QUEM SOU EU

Sou professora de Francês, mas hoje minha principal atividade é escrever e ler, além de cuidar dos meus três vira-latas: Charmoso, Príncipe e Luther.



Gosto de fazer ginástica, sou vegetariana e adoro animais em geral, menos baratas.



Sinto especial prazer quando meus textos agradam aos meus leitores. Espero continuar produzindo e me comunicando com todos os meus amigos, neste maravilhoso universo da net.



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segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

 O cinema 

A invenção do século

Já no século XVIII, a lanterna mágica encantava espectadores. Mas tratava-se somente de uma maquininha composta de algumas placas de vidro pintadas, projetadas sobre uma parede branca com o auxílio de uma vela. A verdade é que a imagem surgida do nada sempre encantou os homens e lhes fez medo. Nas feiras eram comuns as caixas com orifício,  por onde se podia ver cenas desenhadas , que o operador puxava por meio de um fio. Tudo iluminado por velas. 

De  1892 a 1900, espectadores se exprimiam para ver, no Musée Grévin, em Paris as chamadas pantomimas luminosas, o quê chamavam Théâtre  Optique, cuja engrenagem é bastante complicada. O importante é que a confecção é mais complicada ainda, devendo cada cena ser desenhada para ser posteriormente exibida. Seu inventor Emile Reynaud, notável desenhista, deve desenhar milhares de figuras para que haja movimento. A lâmpada elétrica havia sido inventada em 1879, e tinha a duração de 40 horas.  O problema é que o calor, racha a gelatina sobre a qual são  feitos os desenhos. Assim, o espetáculo fica suspenso por mais de um ano. Emile Reynaud ainda tenta produzir dois filmes, até que em 1900, superado pelo cinema, tendo sido expulso do Musée Grévin, arruinado, joga suas fitas no rio Sena e morre em 1918, em um asilo.

A primeira filmagem , feita pelos Irmãos Lumiére, Louis e Auguste, ocorre em 1895 e mostra a chegada de um trem numa estação. Esta  projeção provoca pânico no público, aterrorizado ao ver a aproximação do trem. Acontece numa saleta do Grand Café, situado no Boulevard des Capucines, ainda hoje existente. Cinematographe Lumière .Nesta primeira apresentação, somente estão presentes 33 espectadores. Mas aos poucos, sobretudo no boca a boca, a frequência vai aumentando. A princípio, são filmadas cenas banais, como de amigos tomando café , ou de uma uma brincadeira  com uma mangueira. Em seguida, começam a filmar documentários. Apesar de um pequeno embaraço na Rússia, logo depois lhes é permitido exibir filmagens e filmar. É interessante notar uma observação do grande escritor  Tolstói , referindo-se àquela cena do trem entrando na gare : ""Quando , do horizonte , um trem inteiro vem em nossa direção, , quando ele parece furar a tela , nosso espírito imediatamente evoca a mesma cena em Ana Karenina"".  Lembrando sua monumental obra, em que abandonada pelo amante por quem tudo perdera, Ana Karenina joga-se nos trilhos de um trem. Mas bem diferente é a  opinião de outro grande da literatura russa, Máximo Górki :""Ontem à  noite, estive no Reino das Sombras. Se vocês pudessem imaginar a  estranheza desse mundo! Um mundo sem cores, sem som. Tudo nele - a terra,  a  água e o ar, as árvores , as pessoas-, tudo é feito de um cinzento monótono. Raios de sol cinzentos num céu cinzento, olhos cinzentos num rosto cinzento, folhas de árvores que são cinzentas como a cinza. Não a vida, mas uma espécie de espectro mudo""

