QUEM SOU EU

Sou professora de Francês, mas hoje minha principal atividade é escrever e ler, além de cuidar dos meus três vira-latas: Charmoso, Príncipe e Luther.



Gosto de fazer ginástica, sou vegetariana e adoro animais em geral, menos baratas.



Sinto especial prazer quando meus textos agradam aos meus leitores. Espero continuar produzindo e me comunicando com todos os meus amigos, neste maravilhoso universo da net.



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sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Entre abraços e afagos, o brasileiro cordial

Jimmy era um cachorro dócil, amável, que gostava de crianças. Foi trazido de Ibitipoca por meu sobrinho, Bertrand, que viu quando a família que o abrigava embarcou numa caminhonete, deixando-o para traz. Viu quando o bichinho saiu correndo, tentando alcançar os que o haviam abandonado. Bertrand também saiu correndo, xingando-os com todos os palavrões que lhe vinham à cabeça. Mas eles, ainda que tenham ouvido, não pararam. Afinal, meu sobrinho é um homem grandalhão, e não valia a pena tentar limpar a “honra”. E foi assim que Jimmy surgiu na nossa vida. Como era um cachorro de grande porte, não pude abrigá-lo, mas pedi a um amigo que cuidasse dele. E então  Jimmy ganhou uma família de fato, com crianças gentis e a companhia de outros animais.
E viveu feliz durante 11 anos. Já era um cachorro velho, quando meu amigo ligou-me dizendo que estava doente. Havia dois dias não queria comer, nem brincar. Levamos imediatamente à Clínica onde trato meus bichinhos.  Quase sem forças para andar, foi carregado no colo até o consultório. Estava magro, triste. Meu amigo não quis assistir à consulta e ficou do lado de fora, chorando. Sabíamos que era grave. Após minucioso exame, a veterinária constatou vários tumores. Jimmy urinava sangue. Disse-me que estava quase certa de que ele tinha tumores cancerosos espalhados por todo corpo, mas precisava fazer alguns exames, incluindo uma biopsia. Deixamos na clínica. Eu tinha certeza de que o bichinho estava muito mal. No dia seguinte, ela me telefonou e confirmou o que havia dito. Disse-me que não havia o que fazer, e que, na sua idade, ele não agüentaria uma quimioterapia. Telefonei a meu amigo e resolvemos poupá-lo do sofrimento, optando pela eutanásia.
Alguns dias depois voltei à clínica, ainda estava chocada. Chorei, mas achei que havíamos feito o melhor. Jimmy foi enterrado num cemitério para animais, onde estão enterrados outros animais nossos, cães e gatos. A conta foi alta, muito alta, mas paguei sem lamentar. Enxugando os olhos, tirei meus óculos escuros e enfiei no decote da blusa. E voltei para casa. No caminho encontrei uma amiga, contei-lhe o que havia acontecido, compadeceu-se de todos nós, e, para expressar esta solidariedade, deu-me aquele abraço, bem apertado, saído diretamente do seu coração para meus óculos. Senti um “clic”, e pensei: lá se foram eles. Além da eutanásia, da conta astronômica, eu ainda tinha o prejuízo dos óculos. Tive vontade rir,... ou de chorar. Minha amiga, como todos os brasileiros usou seu corpo para expressar sua solidariedade.  Voltei para casa pensando que afinal usamos nosso corpo para expressar qualquer sentimento, o que encanta os estrangeiros, sobretudo os que não vivem aqui. Que o diga nossos desfiles de Carnaval, as praias. Por isso ganhamos a fama de “país das bundas”. Minha amiga usou seu corpo, e o meu, para expressar solidariedade na minha dor, mas poderia ser para dar-me parabéns, ou mostrar como estava alegre em reencontrar-me após longa separação.  O corpo é nosso instrumento de paz e de guerra, de alegria e tristeza, enfim, de qualquer sentimento. 
Lembro-me de que há alguns anos encontrei uma pessoa, não sei mais quem, que, de tão feliz em me rever, me deu um abraço forte, e de má pontaria, que arrancou uma de minhas argolas (sorte que não rasgou minha orelha), que foi parar nunca soubemos onde. É claro que fui gentil e disse-lhe que não havia problema, etc, etc. Mas era das minhas preferidas. Desolada, ela queria procurar pelo passeio, mas não me prestei a este ridículo, já que senti que havia pulado longe. E aí fiquei com uma só argola, o que para mim significa nenhuma. Num dos múltiplos velórios de minha família, lembro-me de uma outra pessoa que me massageava o braço, em sinal de solidariedade, creio eu. Esfregava com força, e quanto maior fosse a força maior seria sua solidariedade. Esquivei-me, já irritada. E tantas que me acariciaram fortemente, me descabelaram, me fazendo uma espécie de cafuné. Afinal maltrataram minha dignidade na dor, já que meu corpo exausto pedia descanso e um gesto simples de carinho, como um beijo.
E também há a história das amostras que levei para uma biópsia de uma pequena cirurgia de Ricardo. O hospital deveria fazê-lo, mas fui eu que tive que carregar os inúmeros potinhos cheios de um líquido, que não deviam balançar. Rezei para não dar com algum buraco, e acho que meu anjo da guarda colocou a mão sobre os que sempre recobrem o caminho de quem circula pelas ruas do Brasil. Depois de deixar o carro no estacionamento, rezei para não encontrar nenhum buraco nas calçadas de infames pedras portuguesas, E tampouco um bom amigo. Fui pelo caminho olhando obsessivamente para o chão e vigiando os transeuntes. Passei defronte ao prédio onde trabalha um desses calorosos, rezei para que não aparecesse. Finalmente, cheguei ao laboratório, com os vidrinhos intactos. UFA! Pelo menos uma etapa da ansiedade já havia sido superada, mas teríamos que esperar vários dias para o resultado. Com imensa ansiedade, resolvi buscá-lo, Pedi a proteção de Deus. Abri lá mesmo o envelope com o resultado. E agradeci mais uma vez. Negativo.
Conto tudo isto para mostrar uma das mais corriqueiras características que observo no “brasileiro cordial”, a que se refere Sérgio Buarque de Holanda do seu genial “Raízes do Brasil”.  O poder do corpo. Não é observação sua, mas estou certa de estes é um dos traços que constrói este homem singular. E há ainda tanta coisa que observo todo dia!! E o pior é que cada vez que observo um desses traços, sinto que não sou diferente.
Afinal, no que diz respeito à cultura, não posso dizer como Piaf: “Je repars à zero”.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Do passado, só o melhor

