QUEM SOU EU

Sou professora de Francês, mas hoje minha principal atividade é escrever e ler, além de cuidar dos meus três vira-latas: Charmoso, Príncipe e Luther.



Gosto de fazer ginástica, sou vegetariana e adoro animais em geral, menos baratas.



Sinto especial prazer quando meus textos agradam aos meus leitores. Espero continuar produzindo e me comunicando com todos os meus amigos, neste maravilhoso universo da net.



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quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Começar de novo

Quero começar 2010 como se fosse meu primeiro Ano Novo. Fiz esta promessa para mim mesma. Começar ou recomeçar, como se todas as mágoas do passado houvessem desaparecido. Dizer como Jean Renoir, cineasta, filho do grande pintor, ao escrever suas memórias: ”Do passado só o melhor.” Não conseguiu, como também não vou conseguir, mas quero definitivamente abandonar muitas coisas, a começar por aquelas que, não sei por que razão, guardei em meus armários: bolsinhas inúteis, bilhetinhos remotos, toalhinhas usadas quando a carruagem parava para a troca dos cavalos e as senhoras desciam para molhar levemente o rosto (tenho um monte, todas presenteadas, lindamente bordadas, e que nem sei onde meter). Quero despojar-me de tudo que não for necessário, não aceitarei mais presentes inúteis, que a gente ganha aos montes no Natal e depois fica sem saber o que fazer: nem bolsinhas para guardar calcinhas, bijuterias, lencinhos. Quero doar- e também não sei a quem - vasinhos, potinhos, bichinhos, toda a parafernália que enche a casa e a vida da gente.
Tenho feito um combate intransigente à inutilidade, quero viver com simplicidade. Simplicidade em tudo. Não quero coisas que atravanquem minha vida. Quero colocar meus milhões de CDs no Ipod. E depois que conseguir chegar ao final desta tarefa, que me parece tão árdua quanto “Os Doze Trabalhos de Hércules”, ainda terei o problema de distribuir os originais. Isto depois de uma cópia de segurança no Bekape. Quero passar para DVD os outros milhões de vídeos que venho amontoando, tudo com a contribuição do Ricardo, ao longo dos anos. Sendo que a maior parte é totalmente inútil. E ainda temos dezenas de álbuns com fotos nossas, tiradas aqui e ali, que quero reduzir ao meu Ipod, colocar em DVD, assegurando tudo no Bekape. Mas aí, o que fazer com os álbuns que se amontoam na parte superior de nossos armários? Jogar fora? Impossível! Afinal, fotos traduzem recordações que fazem parte da vida da gente! Quero reduzir, minimizar. Meu sonho mesmo é ter acesso à nanotecnologia. Quero vender, doar, dar de presente, minha mesa de madeira escura, enorme, com cadeiras pesadas e desconfortáveis, que pertencem a um passado que não posso e nem quero reviver. Quero uma mesa clean, pequena, onde Ricardo, eu e alguns poucos amigos possamos nos instalar e papear. Quero abrir armários com o necessário, bem organizados, que a gente saiba o que contêm.
Na minha busca pela simplicidade, encontrei coisas desaparecidas há muito tempo, de que nem me lembrava mais. Algumas guardei, outras joguei fora. Não quero fazer como meu pai que jogava dentro de um velho baú de ferro, todas suas más recordações. Quando fui remexê-lo, após sua morte, pude fazer um balanço de tudo que o atormentava. O que me atormenta, e todos têm alguma coisa que mexe mal com a gente, conto para meu analista. E depois de minha morte, meus segredos irão embora comigo. Do meu passado, quero guardar minhas fotos de felicidade, as lembranças dos que se foram muito antes de minha chegada, mas que, afinal, fazem parte da minha história: meu tataravô, meu bisavô, minha avó aos quinze anos, meu pai jovem e lindo, cheio de projetos e esperanças, suas fotos dedicadas à minha mãe com dedicatórias cheias de paixão: ”... à minha querida noivinha...”, lindo! E confesso que jamais recebi uma dedicatória assim. E ela numa foto enviada às amigas “... vejam como é lindo meu noivo...!” Quero Felippe e Alice felizes, para sempre na minha memória. Em 2010, não vou mais pensar neles doentes, sofredores. Quero alegria, porque afinal não sei quantos anos me restam. Confesso que, como no caso das toalhinhas bordadas e inúteis, também não sei o que fazer com certas lembranças, mas tanto umas quanto outras vão sumir do meu dia-a-dia e dar espaço a coisas úteis e gostosas.
Quero lembrar o meu passado sem mágoas, não quero maldizer meus sonhos de juventude, aqueles dos meus anos dourados, que na verdade eram anos de chumbo, quero pensar o quanto era lindo sonharmos. 2010 será meu ano de recomeço, e espero fazer este recomeço sempre que abrir os olhos para um novo dia, porque 1º. de janeiro nada mais é do que uma data. Um dia dentre os 365 outros, e eu quero 365 para recomeçar, o que, diga-se de passagem, meu Ipod, meus vídeos e minhas fotos vão me ajudar a fazer.
E viva o recomeço!

domingo, 1 de novembro de 2009

O DESLEIXO

No início de minha adolescência, graças a uma bolsa de estudos de meu pai na França, tive a sorte de entrar em contato com outra cultura. Experiência incomparável, que nos proporciona, sobretudo nesta faixa de idade, o que se convencionou chamar “visão no espelho”, fenômeno em que, confrontado ao outro, o estrangeiro, percebemos a nós mesmos, numa dimensão diferente. Pude, graças a isto, começar desde cedo a desenvolver um olhar crítico sobre a sociedade em que vivia. É verdade que acabei cultivando certas crenças que me acarretaram alguns problemas, mas considero que, afinal, consegui, com este olhar crítico, chegar à juventude com maturidade e já ao entardecer da vida com uma suficiente sabedoria, que nossa educação brasileira pequeno-burguesa sonega aos filhos. Tive ainda a felicidade de encontrar um companheiro como Ricardo. Suas reflexões sobre nossa realidade, nossos longos bate-papos, permitiram um debate sobre tudo aquilo que me parecia perverso no país. E com “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, que li avidamente, como que coroando tudo que havia percebido e discutido, pude, digamos assim, sistematizar o que vinha pensando e debatendo até então.
Não foi novidade para mim, a triste afirmação do autor de que somos uma “sociedade” do “cada um por si”, mas lendo-o conheci o contexto histórico desta nossa triste realidade. Já há muito tempo, só para ilustrar para mim mesma, fico observando o que se passa ao meu redor e não sei se devo rir ou chorar. Aliás, acho que chorar é melhor, porque mostra que, afinal, não aprovo e não quero ser assim. Comecemos com a academia de ginástica que freqüento, onde pesos de quase cem quilos são invariavelmente deixados nos aparelhos para quem vier depois se virar como puder. Em anos de freqüentação, só encontrei uma única alma caridosa, que vendo que havia sido descortês, veio pedir-me desculpas e retirou os pesos. A partir de então ficamos amigos, e o considero um verdadeiro cavalheiro. E ainda há as conversas nos aparelhos, ou as alternâncias intermináveis entre amigos, que privatizam um espaço que é de todos, que pagam (a mesma quantia). Isto sem falar no suor, que não raras vezes inunda assentos, encostos e colchonetes, e que a gente é obrigada a secar e limpar com o detergente, que os instrutores colocam por todo lado. Uma amiga chegou a ficar perplexa porque eu, que pouco transpiro, limpei o aparelho ao deixá-lo. E tem também os ventiladores que, freqüentemente, metem na cara da gente, ou desligam como se nem existíssemos. Como sou atrevida, logo protesto, algumas vezes ouço desculpas, outras recebo uma cara séria, já meio ofendida. Mas não me dou por vencida e defendo sem temor meus direitos, doa a quem doer como diz Boris Casoy.
Tudo isto pode ser englobado numa palavra: DESLEIXO. Diz Sérgio Buarque de Holanda que esta é uma palavra que não tem correspondente em nenhuma outra língua. E, realmente, saindo do Brasil jamais encontrei alhures correspondente concreto deste nosso traço civilizacional. Desleixo na relação com os outros, desleixo na conservação de um patrimônio privado que serve a todos, e pelo qual todos pagam. Há o desleixo com o que é público, de imediato transformado em bem privado. Mas uma das coisas que mais me fascina são as calçadas, hoje, pelo menos na nossa região, infalivelmente, de pedras portuguesas. Como sou obrigada a olhar quase o tempo todo para baixo, evitando buracos perigosos, que já me fizeram torcer o tornozelo – sempre o esquerdo – pelo menos umas três vezes, fico observando o “desenho” que “enfeita” nossas perigosas calçadas. Há um desenho recorrente de um animal que penso pretende ser um cavalo marinho. Mas o de nossas calçadas tem uma espécie de asa, ou coisa parecida, que pode fazer pensar num dragão. Já procurei na Google imagens do bichinho e li alguma coisa sobre eles, já que gosto tanto dos animais, e acho que se forem cavalos marinhos devem ser machos, guardando no ventre os ovos, já que têm, ou tinham, uma barriga proeminente. Mas seja lá o que for, de cavalos marinhos há muito se transformaram em outra coisa. Um dia desses, dei-me ao trabalho de observar atentamente cada um desses finados animaizinhos. Constato, então – sem nenhum espanto-, que poucos, pouquíssimos sobraram. Num percurso de cerca de duzentos metros, há coisas interessantíssimas. A maioria perdeu o rabo e engordou incrivelmente no conserto que tentaram (?) fazer. O rabo juntou-se à barriga e o bicho ficou estranhíssimo, redondo e sem o rabinho revirado que o caracteriza. Outros perderam este membro, e o focinho característico, transformando-se em um bicho inidentificável. Há um, pobrezinho, que perdeu tudo isto e engordou tanto, que virou um saco sem forma definida. E há ainda uns dois ou três que foram cruelmente esquartejados. Deles resta alguma coisa parecida com a cabeça na beira da calçada, ou perto das edificações, o rabo, ou algo parecido, sempre em direção oposta, e, finalmente, um corpanzil, que restou inerte, como prova do homicídio doloso do DESLEIXO, bem no meio da calçada. E finalmente, outros foram volatizados, misturados às pedras claras.
Na praça onde moro, toda coberta das malfadadas pedras, vejo de vez em quando um grupo de operários “consertando” o buraco que a chuva causou. Felizmente não há figuras, que foram substituídas por horríveis remendos. Os desníveis – aliás, alguém conhece uma calçada nivelada no Brasil? - são perigosíssimos, e entre uma pedrinha e outra há quase um centímetro de distância. Os operários colocam displicentemente as pedras, batem com um martelo – não sei se é especial-, coçam a barriga e falam de futebol. O resultado final é horroroso, e perigoso. Como gosto de usar saltos altos, há trechos em que não me aventuro sozinha. Logo eu que já tenho experiência com as calçadas!
Para terminar, um pequeno relato. Há alguns dias, estava eu mostrando ao meu netinho de dois anos os coelhinhos em uma loja vizinha, havia chovido. De repente, uma água imunda cai no meu rosto e entra pela minha boca. Sorte que não foi nele! Sinto algo viscoso, nojento, entrando-me pela boca. Cuspo imediatamente, e repito a operação várias vezes. Corro para casa, escovo os dentes, passo desinfetante bucal. Mas antes de disparar para casa, olho para cima. A água goteja de vários buracos na marquise, onde deveria haver alguma iluminação. Arrancaram as luminárias, os fios estão à mostra, enrolados e enferrujados, gotejando, certeiramente nas cabeças dos passantes a imundice que se acumulou. Mas, afinal, somos uma “sociedade” do “cada um por si”, do “salve-se quem puder”! E não há porque se surpreender.
E uma pergunta que não posso calar: por que estamos tão revoltados com nossos políticos, que não são nada mais do que a mais clara e descarada expressão do país?
E foram eleitos por nós!
E uma notícia de última hora! O que vocês acham dos detectores de armas que há um tempão – não me lembro quanto – foram abandonados em um galpão, ou coisa parecida, justo no Rio de Janeiro? Foram encomendados para vigilância de nossas fronteiras e custaram milhões! Afinal quem será o responsável? Algum dia ficaremos sabendo? E alguém será punido? Ou ainda mais, teremos notícia do destino que tiveram? Afinal é o nosso dinheiro!