Nesta primeira apresentação, estava presente um jovem mágico. Com sua sua parte na herança familiar, ele havia comprado o teatro Houdin, que havia pertencido ao célebre magico Robert-Houdin, cujo nome veio a inspirar outro célebre mágico. Naquele tempo os ilusionistas produziam verdadeiras peças de teatro. Assim, Méliès adquiriu grande performance como ator, diretor e cenógrafo. Ao assistir aquela primeira sessão veio-lhe a mente que se poderia fazer muito mais com aquele instrumento. Já que os  Lumière não haviam querido vender-lhe o aparelho, vai a Londres e compra um genérico, que desmonta e remonta com grandes melhorias. Mas o quê trouxe a grande descoberta foi um pequeno incidente. Ele estava filmando a Place de l'Opéra , quando a máquina deu um defeito,  sacudiu-a e ao revelar o filme verificou que o ônibus que estava filmando havia se transformado em outra coisa. E sua mente genial logo descobriu o que poderia fazer com este recurso. E foi com este recurso que ele fez nascer a SÉTIMA ARTE. Ou seja, utilizar para contar histórias.  Impossível descrever tudo que conseguiu. Imagens duplas, mesmas pessoas no mesmo lugar.  Sua cabeça cortada que se alinhavam sobre fios, enquanto ele mesmo se desenvolvia em cena. Criara-se a magia do cinema, que tanto nos encanta e sempre nos encantará.

Para suas filmagens, construiu um estúdio de vidro para melhor aproveitar a luz e criou sua companhia a STAR FILM. Seu grande sucesso, com truques inacreditáveis, foi "Viagem a Lua", baseado no romance de Jules Verne, "Da terra à Lua". Seus filmes coloridos eram pintados a mão, com cada quadro com cores exatamente iguais às anteriores. Empresas se organizaram para este fim, com funcionárias especializadas em cada cor. Charles Chaplin, grande admirador seu se referia a ele como o "alquimista da luz". Influenciou John Ford  e Orson Welles, que diziam tudo dever a Méliès.

Mas em 1914, o mundo entra numa fase sombria. Méliès é artista  e não um homem de negócios. Para estes, é um momento de enriquecer Neste período difícil, acaba falindo, obrigando-o a  desmontar seu estúdio. Logo depois, o exército francês confisca seus filmes para serem derretidos e servirem para fazer solas para as botas. A falência definitiva vem em 1923. Desesperado, coloca fogo em vários filmes. Dos quinhentos que havia produzido, felizmente, ainda restaram duzentos. Foi então que ele se retirou em definitivo e abriu uma modesta lojinha de doces e brinquedos na Gare de Montparnasse. 

Em 1929, jornalistas, diretores e produtores procuraram saber  por onde andavam aquele homem genial, que transformara o cinema documentário breve em ARTE O verdadeiro criador da SÉTIMA ARTE. E então o encontram, na sua modesta lojinha da Gare  Montparnasse, que conheci quando criança, sem conhecer a história de Méliès. Neste mesmo ano, diante de uma plateia cheia os grandes diretores, produtores e atores da época, ele recebe a Legião de Honra da França, o maior título do país. 

Viveu o resto de seus dias tranquilamente, em condições confortáveis, recebendo uma mais do que merecida pensão. Faleceu em 1938. 

Se você quiser conhecer mais sobre Méliès, aconselho um dos mais belos filmes que vi em minha vida: " A invenção de Hugo Cabret" de Martin Scorsese, um hino à SETIMA ARTE.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

  Feminismo através dos tempos

""Este sexo envenenou nosso primeiro pai, que era também o seu marido e pai, estrangulou João Baptista, entregou o corajoso Sansão à morte. De uma  certa maneira,  também, matou o Salvador, porque, se a sua falta não o tivesse exigido, o nosso Salvador não teria necessidade de morrer. Desgraçado sexo em que não há nem temor, nem bondade, nem amizade e que é mais de temer quando amado do que quando é odiado." Godofredo de Vandoma por volta de 1095.""

