesma, o que significa ser mulher. O que pretende Lipovetsky não é negar o que diz esta grande pensadora, mas colocar a natural disjunção entre homens e mulheres. É verdade que nossa história sempre se baseou na mulher- amor, mulher- paixão. E assim dizia a escritora romântica Germaine de Stäel: “As mulheres não existem senão no amor, a história de suas vidas começa e termina com o amor.” E colocando-as na esfera exclusiva do amor, tornaram-nas dependentes, incapazes de alcançar sua individualidade. Já nos anos 60 e 70, a grande reviravolta coloca o amor como o fator mais importante da servidão feminina, seja no plano doméstico ou sexual. Mulheres optaram pelo que, com alguma exageração, Simone considerava o casamento burguês: uma prostituição institucionalizada, em que a mulher paga com seu corpo virgem o sustento para a vida toda. Mas foi assim, enfrentando a boa educação burguesa, que as mulheres se libertaram da obrigatória maternidade e a conduta sexual passou a ser  opção de cada uma. Uma feminista americana chegou a dizer “ O amor é a reação da vítima à violação” O amor que até então fora visto como o grande objetivo da mulher, era agora acusado de estar a serviço do macho. A perspectiva destas feministas “conduzirá Barthes a evocar o surgimento de uma nova obscenidade: a do sentimentalismo”  Mas passada esta fúria feminista, muito de sua marca permanece, cada vez mais as mulheres começam a tomar distância do amor como objetivo único, deixam de renunciar a uma profissão, o que não significa que o amor haja desaparecido.
Devemos a Simone e às feministas dos anos 60 e70 o ”Reconhecimento da atividade profissional feminina, legalização da contracepção e do aborto, liberação da moral sexual: uma revolução sem dúvida aconteceu.” Mas tudo isto foi o produto da independência econômica, que permite à mulher viver ao seu modo, ser como dizia Sartre “um ser para si” , ou seja, um ser que se faz, que se realiza. Homens e mulheres passaram à igualdade, e se há diferenças em salários, isto só acontece em países periféricos, como o Brasil. No entanto, uma questão permanece, malgrado esta democratização: qual o papel do amor , mesmo em sociedades que priorizam ao indivíduo a livre disposição de si mesmo? Apesar de todas as conquistas igualitárias, a mulher continua apegada ao amor, ainda que de forma menos marcada que antes. Há cerca de trinta ou quarenta anos, a mulher dissocia, cada vez mais, o amor do casamento. Não aceita mais casamentos insatisfatórios e sente-se segura para sair de uma situação incômoda. A mulher segue seu caminho sem a presença do macho. Homens públicos e mulheres públicas, quanta diferença havia nestas duas qualificações! E hoje quantas são as mulheres públicas? A democratização dos sexos, no entanto, nos tem dado algumas provas concretas de disjunção: quando Segolène Royale , companheira de anos de François Hollande, com quatro filhos, lhe pediu sua mão em público, recebeu  como resposta um incômodo silêncio, que justificou com a frase: “Nosso amor é maior.” Era  traída há sete anos. Foi abandonada, não procurou outro companheiro, como fez Sarkozi, abandonado pela mulher logo no ínicio de seu mandato. Agora, vemos mais uma vez, Hollande trair uma amante, que teve que internar-se num hospital pelo choque. Breve estará aparecendo com a terceira. Segolène é uma política, uma mulher pública, que já foi candidata à Presidência da França, a segunda jornalista de uma revista importante. Finalmente, não é justo falar em revolução e permanência no feminino? E ainda há a tanta coisa a dizer  sobre esta magnífica obra!
Mas haja permanência e revolução nos dois gêneros, é  fundamental que nos lembremos sempre do que disse Simone “Que nada nos defina, que nada nos sujeite, que a liberdade seja nossa própria substância.”



segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

As múltiplas faces de Eva II

No seu curto livro “ A room of one´s  own” , Virginia Woolf se diverte inventando  o destino de uma suposta irmã de Shakespeare :enquanto ele aprendia no colégio um pouco de latim, gramática, lógica, ela teria permanecido no lar na mais  completa ignorância: enquanto ele  caçava , percorria os campos, dormia com mulheres da vizinhança, ela teria remendado retalhos sob  o olhar de seus pais, caso tivesse partido, como ele fizera ousadamente , tentar a sorte em Londres, ela, não se tornando uma atriz bem sucedida: ou teria sido reconduzida à casa paterna que a teria forçado a um casamento, ou  seduzida, abandonada, desonrada, teria se matado de desespero. Pode-se também imaginá-la  como uma alegre prostituta......mas em nenhum momento ela teria dirigido um elenco ou escrito dramas.”
Simone de Beauvoir em “O Segundo Sexo”


Na verdade, diz Simone,o status legal da mulher continuou o mesmo desde o início do século XV até o século XIX. Mas, salvo algumas pequenas distinções, pouco se alterou desde a Antiguidade greco-romana até os nossos dias. Muitas mulheres continuam súditas de seus maridos-senhor, confinadas ao lar, ou quando têm seu próprio trabalho, sua remuneração é sempre infinitamente inferior à do macho, já que sempre se consideraram inferiores.  “ Abrem-se às mulheres as fábricas, os escritórios, as universidades, mas continua-se a considerar que o casamento lhes é uma carreira das mais honoráveis, que dispensa qualquer outra participação na vida coletiva.” ....” Tudo encoraja à jovem a  esperar a esperar do príncipe encantado dinheiro e felicidade do que tentar sozinha a difícil e incerta conquista. “ E é verdade que o mito de Cinderela ainda vigora . E continua Simone” “Entretanto tendo tomado consciência de si-mesma e que pode libertar-se do casamento pelo seu trabalho , a mulher não aceita a submissão.” Mas a que generalização não iluda ninguém. É bom lembrar que Simone escreveu o 1º. Volume de sua obra em 1947, e que de lá para cá muita coisa mudou, mas a verdadeira igualdade ainda está para ser conquistada Até os anos 50 muito pouco havia mudado. Em nossos dias, a mãe solteira deixou de ser objeto de escândalo. A sexualidade feminina rompeu barreiras, mas ao marido é permitida a traição, não à esposa, que passa a ser execrada. Quantos maridos apaixonam-se, abandonam suas esposas, as expõem à crueldade pública e, uma vez terminada a paixão, voltam fagueiramente ao lar, que lhes dá segurança. E alguém já ouviu falar de algum caso oposto? Poucas mulheres , em nossos dias, participam do orçamento da casa, dividem decisões, são mulheres autônomas. Até pouco tempo atrás, as mulheres eram menos preparadas que seus irmãos, dedicavam- se menos à profissão. E em muitas famílias isso ainda é freqüente. Conheço mulheres que ganham sua vida mas ,ainda assim, admiram outras mulheres porque encontraram um marido mais rico do que o seu, ainda que vivam exclusivamente do dinheiro do macho. Conheço mulheres que aceitaram a traição porque é mais cômodo, menos perigoso, mais de acordo com regras sociais ainda vigentes.
Em muitos casos, hoje, 2014, o homem ainda considera a mulher uma conquista sua. “ Não é somente um prazer subjetivo e efêmero que procura o homem no ato sexual.Ele quer conquistar , tomar, possuir: ter uma mulher significa vencê-la: ele penetra nela como o arado no sulco da terra : ele a faz sua como faz sua a terra que trabalha.....”  E esta é a razão de exigir a virgindade, ele será cavaleiro a colher a flor que  existe no fundo da mulher, daí o termo deflorar. No casamento burguês diz Simone, a virgindade é moeda de troca, a mulher entrega seu corpo virgem e recebe em troca uma pensão vitalícia, seja ela em quaisquer condições. No início do 2º. Volume Simone começa com a seguinte reflexão: “O destino que a sociedade propõe tradicionalmente à mulher é o casamento....” Mas ela própria conclui, já naqueles tempos que vão longe, que a condição econômica da mulher estaria mudando esta união. A mulher deixou de estar restrita à função reprodutora , livrou-se e continua livrando-se, da servidão , produz pelo seu trabalho. Mas ainda há muito a conquistar. E a luta continua, não com soutiens sendo queimados, machos odiados, mas com a certeza de nossa individualidade e consequente liberdade, e de nossa recusa permanente na desigualdade.