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Lá se foi Mercedes...

Há alguns dias morreu Mercedes Sosa, musa de uma geração que sonhou com um mundo melhor. Mas este sonho já faz muito tempo! Longínquo tempo! Não direi, como Cazuza, que nossos heróis morreram de overdose. Nossos heróis morreram de velhice, de inanição, provocada pela nossa descrença. Morreram de morte lenta, nos nossos corações e mentes, levados pela nossa dolorosa queda no mundo real. Levamos um susto ao confrontar heróis que se transformavam em vilões. Ídolos que, de repente, caiam como aquela estátua de Lênin, na Praça Vermelha. Mas no meu coração, no entanto, guardo a voz forte, a figura linda de índia poderosa daquela mulher que cantava as coisas que gostaria de poder cantar. Puro encantamento, durante horas, enquanto a ouvia com amigos.
Naquele tempo, quando acreditávamos nestes sonhos, Fidel, com sua incontestável sedução, nos parecia uma figura messiânica, a imagem do Cristo-Chê nos embalava e nos dizia que ele, afinal, morrera por uma causa nobre, e as imagens que nos chegavam de Lênin, meio borradas, discursando com gestos dramáticos para uma classe operária que se libertava da secular opressão, nos empolgava. Éramos jovens, e o que seria da juventude se não sonhasse? No Brasil, surgia o movimento dos sem-terra, escravos da gleba, reivindicando o que lhes fora furtado, um pedaço de chão, onde pudessem fazer mais do que deixar apodrecer a carcaça maltratada, como diz o poema de João Cabral. Vivíamos sob uma ditadura, nojenta, como hoje sei que são todas as ditaduras. Mas nós víamos o mundo de forma maniqueísta, dividido em direita e esquerda, em oprimidos e opressores. E tínhamos uma esperança, a de que aquela ditadura, como, aliás, acontece com todas, um dia apodrecesse.
Naquele tempo, Lula e sua turma de metalúrgicos não era conhecida, poucos sabiam de sua existência. Nem se sonhava com um partido de trabalhadores. Mas quando ele surgiu, consideramos um grande avanço. E poderia ter sido! Acreditamos na sua singela honestidade, como acreditamos no movimento dos sem-terra, na Teologia da Libertação, nas pastorais. E pouco a pouco, como a ditadura, tudo aquilo foi apodrecendo. Lula, cuja eleição aplaudimos, mesmo que muitos de nós não acreditasse mais nos velhos sonhos, mas acreditando na sua sinceridade, mostrou-se um populista barato, capaz de qualquer coisa para manter o poder para seu grupo. O movimento dos sem-terra transformou-se em um movimento marginal, para o qual não existem limites, que age à margem da lei, acobertado pelo governo, que, por baixo dos panos, passa milhões aos seus chefes. E onde foi parar a Teologia da Libertação? O que vemos são Betos e Boffs, para a maioria de nós, totalmente desacreditados. E Pastorais, como a indigenista, estimulando os índios à rebeldia sem nenhuma responsabilidade quanto a seu futuro? Todos estes cooperaram para que gente como Ronaldo Caiado e Kátia Abreu, merecessem o nosso apoio, ou melhor, o apoio de gente que, como eu, já não vê o mundo em preto e branco. Gente que já passada nos anos, abandonou os sixties, e se considera já velha para ilusões perdidas.
Gostaria de poder dizer que meus heróis não morreram, que sempre viverão nos meus sonhos. Mas dos meus sonhos, daqueles de outrora, surgiu gente como Chávez, Corrêa, Morales, os Kirchner, ou aquele da Coréia do Norte, cujo nome não interessa. Quando vejo cenas como a da destruição das plantações de laranjas, sem que tenha havido qualquer punição, quando ouço Boff dizer, respondendo a um jornalista, que o fim do comunismo significou o fim das esperanças para os “excluídos”, quando vejo gente como o assassino Battisti ser defendido pelo Ministro da JUSTIÇA (!), sinto que aquilo com que toda uma geração sonhou apodreceu. Quando vejo tudo que se passa à minha frente, sinto medo do que poderá vir. E se isso significa ser da direita, confesso que me converti, mudei de lado.
Mas daquele lado, lá de longe, do meu passado, restou a voz forte e quente de Mercedes Sosa, inesquecível musa, em quem sentíamos o calor de um coração sincero.
Saudades da inocência, dos sonhos antigos, da juventude. Saudades de Mercedes.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

A vida...”Sei lá!”

Gostaria de ter a inspiração de Vinícius de Morais para poder falar de forma tão linda de nossa fragilidade, de nossa finitude, enfim da vida. Vida que ganhamos e perdemos, perdidos na solidão de nossa individualidade.
Realmente, amigo poeta, “a gente mal nasce e começa a morrer”. Mas há tanto a fazer entre este começo e o fim que desponta desde então! Há perdas, dolorosas, mas também há ganhos. E é preciso saber que “depois da chegada vem sempre a partida, porque não há nada sem separação” Perdi Felipe e Alice, mas ganhei Bertrand e Luíza. Lindos, já despontando para o que desejam no futuro: ela estilista de moda, ele... ainda em dúvida. E quando Sérgio se foi, no espaço de poucas horas, alguns dias depois de eu haver chegado de uma deliciosa viagem! Achei que a vida havia me passado uma rasteira! É verdade, amigo poeta, que “a gente nem sabe que males se apronta, fazendo de conta, fingindo esquecer.” Teresa e eu perplexas diante desta tão súbita separação. Mas então ganhamos Felipe, um outro, de olhos enormes, expressão doce, amoroso. Perdemos Sérgio, e ganhamos Felipe. É a vida, que nos ensina que “nada renasce antes que se acabe e o sol que desponta tem que anoitecer”.
E assim ficamos nós duas, Teresa e eu, unidas mais do que nunca. E a gente, como todo mundo, fingia esquecer que ainda viriam outras separações. E então, num dia ensolarado de maio, dizemos adeus a Zé Carlos. Teresa, viúva, os filhos, eu, amigos. Diz o poeta que a vida é uma grande ilusão. Na juventude nos iludimos com uma eterna juventude, na maturidade escondemos de nós mesmos nossa finitude, tão presente por todas as perdas que já sofremos. E não adianta querer brigar, “a vida tem sempre razão.” Mas foi depois de todas estas separações que ganhamos João, com carinha de gaiato, agora já despontando para paixões: “Mãe, acho que estou apaixonado!” João que quando abraça, com todo amor que guarda no peito, quase nos derruba.
E foi então que a vida nos levou Teresa. Digo a vida porque vida e morte se complementam, mas a gente sempre finge esquecer. Dor em todos nós, dor tão grande que quase não cabia no peito, que parecia querer explodir. E quem disse que esta dor não dói fisicamente? Mas a vida tem sempre razão: não pode haver chegada sem a partida. Mas foi então, quando começávamos a nos consolar, que Deus nos deu Miguel. Um ano e dez meses, capaz de cantar todo “Parabéns prá você”, e que conta que vovó Teresa foi para o céu e virou uma estrelinha. E indaga, e conta histórias. Lindo!
Viemos Sérgio, Teresa e eu, como ganhos depois de perdas. E também vieram Bruno, Ludmila, Bertrand e Alice. Um dia, nós também seremos perdas, e haverá outros ganhos. Mas, acima de tudo, para viver esta experiência extraordinária que Deus nos dá é preciso amá-la, experimentar a paixão de estar vivo.
Eu tive tantas perdas e tantos ganhos! Já há muito tempo aprendi isto que diz o poeta. E acho que a vida, apesar de tudo, tem sido generosa comigo. Além de todos estes ganhos, tenho um só meu, Ricardo, que me acompanha e compartilha comigo esta paixão da vida.
Há exatamente quatro anos, às seis horas da manhã, recebi a notícia de que Teresa havia falecido. E até hoje, há momentos que tenho o impulso de telefonar-lhe, chamá-la para juntas tomarmos um cafezinho, fazer confidências.
E sei que será assim até o fim. Mas, afinal, não há amor sem separação.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O Império do efêmero ou A Geração sem idade