"No século X, Odão de Cluny (+942), retomando as advertências de João Crisóstomo (+407)contra Eva, inspirava aos seus monges os mesmos temores salutares: " A beleza do corpo não reside senão na pele.  Com efeito, se os homens vissem o que está debaixo da pele,  a vista das mulheres dar-lhes-ia náuseas...Então, quando nem mesmo com a ponta dos dedos suportamos tocar um escarro ou um excremento, como  podemos desejar abraçar esse saco de excremento?" "

Trechos extraídos de "História das Mulheres- A Idade Média"

Georges Duby e Michele Perrot 

Daí pode-se ver o quê pensavam o religiosos na Alta Idade Média. Assim, falavam aqueles que se diziam seguidores de Cristo. Daquele Cristo que andava com as prostitutas, mendigos e ladrões. Enfim, todos os excluídos. Que terrível deformação da mensagem do Messias!

Vagarosamente, no começo da Baixa Idade Média, tudo começa a  mudar.  Há alguns anos, comprei na  França um livro de uma historiadora, Régine Pernoud, que me encantou de tal modo de não parei de lê-lo até terminar. O título: "Alienor D´Aquitaine". Rainha de  dois países diferentes, governou um ducado em seu próprio nome, foi mãe de dois reis famosos e participou de uma Cruzada. Nasceu, supõem-se, em 1122, primeira filha do Duque de Aquitânia. Hoje a Aquitânia é uma região ao Sudoeste, mas na época era um país independente, ainda que vassalo do rei da França.  Em 1137, no dia 25 de julho, aos 15 anos, Alienor casa-se com o herdeiro do Rei da França, Luís VII. Cerimonia grandiosa, com o povo aglomerado até o espaço onde se encontram dois tronos. Conta-se que era uma linda mulher, de cabelos ruivos, de uma fantástica personalidade, e grande cultura, conforme os padrões da época. Ao contrário do marido, que mais parecia um garotão.

Somente bastante  depois, o casal tem uma filha, a quem chamam de Maria. Mas a rainha era inquieta e com o marido "toma a cruz" o significava participar da luta contra os sarracenos que haviam invadido a Terra Santa. Este movimento resulta  em enorme fracasso, e um culpa o outro. Aí as coisas pioram entre os dois e cogitam de pedir a anulação do casamento, o que o Papa rejeita. Alienor engravida novamente, e dá à luz a uma menina, Alice. Como o reinado exigia um varão, o Papa, finalmente concorda em anular o casamento. A notar que, oito semanas depois da anulação de seu primeiro casamento, ela casa-se com Henrique II, rei da Inglaterra, seu verdadeiro amor. Henrique e Alienor tiveram ao todo oito filhos , dentre os quais se encontra o conhecido Ricardo Coração de Leão. Mas, apesar da paixão, as brigas eram frequentes, por questões políticas sobretudo

Por quê incluir esta mulher como, talvez,  a primeira feminista? Ela foi a mulher audaciosa que não teve medo de participar de uma Cruzada, nem se submeteu às convenções ao  casar-se com aquele que considerava seu grande amor, foi uma grande estrategista, foi audaciosa mantendo a qualquer preço seu Reinado da Aquitânia. Há  vários anos atrás, fui a Fontevraud, na Vallée de la Loire, convento onde ela, já idosa, se refugiou. Lembro-me de seu túmulo e de seu marido e acho que o de Ricardo. Ouvia-se pelos corredores, com arcos que davam sobre o jardim, bem ao estilo medieval, o som de um órgão, procuramos e achamos um organista, que nos vendeu um CD. Tentarei postar a foto de  seu túmulo. 

Outras mulheres, valentes e independentes surgiram posteriormente, e até antes, mas o quê me fascina nesta mulher é sua luta para manter aquilo que considerava seu, a sua coragem em viver um grande amor. Numa época em que as mulheres ainda eram desprezadas como filhas de Eva, aquela que fizera a traição da serpente e levara o homem a ser expulso do paraíso. Mulheres duplamente pecadoras, por terem duas zonas erógenas. Como diz o historiador George Duby, em sua magnifica obra "Dames du XIIe.  Eve et le prêtres".  "O quê é o corpo da esposa? Um objeto, uma espécie de feudo análogo àqueles bens  que o senhor concede a seus vassalos sob certas condições , uma  terra a laborar e semear." Enfim, pode-se imaginar o quê poderia ser esta sociedade se, ainda no século XXI, vivemos um patriarcado em que, muitas vezes, o macho manda e a mulher obedece. 

Mas, agora, vamos dar um enorme salto na História , para falar de uma grande filósofa e feminista; Simone Signoret, eterna companheira de Jean- Paul Sartre. Dentre suas obras, talvez a que mais me influenciou foi "Le Deuxième Sexe" , que ainda bem jovem li avidamente. Foi-me indicada por um companheiro francês, meu professor na URGS, como um aprendizado do "ser mulher". Hoje relendo-o, acho-o importante como uma introdução à emancipação feminina, mas alguns aspectos me parecem exagerados, como ela pretendia que fossem para o ano de 1947, quando foi publicado. Deveria ser uma verdadeira explosão! A tal ponto que o  grande Albert Camus declarou que ela havia desmoralizado o macho francês. Mas há coisas interessantes, ela comenta o fato de que as fábricas, os escritórios e até as faculdades estão abertas às mulheres. "...mas continua-se a considerar que o casamento é para elas uma das carreiras mais honrosas, que as dispensa de qualquer outra participação à vida coletiva." O resultado é que elas são menos especializadas, e menos preocupadas na sua profissão. E fala ainda do mito de Cinderela que só encontra salvação no seu Príncipe Encantado. Lembro-me de que, os cursos que preparavam professoras na Faculdade eram chamados "espera marido". Os homens deviam seguir profissões em que ganhavam mais do que as mulheres; médicos, engenheiros, e, quem sabe, até economistas. Uma colega chegou a fazer uma exposição de enxoval! A mulher que não se casava era chamada pejorativamente de "solteirona".

Mas, se para Simone "não se nasce mulher, faz-se mulher" e a única diferença entre um homem e uma mulher é a genitália, surge, em meados dos anos 60 ou 70,  um jovem filósofo, chamado Gilles Lipovetskky, que coloca este princípio absolutista em questão. Seu principal livro "La troisième femme. Permanence et révoltion du féminin." causa grande celeuma entre as feministas radicais, como a falecida Rose Marie Muraro, mulher admirável, que nasceu quase cega e conseguiu vencer barreiras que pareciam intransponíveis. O  filósofo afirma que muito mudou, mas que, infelizmente, muita coisa permanece. E ainda que há grandes diferenças, além da genitália entre homens e mulheres. São pormenorizadas estas diferenças, e não cabem no espaço de meu texto. Em certo capítulo, lembra o "belo sexo", que, apesar de todos os avanços, continua sendo uma inexpugnável barreira das velhas convicções. Lembro-me de uma de uma amiga que dizia: "se uma mulher não casou é porque ninguém a escolheu e se ninguém a escolheu é porque ela deve ter algum problema, é inferior às outras." Ou seja, para casar, a mulher não pode ter defeitos, e o pior, ela jamais escolhe, é escolhida. Seu livre-arbítrio é nulo!!!

Até a Primeira Guerra, o mito de beleza restringia-se a uma certa parte da sociedade. Ou seja, era propriedade da elite. No meio rural, não tinha a menor importância, e podia até ser mal vista, já que a poderia distanciá-la do labor. Após, com a invenção do cinema,  a visão das primeiras estrelas, daquele mundo feérico da beleza, as coisas começam rapidamente a mudar. Lembro de minha mãe, que contava que ela, e minha tia Aracy, faziam álbuns com retratos de artistas que recortavam de revistas. E procuravam imitar as que achavam mais belas. Por sorte, eram ambas bonitas. Isto acontecia nos anos 20. "O consumo cosmético aumenta moderadamente até a Grande Guerra  e acelera-se nos anos 20 e trinta e 30. O batom conhece um grande sucesso a partir de 1918; os óleos solares e esmalte provocam furor nos anos 30". Minha mãe contava que, sem recursos, colocava na água papel crepom vermelho e com a tinta pintava seus lábios carnudos, tão em moda hoje.  