Ambos os títulos, copiei-os: o primeiro de um fantástico livro de Gilles Lipovetsky, o outro da reportagem de capa da revista “Veja” de algumas semanas atrás. Gilles Lipovetsky é daquela turma dos “nouveaux philosophes”, como Bernard Lévy, que despontaram nos anos sessenta e teorizaram sobre os grandes movimentos de renovação dos sixties. Como o próprio Lévy, e alguns outros, Lipovetsky, cansou-se da carrancuda dialética marxista e trocou Marx por Tocqueville, tornando-se um liberal. Tem livros que derrubam mitos há muitos estabelecidos, como “La troisième femme” ou “Le crépuscule du devoir”.
Em “L´Empire de l´éphémère – La mode et son destin dans les sociétés modernes”, ele fala da evolução da moda na história e sua importância na sociedade moderna. Fala do “prêt-à-porter”, e da democratização da estética. Gilles Lipovetsky fala daquilo que não fica bem intelectuais falarem. Não tem medo. Põe em dúvida o que se estabeleceu como único motivo de reflexão, nossas eternas cogitações, que como diz certa propaganda da televisão, produz perguntas e não respostas. Quer falar do efêmero, ou seja, da própria vida, com sua celeridade, que torna tudo passageiro, nossa juventude, nossa beleza, nossa saúde. Afinal, senhores intelectuais, o quê não é efêmero? No efêmero da moda, e da beleza em geral, se oculta um universo que podemos desvendar e assim compreender melhor nossa trajetória no mundo. E diz ele logo no início da apresentação: “A questão da moda não faz furor no mundo intelectual. O fenômeno precisa ser sublinhado: no momento mesmo em que a moda não cessa de acelerar sua legislação fugidia, de invadir novas esferas, de arrebatar em sua órbita todas as camadas sociais, todos os grupos de idade, deixa impassíveis aqueles que têm vocação para elucidar as forças e o funcionamento das sociedades modernas.”
O que me levou a retomar o livro, já lido há algum tempo, é justamente a sua pertinência neste início de século, em que a moda, onde se insere a beleza, ou vice-versa, ocupa, sem medo ou falso pudor, seu lugar em nossa sociedade. Queremos todos a beleza, a elegância, o máximo prolongamento da juventude. Nós todos, homens, mulheres, jovens, maduros, velhos. Vejo na academia de ginástica, que freqüento diariamente, a democrática convivência de homens e mulheres de todas as faixas etárias, todos ajustados em suas malhas, sem distinção de indumentária, sem complexos. Mulheres maduras, e muito maduras, como eu, usam as mesmas peças que as jovens. Cuidamos de nossos corpos como um valioso patrimônio, afinal o único que temos de fato. Vejo num canal de TV por assinatura uma pletora de programas dedicados à beleza, à moda, à juventude: “10 anos mais jovem”, “Esquadrão da moda”, “Timm Gun”, “Mude meu look”, “Glamour e.... (?)” são tantos que já me perdi. Uma dessas tardes, resolvi passar todos em revista, e durante horas estive embevecida com a moda, a beleza, a juventude. E saibam que havia acabado de ler “Le ventre de Paris” de Zola. Ou seja, não fiquei burra por curtir aquele desfile do que chamam de supérfluo, efêmero. Ou fútil. Imagino um mundo sem isso e acho que deve ser prá lá de entediante. E o sucesso é tamanho que já há similar em canal aberto, aqui no Brasil. E sem esquecer que neste momento, em São Paulo, tem lugar o maior salão especializado em produtos de beleza da América do Sul.
Pertencemos, Ricardo e eu, àquela geração que, como Lipovetsky, sonhou com um mundo socialista, o único, críamos nós, capaz de gerar justiça social. Hoje, passados tantos anos, nada temos a lamentar, vivemos intensamente o nosso momento, acreditamos nele do fundo de nossos jovens corações. Hoje, já no crepúsculo, ainda cremos firmemente na justiça social, e esperamos por ela, mas também sabemos que já migraram para a História os sixties, Woodstock, a imagem do Cristo-Chê. Nossa geração é aquela que aparece na reportagem da “Veja”, a que vive intensamente a vida, sem culpa, porque sabe o quanto ela é efêmera. Vejo uma foto de minha mãe, mais jovem do que sou hoje, e me causa lástima. Pobres mulheres, como minha Alice, voltadas exclusivamente para o lar e os filhos, gordas, tímidas, eternamente submetidas a um macho comandante. Vejo minha mãe aos quarenta e oito anos, parece minha avó, hoje. Gostaria de poder inscrevê-la num “10 anos mais jovem”, vê-la rejuvenescida, exuberante. Linda e sensual como foi na juventude.
Confesso que já utilizei e continuarei utilizando todos os recursos que a moderna ciência e tecnologia colocam à disposição de mulheres vaidosas. Que sempre sentirei imenso prazer em discorrer sobre o efêmero, ou seja, sobre a própria vida, mas que jamais renunciarei às minhas leituras, minhas indagações, e meu amor a toda criação de Deus. Como me ensinou minha mãe.
E afinal, confesso que adoro esta minha futilidade e não poderia viver sem ela.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