Tinturas de cabelo, cremes para o rosto, para o corpo, cremes de todos os tipos. Para quem quer cabelos lisos, há as famosas escovas inteligentes, que incluem nutrientes (veganas, de leite, etc) e que substiuem as toucas de minha  juventude. Com a nova tecnologia, não precisamos mais correr para casa ao menor sinal de uma nuvem. Novos tipos de profissionais como, esteticistas, massagistas, manicures, abundam. Os procedimentos estéticos, como botox e preenchimentos são agora praticados até por dentistas. E para ser justa, homens fazem reflexos, pinçam as sobrancelhas e até lhes fazem desenhos geométricos, como João, filho de minha sobrinha, Alice. E isto não põe em dúvida a sua masculinidade. E este é o lado bom, que , infelizmente, só existe nas novas gerações.  

A beleza da esbeltez, do corpo perfeito (nem sempre conseguido, já que provém de uma certa estrutura corporal), tudo faz da mulher não mais a descendente maldita de Eva, mas  certamente escrava da eterna beleza e da eterna juventude. É verdade que muita coisa mudou nos últimos 10 ou 20 anos. Desde que o livro de Lipovetsky foi editado na França, em 1997.  Mas muita coisa permanece igual. No entanto, não podemos esquecer as mulheres em igualdade de posição com homens: professoras, médicas, advogadas, dentistas.

Estamos num momento em que tudo pode valer, desde a beleza erigida durante a Renascença, pelos grandes mestres, até a célebre Garota de Ipanema,  Helô Pinheiro , que diz sem problemas a sua idade,  festeja alegremente seus 80 anos, e faz propaganda de aparelho para surdez! O quê seria impossível de imaginar há poucos anos. Surdez é coisa de velho! 

E assim, la nave va!!!  

Não posso deixar de mencionar duas professoras de francês ,Regina Paschoalino e Sylea Souza,  que comigo se reuniam todas as quintas- feiras para estudar a fundo a Idade Média (Alta e Baixa) e a Renascença. Conquistamos um grande conhecimento destas duas fases da História do mundo ocidental, em que uma faz renascer valores tão importantes esquecidos pela anterior. Teríamos continuado se acontecimentos em nossas vidas não nos tivesse tirado de rota. 

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

 Cortesã , princesa e santa.

Ela nasceu Anne-Marie Chassaigne, no dia 2 de julho de 1869, bem no interior da França. Vinha de uma família de militares, extremamente conservadora, e foi a última filha e a única mulher, o quê não significa que tenha sido mimada. Sua família era pobre e viviam em extrema dificuldade. Aos nove anos, entra para o convento de Sainte-Anne-d'Auvray , dirigido pelas Fidèles Compagnes de  Jésus. Tinha "unhas pretas e piolhos na cabeça"  Mas, ao cabo de três dias, tudo isto desaparece, e ela reaparece completamente mudada. Ainda que fosse motivo de galhofa, segundo seu próprio relato. 

Agora, já na adolescência Anne-Marie começa um rápido desabrochar.  É junto às freiras que ela se transforma em beleza e cultura. Obtendo aquilo que não foi concedido à sua rival , Carolina Otero. E será sempre grata àquelas que a transformaram. Fundada sob a Restauração, que tem fim em 1830, esta Ordem tem a missão de educar jovens pobres. O sucesso é tal que muitas jovens abastadas passam a frequentar o convento. Anne-Marie  aproveitará muito bem esta oportunidade. Ela cresce em beleza e cultura. Entra em contato com os clássicos,  o que lhe permitirá, mais tarde, escrever seu próprio diário. Poderá ser admirada por poetas como Jean Cocteau, os irmãos Goncourt, escritores , além de outros intelectuais que se tornaram seus amigos ou amantes. 

Filha e irmã de militares ,  em 1886, aos 17 anos , Anne-Marie casa-se com Armand Pourpe, oficial da  marinha . Breve lua de mel em Paris, onde encontra um mundo desconhecido, que a encanta. E ainda constata que, na capital, sua beleza e elegância atrai olhares. Armand é brutal no seu ciúme. Ela contesta. Adora sua silhueta  esbelta. Mas um dia, poucos meses após o casamento, ela descobre , com imenso pesar que "a esbeltez de sua silhueta não mais será do que uma lembrança." Gravidez dolorosa , parto doloroso. É assim que ela imagina sua nova situação.  Considera que depois da  violência do "estupro" (?) sucederia a violência do parto. E após o nascimento do filho, Marc, ela constata que não tem vocação para a maternidade.

Após uma mudança para Toulon, cidade bem mais interessante do que a   provinciana Lorient, Anne-Marie, deixando de lado a honra conjugal, descobre o prazer de ter um amante. Ao descobrir o adultério, tendo flagrado  os dois na cama, o marido furioso desfere um tiro que a atinge nas costas, sem grandes consequências. A partir daí, ela tem uma boa razão para pedir o divórcio. Seu filho fica aos cuidados dos avós paternos e ela pode partir livre para recomeçar sua vida em Paris.

"Amour du luxe , l'amour de la liberté , et aussi , comme aurait dit Saint  Augustin "l'amour de l' amour"..." Ela se transforma em Liane de Pougy,  e descobre que não pode se limitar a um só homem ou a uma só mulher. Sim, porque ela ama e é amada por homens e mulheres. Várias hipóteses existem para a escolha de seu novo nome. O quê  se sabe é que, chegando em Paris, foi morar com alguma amiga que já vivia de suas graças. Sabe-se que começou de baixo, nas chamadas "maisons closes" onde devia se sujeitar a qualquer exigência, mas, pouco a pouco, foi subindo na escala das profissionais. Tendo superado sua mestra, a célebre Valtesse de la Bigne,  cortesã e última amante de Louis Napoleão Bonaparte.  Conta, com orgulho que o Embaixador da Grécia a reteve por mais de uma hora e a pagou com verdadeiras pérolas

Para estas  cortesãs, e são muitas, há todo um ritual que devem cumprir cada dia. Mostrar-se  no Bois de Boulogne, almoçar no restaurante Weber, jantar no Paillard, apresentar-se em um camarote de um teatro famoso, cear  no Larue. Se Valtesse se especializara em artistas, como o músico Jacques Offenbach , Liane se especializaria em reis, políticos, e jornalistas, que faziam publicidade de seu ofício. Finalmente, ela entra no "gratin de la galanterie." Segura de si mesma , ela não esconde sua bissexualidade, e munida de bastante  cultura escreve "Idylle saphique" inspirado em sua ligação com Nathalie Clifford Barney, milionária americana, também escritora. Ela se apresenta como atriz , seja em Paris ou Londres. Seu sucesso é inegável. Entre seus amantes constam o Marquês de Mac Mahon, Henri Meilhac, libretista de  Offenbach , o banqueiro Maurice de Rothschild. Mas ela também tem rivais, muitas, como Colette, misto de cortesã e escritora, e a requisitada Emilienne d'Alençon, outra cortesã famosa. Escritores como Max Jacob a iniciam à leitura dos clássicos. 

Já madura , casa-se com um rapaz dez anos mais jovem, mas o casamento dura pouco. Finalmente , em 1908 , encontra o príncipe romeno Georges Ghika, com quem se casa em 1910. Este  casamento escandaliza toda a sociedade, desde as mondaines até a dita sociedade bem constituída. Afastam-se de todos e passam seus dias seja em Roscoff , na Bretanha ou nos arredores de Argel. 