A sonoterapia de DETRAN e outras brasilidades

Hoje quero falar de algumas coisas que tenho visto neste país, que dizem ser abençoado por Deus.
Primeiro discorro sobre a renovação de minha carteira de motorista. Antiga. Nem ouso dizer quando tirei a primeira. Digamos que eu era muito, muito jovem. Quase uma criança. E agora, para renovar, sou obrigada a fazer um tal curso de direção defensiva e ainda de alguma outra coisa. Quinze horas! Lamento não haver nascido trinta anos mais tarde! Mas o quê fazer? Percorro as auto-escolas e, afinal, encontro uma que dá um curso intensivo. Quinze horas em dois dias! Ricardo, que também é daquela geração que aplaudiu Woodstock, resolve me acompanhar, ainda que sua renovação seja em setembro. Solidariedade inestimável. Já na véspera, à noite, nossa cadelinha, Tila, foi devidamente exportada para a casa de uma amiguinha, E assim partimos às sete e meia da manhã de uma sexta-feira para uma dupla jornada, que teria seqüência no sábado.
Quando saímos, eu estava agitadíssima, já imaginando o que seriam aquelas horas de fantástica excitação naquele encontro de velhos condutores! E lá estavam nossos colegas, coroas como nós, alguns mais velhos, outros mais jovens, mas todos maiores de quarenta e cinco. Havia policiais, médicos, caminhoneiros, donas-de-casa, comerciantes. Já de cara fomos informados pelo proprietário que o curso não servia para nada, que era uma invenção de burocratas em Brasília, que não precisávamos anotar nada e que estávamos de antemão aprovados, já que não haveria prova. Apresentou-nos o “professor”, seu filho, que nos olhava com cara de sono. E a “aula” começou. A cada hora tínhamos que provar presença com a impressão digital- claro, senão pulávamos todos fora. Marcávamos entrada – saída- entrada- saída. Um milhão de vezes. Mas, afinal aquilo servia para nos acordar e também o “professor”. Entre uma soneca e outra, eu abria os olhos e o via de costas, olhando o quadro e também dormindo. Depois, tomava um golinho de água, nos olhava sonolentamente: “Bem, quando houver atropelamento,...” Acordamos quando falou em respiração boca-a-boca. Então é preciso esperar passar a gripe suína!Tomara que eu não atropele ninguém! Contei que já havia sido atropelada duas vezes, sendo que uma para salvar minha cadelinha. Proporcionei um descanso no cochilo geral. Todos riram. Afinal contribui em alguma coisa. E também havia o lanchinho de manhã e à tarde, que esperávamos avidamente.
Mas o pior foi depois do almoço. Sono incontrolável. Houve gente que despencou por cima do vizinho. Ricardo tinha medo de roncar e quis incumbir-me de vigiá-lo. Recusei, já que eu também estaria ferrada no sono. Tentei ler, mas foi pior, o livro despencava, desmarcava a página, e eu tinha que me abaixar para apanhá-lo, o que, naquelas alturas, constituía perigo, já que, com reflexos adormecidos, sempre batia com a cabeça nas costas da cadeira à minha frente e assustava o colega, que, é claro, também dormia. Resolvi colocar óculos escuros e pensei que sentada na última fila, com a cabeça encostada na parede, poderia dormir mais tranqüila. Mas não adiantou por que a cabeça despencava. Por vezes, um silêncio profundo se estabelecia. Dormíamos todos. E assim continuamos até as seis horas da tarde. Creio que todos, como Ricardo e eu, chegaram em casa aos pedaços. Comemos alguma coisa e fomos dormir... de novo. Para recomeçar no dia seguinte, que o professor nos disse que seria muito mais interessante!!!! Será que foi?
Nosso consolo foi na noite de sábado ter ido jantar no nosso restaurante japonês preferido, e sentir-se exatamente como um passarinho que reconquistou a liberdade.
E por falar em liberdade, li há poucos dias que em 1966, uma escolinha primária de Curitiba foi fechada, acusada pelos agentes da ditadura de propagar idéias marxistas para as criancinhas. As professoras foram condenadas, duas conseguiram escapar e uma cumpriu pena de mais de um ano. As ditaduras são realmente burras, ridículas e aterrorizantes. Sejam de direita ou de esquerda. Tenho certeza de que coisas assim acontecem em Cuba, Coréia do Norte, Miamar, etc. E por falar em ditaduras, estamos assistindo a implantação de várias, aqui, vizinhas. E com o aplauso discreto, mas não tanto, do governo Lula. Afinal, será que ninguém se habilita a dar cabo do Chávez? Francamente, jamais pensei em aplaudir um golpe, mas aplaudo, sem medo de NÃO ser politicamente correta, o que houve em Honduras. Afinal, por que apoiar em novo Chávez?
E o bate-boca asqueroso no Senado, até com a ressurreição nacional de Collor? E o Renan, o Sarney e toda esta imundice? E o bate-boca de comadres da Dilma e da outra senhora que não me lembro como se chama: Disse /Não disse/Disse/ Não disse... Aliás, tendo em vista as mentiras já pregadas por dona Dilma em relação ao seu currículo acadêmico, acredito piamente na outra. Enfim, juntando tudo, desde a ditadura até hoje, que, afinal, é o Brasil que eu presenciei – incluindo o meu surrealista curso de direção – tenho o direito, e até a obrigação de perguntar: será que este país tem jeito?
Alô, lulistas renitentes. Eu também já acreditei no homem, votei nele muitas vezes, até levei uma paulada na cara de uma colorida, mas tenho a coragem de dizer que errei. Vocês não acham que ele chegou ao fundo do fosso, beijando as mãos de Jáder Barbalho, abraçando Collor, aliando-se a Renan, e defendendo Sarney como um brasileiro superior aos demais? Será que algum deles, incluindo o chefe, se compadece daquelas crianças que catam lixo em Maceió, sendo que uma morreu atropelada por uma máquina, quando dormia exausta sobre um monte de imundices? E também pelas outras que se espalham pelo Brasil afora? Será que não mereciam melhor sorte, ainda que não sejam, como Sarney, brasileiros de melhor estirpe?
E para terminar com chave de ouro esta nossa pequena amostra de brasilidade, não podemos deixar de lado aquela frase inesquecível, expelida por Renan num desses dias memoráveis do Senado. Dizia o indigitado referindo à oposição: “Minoria com complexo de maioria.” Repetiu-a várias vezes, encantado com própria genialidade. Frase de uma profundeza com condiz com o momento e com seu autor. Estou até agora embasbacada. Repito para mim mesma a toda instante, para jamais esquecê-la “Minoria com complexo de maioria.” Viva o Renan!

domingo, 26 de julho de 2009

Souvenir d´enfance

É uma história real. Assisti-a desde seu primeiro ato, há muitos e muitos anos. Eu era ainda criança.
Era uma família, bem situada, formada por pai, mãe, uma filha e um filho caçula.
A mocinha que passava defronte à vila, onde eu morava me chamava a atenção. Não sei se a achava bonita, mas me chamava atenção por ser bem maior do que as demais. Era ali, na entrada da vila, habitada quase exclusivamente por militares, que eu espreitava a saída do colégio e esperava meus irmãos. Parava qualquer brincadeira e corria para lá. E ela vinha quase todos os dias, grande, destacando-se das outras. Um dia, parou de passar, e então eu soube que havia morrido. E a consternação foi geral. Todos falavam de sua alegria, de sua personalidade, da liderança que exercia sobre os colegas. Apesar dos meus poucos cinco anos, também fiquei consternada. Ouvi dizer que havia morrido de uma infecção intestinal provocada por camarão arruinado. Estava voltando de uma viagem. Que pena! Se houvesse evitado aquela empadinha! Se houvesse comido em outro lugar! Se não houvesse viajado! Mas eu não sabia, naquele tempo, que assim é a vida, no seu vôo cego.
A moça sumiu, mas deixou uma representação meio mágica, meio misteriosa, na imaginação de todos, o que sempre acontece quando uma vida é ceifada em plena juventude. Tinha dezesseis ou dezessete anos. Um dia, alguém me mostrou sua casa, num bairro nobre da cidade. Linda, estilo hollywoodiano. Ocupava uma esquina, branca, com sacadas, grades bem trabalhadas, tendo à sua volta um jardim cercado por um muro baixo. Ali ela vivera, e morrera. Imaginei a casa impregnada pela sua figura, como uma assombração. Diziam que a mãe, inconsolável, resolvera conservar intacto o quarto da filha. As janelas, sempre fechadas, davam a nítida impressão de vazio, um vazio que certamente existia depois da partida da garota. Somente o jardim florido fazia lembrar que alguém vivia ali. Sempre senti imensa curiosidade em entrar naquela casa, conhecê-la.
Os anos passaram, e minha fascinação e curiosidade decresceram. Afinal, eram já tantos! Quando era adolescente fiquei sabendo que seu irmão participara da depredação de um cemitério em uma cidadezinha vizinha. Que horror! Como eram todos filhinhos-de-papai, é claro, nada aconteceu. Naquela época dizia-se que o sujeito não trabalhava, não estudara nada e vivia como um playboy, desfilando em carrões, sua grande paixão. Era isto que se dizia. Nunca o vi. Mas vi seu pai, num dia chuvoso. Eu deveria ter uns dezessete anos quando minha mãe mostrou-me um senhor alto, careca, meio curvado. Havia nele muita distinção. Olhei-o e imaginei quanta dor deveria ter sofrido com a morte da filha. Alguns anos depois, disseram-me que havia morrido. Nem sei por quê. Na verdade, a história toda ficara no passado.
Passei fora algum tempo, e quando revi o casarão tive a nítida impressão de um lindo mausoléu. Lindo, lúgubre, rodeado de flores, a única expressão de vida. Mas quando elas murcharam, foi para anunciar a morte da mãe. Não creio que houvessem murchado de tristeza, afinal, parece que alegria já havia desaparecido dali há muitos anos, desde aquele dia longínquo em que a mocinha loira e alta se foi. Para sempre. E a grande nave branca continuou ancorada na esquina, habitada pelo filho, agora um homem já envelhecido pelos anos e pela vida. Mas ela continuou lá, talvez habitada por fantasmas, esperando pelo seu destino.
O garoto que se tornara filho único, bafejado pela sorte de menino rico, que jamais precisara trabalhar, que na juventude desfilara de óculos escuros, nos mais belos carros, de capota abaixada, estava reduzido à pobreza. Não sei o que aconteceu exatamente, mas estava reduzido à mais negra pobreza. Sem água, tomava banho na casa de um vizinho bondoso. Sem luz, iluminava-se com velas. E aquela casa que havia sido o lar de uma família bem-sucedida, onde vivia uma garota que se destacava pela sua alegria e personalidade, que seguramente iluminava também seu grupo familiar, havia se transformado numa velha e decrépita mansão mal-assombrada. Não sei quantos anos durou esta vida de miséria, mas um dia, não faz muito tempo, o velho playboy também se foi. Numa enfermaria geral.
Coberta de dívidas e infiltrações, a casa foi vendida pelos herdeiros, primos e primas. Será demolida dentro de algum tempo. No seu lugar vai surgir um daqueles espigões de gosto duvidoso, metido a elegante. E aí, quase ninguém mais vai se lembrar daquela moça, de sua morte prematura e do trágico desfecho deste drama, cujo primeiro ato assisti de longe, naqueles meus longínquos cinco anos.
Há algum tempo, encontrei, entre os guardados de Teresa, minha irmã, uma velha foto da equipe de vôlei do colégio. Lá está ela, reconheci-a por ser a mais alta. Sorridente, jovem, vitoriosa. Um ano antes de sua morte. Este é o vôo cego da vida, que mais nos ensina do que faz doer. Porque nos mostra a nossa fragilidade e o quanto não valorizamos este fiozinho que se rompe tão facilmente.
- Moça, prazer em conhecê-la finalmente. Sinto uma intima felicidade em ver seu rosto sorridente. Afinal, valeu a pena, não é?

terça-feira, 30 de junho de 2009

O vôo cego da vida.

Estávamos, Ricardo e eu, festejando nossos vinte anos de vida juntos. O lugar escolhido foi Gramado, onde já vivemos dias inesquecíveis. Fazia muito frio lá fora. Mas dentro do hotel havia um calorzinho delicioso. Lá pelas cinco da tarde, havíamos sido convidados para um happy-hour no saguão. Perto da enorme lareira haviam preparado alguns tira-gostos, havia batidas variadas, sucos e o inevitável chimarrão. Sentamo-nos defronte à lareira, e um casal se ofereceu para tirar uma foto nossa. Inesquecível! Por ali ficamos bastante tempo, conversando, observando as pessoas, e depois lendo os romances que havíamos levado. Era sábado, 30 de maio. Resolvemos não sair naquela noite, já que teríamos que tomar condução para Porto Alegre no dia seguinte cedo. Mais tarde tomamos uma canja no restaurante do hotel, e acompanhamos de vinho. Estávamos felizes, afinal, após tantos anos, ainda havia, e há, tanto a comemorar.
30 de maio, sábado. Naquele mesmo momento, outras pessoas também tinham muito a comemorar. Lembro-me de um casal que dava sua festa de casamento para cerca de quinhentas pessoas, um médico conhecido cirurgião plástico em Porto Alegre, que devia estar terminando de organizar sua bagagem para uma viagem de quinze dias com a mulher e a filha. Iam a Paris e depois seguiam para Grécia, um roteiro com que Ricardo e eu sonhamos há muito tempo. Havia um oceanógrafo que cursava doutorado na França. E um casal de advogados, um mecânico especializado em plataformas marinhas, que conseguira um emprego numa das maiores companhias de petróleo do mundo, uma funcionária pública, do interior de Santa Catarina, que, afinal, realizava seu grande sonho de conhecer a Europa e depois fazer um curso na Itália. E havia uma cantora que iniciava seu sucesso na Alemanha, um maestro, e até um príncipe. Havia crianças, gente de várias partes do mundo, turistas, homens de negócios. Naquele momento em que tomávamos nossa canja, e degustávamos nosso vinho, toda aquela gente se preparava para partir no dia seguinte, felizes. Como nós. Pouco mais de vinte e quatro horas depois, estavam todos no fundo do mar. A maior parte para sempre, sepultados em profundezas insondáveis.
Em julho de 2007, em Porto Alegre, no restaurante do hotel, incomodava-me a barulheira que fazia um grupo de funcionários de uma empresa baiana. Estavam ali para um evento programado pela empresa e tinham sempre um crachá que os identificava. Lembro-me que, apesar do barulho que faziam na hora do almoço, eram extremamente atenciosos e sempre seguravam o elevador para nós. Corríamos, agradecíamos, mas nunca conversamos com nenhum deles. Voltamos, e poucos dias depois vi pela televisão uma notícia extraordinária que falava de um incêndio no aeroporto de Guarulhos, provocado pelo choque de um avião com um prédio da TAM. Não se sabia de onde vinha, nem se havia passageiros. Logo depois, ficamos sabendo que partira de Porto Alegre e que transportava mais de cem pessoas. Alguns dias mais tarde, vendo a lista de passageiros, ficamos sabendo que várias vítimas eram funcionários daquela empresa baiana. Aquela que organizara o evento no hotel onde estávamos hospedados. Senti um aperto no coração ao imaginar que muitas daquelas pessoas com quem cruzei no hotel, aquelas que faziam o tumulto na hora do almoço, que seguravam a porta do elevador para nós, haviam sucumbido.
Há poucos dias, segui minha rotina diária. À noitinha, liguei a televisão e ouvi alguma coisa que se relacionava com Michael Jackson. Prestei atenção: ele havia morrido. Ainda de manhã, enquanto seguia minha rotina matinal, ele estava vivo! Não sei se saudável ou não, não se feliz ou não. Mas vivo! E tantos outros se foram naquele meio tempo! E tantos surgiram naquele meio tempo! E tantos pretendem viver eternamente, apegados às mais efêmeras coisinhas do dia-a-dia. E tantos passam cada dia da vida tentando ter ou ser mais. E tantos esperam coisas especiais, extraordinárias, para encontrar um pouco de felicidade, ou simplesmente de alegria! E tantos morrem assim, como os passageiros do vôo 447, como os da TAM, como Michael Jackson. Num estalar de dedos.
Em abril ou maio do ano passado, convidamos para jantar um casal amigo. Ele havia perdido a mãe em novembro do ano anterior. Um enfarto violento levou-o poucos meses depois daquele jantar em que nos divertimos ouvindo suas histórias. No seu velório, abraçamos seu irmão mais velho, que, atônito, comentava que em menos de um ano perdera mãe e irmão. Nove meses depois, abracei seu irmão caçula, que me dizia: “A família se foi. Agora só fiquei eu”. Senti profundamente sua dor, o mesmo aconteceu comigo. “Então estamos quites. Mas com você foi mais rápido.”
Refletir sobre tudo isto me convence cada dia mais daquele princípio básico, que, aliás, era bordão da Visa: “Viva, porque a vida é agora”. Tomar consciência da fragilidade de nossa existência, este fiozinho que pode romper-se a qualquer momento, não me trás amargura. Pelo contrário, me ensina todo dia a valorizar mais e mais cada momento, na sua cândida simplicidade. Depois de tudo que os anos me ensinaram, e têm me ensinado, só me resta dizer que, apesar de tudo, sou hoje mais feliz por saber beber com simplicidade cada gota de prazer que a vida me oferece.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

BRASILIDADE

Eu jamais poderia imaginar que a leitura de um livro fizesse encontrar-me comigo mesma de forma tão cabal. E não só comigo mesma; com familiares, amigos, conhecidos e desconhecidos. “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda é um retrato magnífico do que somos e porque somos assim.
Tudo começou ainda em Portugal, onde não tendo se implantado profundamente as raízes do sistema feudal, como na França, país onde se constituiu uma rígida estratificação social, ficou a sociedade portuguesa à mercê de um individualismo nobiliário sobranceiro, o mesmo tendo acontecido na Espanha. As rígidas “ordens” – nobreza, clero, e povo (ou “terceiro estado” como se fez conhecido mais tarde), a que pertencia cada indivíduo, e que regeram as sociedades fortemente plantadas no feudalismo, foram substituídas na Península Ibérica por um “salve-se quem puder para o seu próprio sucesso”. Esta é, segundo ele, a grande razão porque os princípios da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade, Fraternidade – não repercutiram tão fortemente em Portugal, onde a mobilidade social já era um fato antigo. A conseqüência é que o fidalgo mistura-se ao povo, o que parece ser altamente democrático, mas sua conduta individualista cria uma sociedade insolidária e de estrutura frouxa. Neste quadro, onde todos são barões, não são criadas as condições necessárias para o sadio convívio na sociedade, que consiste em moralidade e amor ao trabalho.
O aventureiro que vem povoar e colonizar não pensa em formar uma comunidade, ele procura seu próprio benefício. A mentalidade ibérica, transplantada para um meio adverso, resultou em total falta de hierarquia e disciplina, cuja conseqüência é a falta de coesão social, repulsa à moral baseada no culto ao trabalho, sobretudo manual. “O trabalho manual e mecânico visa a um fim exterior ao homem e pretende conseguir a perfeição de uma obra distinta dele.” E numa sociedade onde o tecido social não é forte, o individualismo e o desejo do ganho fácil não podem se satisfazer com algo que lhes seja exterior. E em qualquer ofício, se aposta sempre no talento e não no trabalho duro. É assim que vemos espelhados nossos homens públicos, desde o Presidente, até o vereador de uma pequena cidade. O afã do lucro fácil, aliado à confusão entre o público e o privado, produz um tipo de comportamento em que tudo é permitido.
Lendo cada página deparei-me com velhos amigos, vivos e mortos. Gente com que convivo diariamente, e, confesso, comigo mesma. Somos um povo que, devido à mentalidade que vem próprio lar, iniciamos nossa vida “profissional” incapacitados para a luta pela conquista através de nosso esforço pessoal. Nossas profissões, em geral, são escolhidas dentro do próprio âmbito familiar, e muito raramente somos estimulados a discordar. E diz o autor, citando psicólogos e pedagogos modernos que a criança deve ser estimulada a “desobedecer nos pontos que sejam falíveis as previsões dos pais.” E ainda que as “boas mães causam maiores estragos do que as más, na acepção mais generalizada e popular destes vocábulos.” Filhos, em geral, concordam porque é mais cômodo, lhe garante melhores “possibilidades de sucesso”, daí o empenho geral pelo emprego público. E hoje, acréscimo meu, há até uma nova categoria, a do “concursista”, infelizmente com grande percentual de gente capaz de vencer por conta própria, de competir no mercado de trabalho, de sair vitorioso. Enfim, de mudar a face do país, de contribuir para o desenvolvimento da sociedade. Infelizmente, o que lhes interessa é um emprego público, onde seguirão a burocracia tacanha, mas que consideram seguro. A este tipo de gente, descrita minuciosamente, que constitui a quase totalidade da população, ele chama de “homem cordial”. E este homem singular é afetuoso e esbanja formas de mostrar sua “amizade”. Ele nunca trata ninguém pelo nome de família, o que é usual em outros países, e usa freqüentemente o sufixo “-inho”, aposto ao prenome: Geraldinho, Betinho, Lélinho, Ricardinho, Paulinho, etc. A propósito lembro-me da representante de uma editora, que havia feito assinaturas sem minha autorização. Quando recebi revistas que não queria e uma conta absurda, telefonei-lhe, furiosa, ameaçando-a até de um processo. E tive a seguinte resposta: ”Calma, dona Lúcia, afinal nós somos amigas.” Mais furiosa ainda retruquei que nem a conhecia, nunca a vira, e que não era sua amiga. E olhem que ela se ofendeu!
E fala o autor, dentre tantas outras coisas do “desleixo”, palavra que, como “saudade”, só existe no idioma português. Compara com as nossas cidades aquelas de colonização castelhana, com caprichados projetos urbanísticos, onde obstáculos da natureza são transpostos, a fim de obter regularidade e simetria,. As nossas se caracterizam pelo desleixo no traçado, e em todos os detalhes. Saio à rua, e já no elevador encontro um “homem cordial”, aquele que sorri e bate com a porta na minha cara, tropeço na calçada e dou de cara – literalmente – com o “desleixo”, encontro um amigo, ou amiga, e tenho certeza de que há algum “concursista” na família. E haveria tanta coisa ainda para contar!
Durante a leitura, às vezes no café perto de casa, às vezes durante as minhas sessões de bicicleta ergométrica na academia, tive que fazer esforço para não dizer: “Bom dia, Fulano.” “Como vai, Beltrano?” “Vejam só o sicrano!” E fechando o livro, cada dia, ficava-me sempre uma pergunta: “Será que dá pra consertar?”
E dizem que o Homem vem aí com o terceiro mandato. Mas afinal, o país é dele e dos aliados que comprou, com o nosso dinheiro. Nosso? Será? Porque afinal não consideramos, TODOS, o público como privado? E o Estado como uma extensão da família? E família brasileira!