Finalmente , como diz seu biografo Jean Chalon, "Mort d' un fils, et naissance d'une mère"  É verdade que, durante muito tempo, Liane havia se esquecido da existênica de seu filho, Marc. Depois de muito tempo, seus contatos eram esporádicos. Mas o definitivo acontece durante a Primeira Guerra, quando Marc, aviador, morre. Liane sente uma profunda dor, e grande remorso por aquele total abandono. É neste momento que ela se aproxima de Deus, que também havia esquecido. Procura consolo na religião. Mas ainda está com o príncipe. Tentam recomeçar, mas ele a trai, está gravemente doente e, além do mais, tornou-se alcoólatra. Morre em 1945. 

Espiritualmente acompanhada por Mère Marie-Xavier, durante trinta e dois anos, reabilita-se tratando de doentes mentais no asilo Sainte Agnès. Em 1939, pede ao Père Alex Ceslas Rzewuski, seu confessor e depositário de seus Cahiers Bleus,, que os publique, o que ele fará somente em 1977.  Em 1943, ele admite sua penitente "digna de ser recebida sob o nome de Soeur Anne-Marie de la Pénitence no "Thiers Ordre de Saint Dominique" .

Soeur Anne-Marie de la Pénitence morreu no dia 25 de dezembro de 1950.

Resquiescat in Pace 

"Liane, ah! ma Liane, c' est mon souvenir le plus voluptueux. Et dire que, à la fin de sa vie, elle prédendait que j' avais été son plus grand péchê .

"Liane, ah! minha Liane, é minha mais voluptuosa lembrança. E pensar que, no fim de sua vida, ela pensava que eu havia sido seu maior pecado"

Natalie Barney a Jean Chalon um dos biógrafos da cortesã. No outono de 1963.

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

 Carolina Otero

Uma velha , cabelos brancos, um lenço envolvendo a cabeça,. Usa óculos escuros e leva uma bengala, no entanto, não parece ter dificuldade em caminhar. Passa totalmente despercebida.

Mas , afinal, quem é esta mulher?  Por quê falar dela? Agostina Carolina del Carmen Otero y Iglesias , nasceu em 4 novembro de 1868, numa aldeia pobre ao sul da Espanha. Jamais conheceu o pai e  na infância só conheceu miséria e abandono. Sua educação foi quase nula. Tinha cinco irmãos e uma irmã. Suspeitava-se que fosse filha do pároco, mas nada prova que seja verdade.  Segundo algumas testemunhas, apesar da extrema pobreza era uma menina alegre e carismática. Aos dez anos, foi brutalmente estuprada por um sapateiro. Foi tamanha a brutalidade, com tão forte sangramento, que teve que ser hospitalizada.  E por incrível que pareça, foi a criança que ficou estigmatizada.

Sem recursos , engajou-se em uma companhia de comediante portugueses. Foi aí, que, aos treze anos, conheceu um barcelonês, seu primeiro amante. Foi com ele que aprendeu a dançar o flamengo. Mas ele não só a ensinou a dançar, como a prostituiu. Quando as autoridades descobriram que se tratava de uma menor,  a devolveram à sua mãe , que, grávida, a rejeitou. Sem ter para onde ir, Carolina, voltou para seu antigo amante. Grávida, foi obrigada a abortar, o quê a deixou estéril, conforme ela conta em suas memórias. É neste momento que, ainda menor, decide levar adiante sua vida e segue sozinha para Barcelona. Foi aí que encontrou outro amante, que a ajudou a instalar-se. Depois de vários amantes,  ela encontra um milionário americano, que por ela se apaixona. Fê-la ter lições de dança e canto, e aproveitando de sua aparência andaluza, criou-lhe uma glamorosa biografia. Financiou-a, e a introduziu no mundo do entretenimento, levando-a a apresentar-se no famoso Folies Bergères, cuja fachada conheci no início dos anos 80. Apresentou-se nos Estados Unidos, e  conquistou o mundo das grandes "cocottes" com sua beleza, sensualidade e, evidentemente, grande talento. Circulou pelo mundo, foi à Russa, onde se tornou , durante algum tempo,  amante de Nicolau II, que por ela se apaixonou. Nos Estados Unidos, foi recebida com milhares de flores, de amantes, de joias, e  de dinheiro. 