sábado, 18 de abril de 2009

L´Ancien Régime et la Révolution

O primeiro livro que li sobre Maria Antonieta foi aos meus onze anos. Trata-se de uma biografia escrita por um membro da Academia Francesa de Letras , mas que hoje me parece bastante romântica. Guardo- o, com a dedicatória de minha mãe, apesar do presente haver sido de meu pai. Naquele tempo, eu era uma menina brasileira, que havia sido confrontada a uma cultura diferente, e estimulada por meu pai a aproveitar ao máximo a oportunidade extraordinária que me oferecia a vida, através de seu esforço e da bolsa de estudos que ganhara como primeiro aluno em todos os cursos que freqüentara nas diferentes instituições militares por que passara. Lembro-me do meu deslumbramento na primeira vez que fui a Versalhes. E também do horror com que penetrei na cela minúscula, em que a rainha passara os últimos dias, na prisão da Conciergerie, à beira do Sena.
Naquele tempo, toda minha admiração era pela pobre rainha, que morrera humilhada, afastada de sua família, isolada naquela cela lúgubre. E, finalmente, guilhotinada. E li muita coisa sobre o Antigo Regime, a Revolução, Luís XVI, seu marido, igualmente guilhotinado. Tornei-me uma aficionada. Mas toda minha simpatia era dirigida à pobre mulher. E li, lá pelos meus dezesseis anos, sua biografia escrita por Stephan Zweig, Anos mais tarde, no auge de minha juventude, infiltrada pelos ideais esquerdistas, mudei radicalmente meu ponto de vista. Aliás, Maria Antonieta sumiu do horizonte, substituída pelos ideais da Revolução, da justiça social, da igualdade. Isto sim valia a pena. Como, então, importar-me com uma mulher que, afinal, representava o que havia de mais retrogrado e reacionário? Foi por essa época que li o historiador Albert Soboul, e sua análise marxista. No bicentenário da Revolução, eu estava na França, com uma bolsa de estudos, e fui a Paris, onde descera a humanidade, assistir ao grande desfile do 14 de julho, que, em 1789, marcou o fim da monarquia. Comprei livros, procurei documentos, conheci novos personagens, de quem pouco se fala. Continuei na minha posição revolucionária, fiel aos ideais da grande maioria de minha geração.
E os tempos passaram, anos, muitos. E o mundo mudou desde aquele 1989. E eu mudei. E continuo lendo sobre aquele período. Hoje, em plena maturidade, livre dos preconceitos que marcaram minha geração, posso juntar todo material acumulado na minha memória e repetir Tocqueville, o grande liberal, na sua magistral análise da Revolução Francesa: “Os Franceses fizeram em 1789 esforço maior do que já fizera qualquer povo , afim de, pode-se dizer, cortar em dois seu destino, e separar por um abismo o que haviam sido até então e o que desejavam ser doravante.” A Revolução francesa dividiu não só a história da França, mas trouxe para o mundo inteiro ideais até então desconhecidos, ou considerados quiméricos. E de nada disso eu cogitava naqueles meus longínquos onze anos. É claro!
E Maria Antonieta, onde foi parar? Maria Antonieta, princesa austríaca, filha da grande Imperatriz Maria Teresa, extraordinária estadista, que usou cada um de seus dezesseis filhos para seus projetos políticos, casou-se, por procuração, aos quatorze anos, com o desajeitado Delfim Luís, de dezesseis, que ela jamais vira. Disse adeus definitivo à sua mãe, seus irmãos e irmãs, e até à sua língua materna. Maria Antonieta fazia parte de um grande projeto político de sua mãe e do rei Luís XV, no sentido de unir duas potências e fortalecer-se diante da Prússia. Cartas do embaixador de Maria Teresa junto à corte francesa dão conta de tudo que se passa e mostram claramente o objetivo de manipular a garota em benefício da Áustria. No que ela saiu-se pior do que se previa.
O casamento sem amor levou oito anos para se consumar, não se sabe ao certo por que razão. Permanecendo virgem e logicamente sem oferecer um herdeiro, sendo bisbilhotada por cortesãos e serviçais, a princesa, e logicamente o marido, tornaram-se motivo de chacotas, o que já de início desprestigiou o futuro rei. Finalmente, tendo consumado o casamento, Maria Antonieta deu à luz quatro filhos, dos quais dois morreram ainda na primeira infância. Insatisfeita, vivendo ao lado de um homem a quem tinha sincera amizade, mas que jamais amara, já como rainha, Maria Antonieta jogou-se nas diversões, nas futilidades, e, ao que tudo faz crer, no amor ao embaixador da Suécia, Axel Fersen.
Mas que mais impressiona nesta mulher é seu destino trágico, engolida por uma máquina destruidora de tudo aquilo em que acreditava. De derrocada em derrocada, de Versalhes as Tulherias , em Paris, dali à prisão do Templo, fortaleza medieval, escura, úmida e gelada, até a cela infestada de ratos na Conciergerie, foi surgindo a mulher feita de força e coragem. Mãe de quem se arrancou o filho caçula, ultrajada durante o julgamento, em que foi acusada de atos incestuosos com o filho – “Apelo a todas as mães da França!”- e o silêncio da multidão enfurecida, mulher soberana, mais do que jamais havia sido, exposta à horda enfurecida, no derradeiro e ultrajante trajeto que a conduziu até o cadafalso. A história trágica da rainha guilhotinada, cujo corpo transportado numa carroça, sobre a palha, com a cabeça entre as pernas, nos mostra que há, em muitos de nós, uma força que nós mesmos desconhecemos, como provavelmente ela própria, e que confrontados à nossa inerente fragilidade humana, conseguimos desencavar do fundo de nós e avançar de cabeça erguida enfrentando nossas pequenas, e grandes, tragédias pessoais.
Como há algum tempo plagiei o título de Demétrio Magnoli, agora estou plagiando Alexis de Tocqueville. Mas, afinal, acho que valeu a pena.

quarta-feira, 18 de março de 2009

DAS LAVADEIRAS ÀS LAVADORAS VATICANAS

A Igreja Católica, e sua sede vaticana, não deixam de nos surpreender. Depois da classificação do estupro como pecado muito menor do que o aborto que salvou a vida de uma criança, excomungando os médicos e a mãe, e absolvendo o estuprador, nos trás esta descoberta, que, de tão extravagante, não sei como classificar. Segundo Vossas Eminências, nós, mulheres, nos tornamos independentes graças à maquina de lavar roupas.
Desde que foi divulgada esta novidade, tenho puxado pela memória, a fim refazer os conceitos que fui elaborando ao longo dos anos. Pois, uma vez que o Papa é infalível, eu é que devo estar errada. Começo por minha mãe, a gente sempre começa pela mãe, e suas amigas. Lembro-me de Dona Mariinha. Era possuidora da primeira máquina de lavar que vi em minha vida. Eu era bem pequena quando ela fez a exibição de sua preciosidade para minha mãe. Era uma engenhoca redonda, sendo que a roupa era enxugada através de dois rolos de borracha, que se moviam fazendo girar uma manivela e comprimiam a peça molhada. Fiquei encantada. E dona Mariinha, hein? Quem diria que era uma feminista? Escarafuncho no fundo de minha memória e só encontro uma senhora, como qualquer outra daquele tempo, que, é verdade, mandava no marido. Então, concluo que sempre fiz dela uma idéia errada. Para mim, sempre foi uma típica dona-de-casa careta, mas na verdade era uma mulher liberada, a frente de seu tempo! E fico ainda mais estarrecida ao imaginar que, ao sonhar em ter uma máquina de lavar roupas, - minha mãe, logo ela!- escondesse nesse desejo, outro, inconfessável: a sua emancipação! E meu espanto aumenta ainda mais ao pensar que todas aquelas mães-de-família, que fofocavam e fingiam trocar receitas pelo telefone, e que aspiravam, TODAS, à maquina, fossem feministas!
Simone de Beauvoir, ao escrever dois longos livros pioneiros sobre a liberação feminina, perdeu tempo. Teria feito melhor se procurasse uma fábrica de eletro-domésticos e propusesse um plano de aquisição que se estendesse pelo mundo afora. Teria antecipado muita coisa, e evitado muita luta. Imagino minha mãe, com sua máquina, fazendo colocações sobre seus direitos de mulher livre, discordando abertamente de meu pai, colocando suas idéias na discussão familiar. Como faço eu. E qual seria a posição de meu pai? Será que acharia normal, como faz Ricardo? Faço um esforço de imaginação, e haja esforço, para visualizar meu pai ouvindo o discurso libertário da mulher.
E o mais importante para mim: descobri de onde saiu todo este desejo, que me acompanha desde minha juventude, o de ser independente. Surgiu naquele dia, perdido no passado, em que dona Mariinha encheu de inveja minha mãe, não porque possuísse uma máquina de lavar roupas, mas por ser uma mulher emancipada.
Não sou das que consideram a emancipação feminina fruto da pílula. É verdade que ela nos permitiu fazer, sem temor, o uso que nos aprouver de nosso corpo. Mas isto não é senão uma conseqüência de algo que vinha, desde há muito tempo, se construindo. A liberação feminina começou quando mulheres deixaram de se satisfazer com o casamento e a procriação. Houve um longo caminho que foi iniciado pela profissionalização, que dá independência financeira, e permite a nós, mulheres, não mais depender do macho provedor. Hoje, podemos dizer que temos o homem que queremos, mas não dependemos dele. Estamos a seu lado por nosso desejo. A independência econômica, segundo Marx a única efetiva, que tanto assustou homens de gerações passadas, nos permite até colocar na rua um companheiro que, por razões diversas, não mais queremos.
O conceito católico-vaticano é tão machista que nos restringe ao lar, nos coloca como eternas menores de idade, não levando em consideração, e seguramente desdenhando, qualquer uma de nossas conquistas como seres humanos, em igualdade com o sexo oposto. Considera a mulher uma eterna serviçal de seu macho, e de sua família. Mas o pior é que já vi muita gente da geração pós-guerra, aquela que, afinal, sacudiu a bandeira da igualdade, pensar como Vossas Eminências. Felizmente, o tipo mãe-de-família em tempo integral, esposa traída e resignada, mulher vivendo à sombra de seu macho vai, pouco a pouco, desaparecendo.
E viva nós, que soubemos brigar um dia, já faz muito tempo, e que, se gostamos da engenhoca de lavar é porque, afinal ela é útil. Útil para mulheres, e homens, que, saibam Vossas Excelências, também, nos dias de hoje, tratam do serviço doméstico.
E como me lembrou minha sobrinha, Alice, mais importante do que a pílula é a camisinha. Aliás, ambas condenadas pelo Vaticano.
E um lembrete final: após toda a gritaria nacional, e internacional, sobre a excomunhão, tendo havido até uma magnífica entrevista de Monsenhor di Falco, da alta cúpula da Igreja na França, publicada no jornal “Le Figaro” – L`Eglise de France opposée à l´évêque brésilien – a nossa CNBB e o Vaticano resolveram se manifestar contra. Mas já foi tarde.

quinta-feira, 12 de março de 2009

CONFESSO QUE VIVI

Quem se lembra daquela linda canção de Chico Buarque, já bem antiga, chamada “Carolina”?
Pois vale a pena a gente lembrar a letra, que diz tanta coisa!

“Carolina, nos seus olhos fundos, guarda tanta dor, a dor de todo esse mundo.
Eu já lhe expliquei que não vai dar, seu pranto não vai nada ajudar,
Eu já convidei para dançar, é hora, já sei, de aproveitar.

Lá fora, amor, uma rosa nasceu, todo mundo sambou, uma estrela caiu.
Eu bem que mostrei sorrindo, pela janela, ah que lindo,
Mas Carolina não viu...
Carolina, nos seus olhos tristes, guarda tanto amor, o amor que já não existe.
Eu bem que avisei, vai acabar, de tudo lhe dei para aceitar,
Mil versos cantei pra lhe agradar, agora não sei como explicar.

Lá fora, amor, uma rosa morreu, uma festa acabou, nosso barco partiu.
Eu bem que mostrei a ela, o tempo passou na janela e só Carolina não viu.”

Que pena que não fui eu quem escreveu “Carolina”! Chico o fez no meu lugar.
Mas como me sinto feliz em poder dizer, neste dia que marca os meus tantos anos já vividos, que eu vi, sem lástimas, o tempo passar na janela! Que vi flores se abrindo, gente feliz dançando comigo, estrelas cadentes cruzando o céu. Vi a chuva e senti a água batendo no meu rosto. Vi o sol e senti seu calor inundando meu corpo. Vi dias nascerem tristes ou radiosos.E os vivi tristes ou radiosos.
Sinto-me imensamente gratificada em poder dizer que, se a vida foi dura comigo por longos períodos, com isto aprendi a valorizar cada momento de felicidade que ela me oferecia e, o mais importante, a tentar sempre multiplica-los. Sofri grandes tragédias pessoais, que fizeram padecer cada molécula de meu corpo, mas consegui superar e voltar a ser feliz. E compreendi a fragilidade de nossa existência. Já no outono, me lembro de minha primavera, e ,com tudo que os anos me ensinaram, tenho a convicção de que hoje aprendi a ser mais feliz do que naqueles anos dourados.
Como diz Jorge Luíz Borges, na vida perdemos várias oportunidades de ser felizes. E concordo com ele que, se pudesse recomeçar, transgrediria mais, apesar de nunca haver aceitado o que queriam me impor. O que me causou sérios problemas familiares. E não me arrependo! E como nunca tentei ser perfeita, nunca criei tensões na expectativa da aprovação alheia.E pude relaxar e viver feliz, apesar de tudo!
Minha desprentensão à aprovação alheia, me permitiu expandir esta força interna que temos dentro de nós, e que raramente, por ridículos pudores, temos a coragem de expor. A coragem de tocar, abraçar, acariaciar, falar do amor. De ilusões e desilusões. De banalidades e de “coisas sérias”. Dizer besteiras, dar gargalhadas, e também , na minha fragilidade, confessar o sofrimento. Enfim, nenhuma pretensão a ser mais do que humana. E esta foi uma grande conquista.
É verdade que tive, desde cedo, problemas reais, mas, afinal, eles foram benéficos, pois afastaram os imaginários. Então, não tive tempo de criar fantasmas.
E como detesto lentilhas, tomei mais sorvete.

Instantes (Poema de Luiz Borges)

“Se eu pudesse viver novamente a minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais.
Seria mais tolo do que tenho sido, na verdade, bem poucas coisas levaria a sério.
Seria menos higiênico.
Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios.
Iria a mais lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e menos lentilha, teria mais problemas reais e menos problemas imaginários.
Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata e produtivamente cada minuto da sua vida; claro que tive momentos de alegria.
Mas, se pudesse voltar a viver, trataria de ter somente bons momentos.
Porque, se não sabem, disso é feita a vida, só de momentos, não perca o agora.
Eu era um desses que nunca ia à parte alguma sem ter um termômetro, uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas; se voltasse a viver, começaria a andar descalço no começo da primavera e continuaria até o final do outono.
Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças. Se tivesse outra vez uma vida pela frente... Mas, já viram, tenho 85 anos e sei que estou morrendo...”
Ah, Carolina! Pobre Carolina! E quantas há que não vêem o tempo passar, e que quando despertam já é tarde para recomeçar. Já não podem correr riscos, subir montanhas, transgredir, não ser tão perfeita, gozar de verdade os bons momentos. E tomar mais sorvete!

Não tenho 85 anos, mas já ultrapassei os cinqüenta há bastante tempo. Não sei, nunca sabemos, o quanto me resta, mas decidi não deixar nada para trás. Quero ainda subir muitas montanhas, ver muitos entardeceres, correr muitos riscos, gozar intensamente os bons momentos que a vida ainda vai me dar. E ter a coragem de ter medo, de chorar, de sofrer. E jamais tentar ser perfeita.
É verdade que se pudesse recomeçar faria muita coisa diferente, mas afinal, contas feitas, posso afirmar como Neruda: “Confesso que vivi.”!

sexta-feira, 6 de março de 2009

O reino das trevas

Hoje, penetrei no Reino das Trevas. Subitamente, vi fogueiras se acendendo, rostos ardendo em chamas, gritos de dor, vultos cobertos de negro, que se moviam de um lado para outro, carregando fardos de palha seca para o suplício. Uma voz, vinda das profundezas das Trevas, dizia algo que eu não conseguia entender. A voz era melíflua, como deveria ser aquela que ouviu Eva, ao ser tentada pela serpente no Paraíso. Havia no ar um odor fétido, de podridão misturada ao incenso. Olhei aterrorizada a figura estranha que surgia diante de mim, procurei entender o que dizia. Pensei que tivesse morrido e, por meus inúmeros pecadilhos, estivesse sendo instalada no inferno inquisitorial. Mas, afinal, o que eu poderia ter feito de tão horrendo que me condenasse a todo este HORROR. Procurei, utilizando todas minhas reservas racionais, compreender o que dizia a figura, surgida das sombras aterrorizantes.
Só então, depois de imenso esforço concentrado, consegui compreender. E aí, tudo clareou, voltei à minha cozinha, onde preparava meu lanche noturno. Olhei minhas plantinhas, meus bichinhos, afaguei-lhes a cabeça. O que dizia a estranha criatura não me dizia respeito, e não merecia o meu respeito. Afinal, o que poderia significar para mim ser excomungada? Nem sabia que isso ainda existia! E eu nunca entrei naquela instituição. E nunca entrarei. Logo, nunca serei expulsa.
Subitamente, de novo voltei ao Mundo das Trevas! Tilinha, Nenêm, onde estão vocês? E minhas florzinhas? Minha saladinha, o pão integral, o suco? Tudo foi embora, engolido pelo Terror. As Trevas novamente haviam se instalado. Por quê? Reuni, mais uma vez, toda minha capacidade de compreensão, queria saber por que haviam voltado. Prestei o máximo de atenção, e ouvi aquela voz, simultaneamente melíflua e soturna, dizendo que pior do que ser estuprador de criança é salvar a vida desta criança. A raiva que senti foi tão grande que chutei aquelas Trevas, que me haviam feito tremer, para bem longe, coloquei-me defronte ao aparelho e resolvi ouvir o resto. Então, é verdade que Vaticano, CNBB, e toda a corte católico-celestial consideram o estuprador menos, e muito menos, pecaminoso do os médicos?
Passada a revolta, estando só, enquanto degustava meu lanchinho noturno, acompanhada de meus bichinhos, criaturinhas de Deus, fiz certas reflexões. Afinal, esta instituição tem que ser coerente consigo mesma. Uma instituição onde abundam pedófilos, que destruíram vidas que recém haviam começado, e onde não se tem notícia de nenhuma excomunhão, deve achar mais aceitável o estupro do que a vida. Uma instituição que prega a eliminação de pobreza e mantém na pobreza milhares de seus membros, que não têm sequer a justa remuneração de seu trabalho. Uma instituição que não aceita o progresso científico e acha natural o sofrimento quando este pode ser minorado ou dirimido. E tantas outras aberrações.
Confesso que me sinto feliz por não pertencer a esta instituição. Confesso que aprendi a amar a Deus com minha mãe, avessa à fé católica. Confesso que entendo porque tanta gente se converte a outras religiões, onde não é pecado progredir, onde o indivíduo e seu trabalho são valorizados. Confesso que fico encantada com o olhar sedutor do Padre Fábio de Mello,... mas sedução é outra coisa.
E minha última confissão: confesso que tenho preguiça de continuar deblaterando contra esta gente atrasada, e que, afinal, no mundo que conta de verdade, não significa mais nada.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