Extremamente inteligente, inventou outras biografias, que encantavam o público,  ainda que fosse de conhecimento público sua condição de "Horizontale". Rejeitado pela família e pela amante, arruinado, o milionário americano, cujo nome me escapa, resolveu suicidar-se. Enquanto isto, Carolina continua sua carreira de sucesso nos palcos e na cama. Seus amantes eram  reis e príncipes. Leopoldo II da Bélgica, Nicolau II (que, em 1918, seria fuzilado com a família, e que por esta época ainda era solteiro), o futuro Rei Eduardo VII e outros. As joias que recebia como pagamento por seus favores incluíam até um colar que pertencera à Rainha Maria Antonieta. Rivalizava, com suas joias e dinheiro, com outra "Horizontale", Liane de Pougy, de quem falarei mais tarde. O interessante é que confessou jamais haver sentido prazer em nenhum de seus contatos, talvez devido ao episódio traumático de sua infância. Foi retratada por Toulouse Lautrec,  José Marti, poeta e político cubano lhe dedicou alguns versos e até o poeta italiano Gabrielle d'Annunzio. Acumulou uma fortuna equivalente a cem milhões de euros. 

Em 1910, aos 46 anos, decide mudar-se para Côte d´Azur. No Principado de Mônaco, ela passa a frequentar o luxuoso Casino de Monte Carlo.  Recebe seus amantes no majestoso Hotel de Paris, pertencente à mesma companhia do Casino. São tantas as visitas, que ela pode ser considerada a castelã do palácio.  Pinturas representam sua bela nudez. Então, suas joias e seu dinheiro foram, paulatinamente, desaparecendo. Recordava um velho diretor do Casino de Monte Carlo, aquela  mulher, ainda bela, com um magnífico colar de pérolas. Mas, chegou a tal ponto o seu vício e sua pobreza, que sua entrada foi proibida. No início dos anos 50, quando foi feito um filme sobre sua vida, tendo a atriz mexicana, Maria Félix, como protagonista, ela já estava arruinada, mas ainda conservava algumas coisas , como um casaco de pele e um certo ar de nobreza,  o quê mostra uma filmagem feita, provavelmente no fim dos anos 40. No início dos anos 50, ele pede ao  Principado de Mônaco uma pensão , que lhe foi concedida tendo em vista seu glorioso passado de artista , assim como a fortuna colossal por ela deixada no Casino de Monte Carlo. Segundo o Diretor de Comunicação, ela perdera, desde sua chegada, o valor equivalente  a duas vezes e meia a construção do Casino. 

Concedida a pensão, aluga um quarto mobiliado. Conta sua biógrafa, que adolescente entreviu-a na pequena sacada, dando comida às pombas. Depois, a sacada fechou-se e ela passou a viver de suas lembranças. Levavam-lhe algum alimento.  Diz ela, " ..c'était une petite vieille..." ("era uma velhinha ). Belle Otero é a última das grandes cortesãs. Termina a Belle Époque, que se estende da queda de Napoleão III até a Primeira Guerra Mundial. Em Paris, morei num lindo apartamento da Belle Époque. Há alguns anos, descobri a data de construção; 1896.  

Esta é a história de uma menina miserável, que sofreu violento estupro aos 10 anos, que foi repudiada pela própria mãe, que foi prostituída pela única pessoa que lhe deu abrigo,  que conquistou o mundo com sua beleza, arte e seu corpo perfeito, que ofereceu seus serviços a poderosos que a cobriram de fortuna, e que, inacreditavelmente, acabou na miséria. havendo até quem diga  que, bem no fim da vida, catava comida no lixo. 

Agostina Carolina del Carmen Otero y Iglesias, morreu em 1965 aos 97 anos de um ataque cardíaco fulminante. Foi encontrada por vizinhos. Suas calcinhas abaixadas se enrolavam nos tornozelos, o quê não deixa de ser, para uma cortesã, um "clin d´oeil du destin" ( uma piscadela do destino). 











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