SUPERAÇÃO

Durante nossas férias em Natal, aproveitei meu tempo para, além de gozar das belezas do lugar, retomar com maior intensidade o prazer da leitura, que, no corre-corre diário, muitas vezes se torna difícil. E pude ler avidamente um dos mais belos livros que encontrei nos últimos tempos. O título pode causar até algum mal-estar, algum temor, e foi por isso que não quis dizê-lo logo. Chama-se “Anticâncer” e o autor é David Servan Schreiber, neuropsiquiatra francês, pesquisador radicado nos Estados Unidos, na Universidade de Pittsbourg. David é filho de um lendário político e jornalista francês, Jean-Jacques Servan Schreiber, herói da Resistência contra a ocupação nazista.
Conta David que um certo dia, tendo faltado um estudante que lhe serviria de “cobaia”, sob sugestão de seu colega de pesquisa, resolve substituir o faltoso, e, assim, de repente, através de uma ressonância magnética, descobre que tem um câncer no cérebro. Choque, estupefação, medo. David reluta em acreditar, mas exames posteriores confirmam. É então submetido a uma cirurgia, tratamento de quimio e radioterapia. E prossegue na sua vida normalmente, ao lado da fiel companheira russa. Leva vida normal e passa a clinicar, procurando compartilhar com seus pacientes a dor de nossa comum fragilidade. Já começa a considerar-se curado, quando, mais uma vez, o acaso, desta vez numa cerimônia indígena onde fora acompanhar uma paciente, fica sabendo, através de vidente, que o mal está de volta. Mas como pode ser possível se, há dois ou três meses, um exame lhe dissera que tudo ia bem? De qualquer forma, volta aos exames e constata que há uma reincidência no mesmo lugar, e do mesmo tipo. Mais uma vez, submete-se a todo aquele ritual curativo. Só que agora ele se pergunta se não haverá recursos ao redor e dentro de nós que nos ajudem a combater o mal.
Faz então um balanço de sua vida antes da descoberta do tumor e depois de terminado o primeiro tratamento, há cerca de dois anos. E constata que nada mudou. Ao contrário, sua rotina tornou-se tão agitada que mal tem tempo de alimentar-se, engolindo rapidamente um prato de “chili”, aquela deliciosa comida mexicana. Ao final deste segundo tratamento, pergunta ao seu oncologista como deve alimentar-se e recebe a resposta de que coma o que quiser. Mas será verdade? David é médico e sabe que médicos não conhecem nada de nutrição. Conta-nos, de modo didático, como se desenvolve um tumor canceroso, e a importância de um sistema imunológico fortalecido. E começa a pesquisar. Tudo. Pesquisa as propriedades dos alimentos, informa-se sobre pesquisas avançadas nesta área, procura relatos de pessoas que tiveram câncer, que se salvaram, ou viveram mais do que estava previsto pelos doutores. David não tem medo de, como médico, colocar em questão a sabedoria “inquestionável” de seus pares. Mostra-nos como debilitamos ou fortalecemos nosso sistema imunológico. Procura os recursos que Deus, ou a natureza generosa, coloca à nossa disposição. Ele fala de coisas simples, o que ingerimos todos os dias, mostra o quanto há de venenoso na nossa dieta de classe média em países desenvolvidos, ou nem tanto. Mostra que na Índia, em condições quase sub-humanas, há menos câncer. Mas por que será?
David fala-nos de nossa civilização estressante, onde todos devem chegar em primeiro lugar, ganhar mais dinheiro, ter mais bens materiais. Nos relatos dos que viveram, e dos que morreram, encontra lições belíssimas de vida, de amor, de paz interior. Fala-nos de coisas que já esquecemos e que até consideramos piegas: um afago, o contato físico do outro, o amor. Fala de pessoas a quem deram poucos meses de vida e que se curaram, ou viveram ainda muitos anos, em perfeita saúde. Recomenda-nos esta introspecção, que muito poucos cultivam, este momento consigo mesmo, que podemos chamar de meditação, presente em tantas culturas e que nós, ocidentais, salvo no caso dos místicos, abolimos de nossas vidas. Fala-nos de atividade física, que muita gente de minha geração, pobres de nós, considera sinônimo de ignorância, e o quanto ela contribui para o fortalecimento de nosso sistema imunológico.
Talvez para mim, o relato tenha sido excepcionalmente comovente, porque retoma minha própria vida, ou a história de uma parte de minha vida, a luta de toda a família ao recebermos a notícia do câncer de Teresa, minha irmã. Eu já havia perdido pai, mãe e irmão. Teresa e eu éramos tão unidas! Quando, após a cirurgia, recebi dos médicos a notícia de que ela tinha um câncer ovariano, já metastásico, senti o mundo desabar sobre mim. Com Alice, sua filha caçula, acompanhei-a durante as longas sessões de quimioterapia. Procurei esperança, mas nenhum médico jamais me disse nada que pudesse trazer uma réstia de luz. Procurei na Internet, fiz que tomasse xarope de babosa, que fizesse alguma atividade física. Mas se o xarope ela aceitou, a atividade física sempre rejeitou, não acreditando que isso pudesse lhe trazer algum benefício. Teresa sempre soube da gravidade de sua doença e resolveu viver da melhor maneira possível o que lhe restava. Gostava de festa, organizava aniversários e grandes confraternizações de fim de ano. Nunca deixou de comer o que gostava, ainda que eu, através de minhas pesquisas na Internet, houvesse feito algumas descobertas e procurasse convencê-la a evitar certas coisas e aproveitar outras. Mas, afinal, era a sua liberdade. Viveu seus últimos anos rodeada de amor, amor de todos que também sabiam que o tempo podia ser mais curto do que se imaginava. Dizia-me sempre que nada lhe havia ensinado tanto quanto esta proximidade da morte. Que se sentia muito mais feliz do que antes, que aprendera a valorizar todas as pequenas coisas da vida. E lamentava que não houvesse compreendido antes. Quando o câncer reincidiu, três anos e meio depois, contrariando os doutores, que lhe haviam dado poucos meses, ela sentiu que ia morrer.
Ao ler certos relatos, senti especial emoção, pois me reportaram à nossa última conversa, na antevéspera de sua morte. Telefonei-lhe para saber como estava. Atendeu-me chorando, disse-me que sentia muita dor e que estava sozinha, já que pouco antes se sentia bem, e sua filha havia saído para uma compra urgente. Fui vê-la, o coração aos pulos. Encontrei-a andando pela casa, apertando a barriga. Sem saber o que fazer, sugeri que tomasse Novalgina em gotas. Disse-lhe então que se deitasse, para conversarmos. Afaguei-lhe o rosto, segurei sua mão. Fiz com que sentisse minha presença, meu carinho. Logo a dor cedeu – com uma simples Novalgina - e comecei então a falar, de nós, de nossas vidas. Foi nossa última conversa, mas, sem dúvida, aquela em que mais falamos de nós mesmas. Hoje, passados mais de três anos, relembro trechos que me deixam realmente perplexa. Perguntei-lhe se havia sido feliz, e ela, tranqüila, disse-me que, balanço feito, havia sido bastante feliz. Falamos então, com incrível naturalidade, da inevitável morte. Lembro-me que mostrei o lindo rostinho de Mariana Ximenes na tela de televisão que havia ficado ligada e comentei que também ela, linda, jovem, saudável, chegaria ao seu dia final. Não havia angústia na nossa troca de idéias sobre nossas vidas e sobre a morte. Estávamos ambas em paz.
Teresa partiu dois dias depois. Acompanhei-a até a entrada da UTI, dei-lhe um beijo e disse-lhe que Santa Teresinha a protegeria. Foi a última vez que vi minha irmã viva. Como já disse alguma vez, sofri durante muito tempo por ter ela partido sozinha, numa fria UTI, mas hoje tenho a convicção de que todos que a precederam, pai, mãe, irmão, marido, estavam lá, ajudando-a a fazer a travessia.
David traz-nos relatos de sobrevivência, de superação, na vida e na morte. Superação na morte significa paz, a vitória sobre o medo do desconhecido. Estou certa de que, como muitos daqueles que partiram, cujas histórias são relatadas no livro, Teresa também partiu em paz.

Para finalizar, David está vivo, quinze anos após sua reincidência, quando lhe deram alguns poucos meses de vida.