Em 2010, comecei o ano com um projeto claro: desembaraçar minha casa de toda bagulhada que a gente teima em juntar. São os doze trabalhos de Hércules. Mas de qualquer jeito, neste fim de ano, em que estou sozinha, juntei forças e recomecei a pleno vapor. O incrível é que tenho a terrível impressão de que meu trabalho de desentulhe pregresso não adiantou nada. Há ainda tanto a tirar! Neste último mês, doei livros, vídeos, fitas, enchi várias vezes meu carrinho de feira, que também vou dar, mas só Deus sabe quando, distribui para minha família, para a diarista, e a casa ainda me parece cheia. Num desses fins de semana, joguei fora centenas de slides amarelados e quase imperceptíveis, mas guardei aqueles, em bom estado, onde aparecem meus pais e irmãos, e também amigos queridos, o que resultou em mais de duzentos. Com eles guardei parte importante de meu passado. Rasguei centenas de fotos, depois de separar, meticulosamente, duas caixas com fotos de Ricardo. E ainda dúzias de envelopes com negativos. E máquinas de fotografia que não fotografam mais nada, mas encantaram amigos. Olho para a parte superior de meus armários e sinto arrepios, pois foi lá que joguei considerável parte do que desentulhei na parte de baixo. Vendo “Obsessivos compulsivos” na Sky, quase me sinto um deles. Há um velho cavalinho que tenho desde criança, e um vidro de perfume imitando uma garrafa de champagne dentro de um balde, que ganhei de meu pai, de que não consigo me desfazer. Mas, afinal, estes me trazem boas recordações. E assim, neste lufa-lufa, espero, se Deus me ajudar, conseguir chegar a uma casa clean até o fim do ano.

Neste ano de 2011, acrescentei à minha vida um novo projeto, inspirada no que disse Jean Renoir em seu livro de memórias :”das recordações, só as melhores”. Mas, para conseguir esta outra façanha, preciso dar um sumiço, colocar debaixo do colchão, esconder dentro do armário (?) aquilo que tenho que esquecer. E como tem coisa! Primeiro, parodiando Mariah Carey: “ Não faço mais aniversário. Se alguém me deseja feliz aniversário, eu digo: está falando de quem?” Pois agora vou me fazer de desentendida, olhar para os lados :”Quem?” Para alguém que, como eu, já entrou na contagem regressiva, esta história de números soa mal. Mas é preciso lembrar que a primeira coisa que faço, assim que acordo, é tomar meu Aradois com diurético de 100 miligramas. Quantas saudades dos meus sixties! Preciso também esquecer que teremos quatro anos de Dilma e mais, nem sei quantos, de Lula. E também a qualidade dos membros do novo Congresso, que dizem que é pior do que o anterior! E que um dos chefões das FARC está livre e bem instalado no Brasil, que Battisti está solto e que Tarso Genro, aquele que protege o assassino italiano e entregou os pugilistas ao ditador moribundo, foi eleito Governador, no primeiro turno, do meu querido Rio Grande. Preciso esquecer as cotas raciais, que estão criando no Brasil, onde todos somos mestiços, uma perigosa divisão. E também que foi criado em Brasília um Tribunal Racial, que só existiu na Alemanha nazista! Enfim, há tanta coisa para esquecer, que resolvi mergulhar no desentulhe e talvez assim alcançar uma espécie de amnésia.

Mas depois de limpar tudo que me desagrada ou causa horror, quero lembrar para sempre minha mãe, sentada na sua cadeira de balanço, comigo enroscada em seu colo aconchegante, enquanto balançava suavemente e ouvia rádio. Lembrança tão antiga, que me leva aos primórdios de minha vida. Quero lembrar a voz de meu pai nas manhãs de Natal, quando eu acordava: “Bem, já vou indo.” Eu pulava correndo da cama, mas nunca consegui encontrar Papai Noel. E também, quero lembrar sempre a fúria de minha irmã quando eu mexia nas suas coisas, “brincando de moça”. Quero me lembrar as tardes, quando a doença dava uma trégua, de meu irmão Sérgio lendo-me Monteiro Lobato. Quero lembrar meu primeiro e grande amor, tão grande que o guardei para sempre no fundo de meu coração. Era um mestiço, três anos mais velho, e estudava no mesmo colégio que eu. Apaixonei-me desde o primeiro momento em que o vi. Soube que morreu há anos e senti grande mágoa. E ainda a vozinha rouca de meu neto João, logo após a morte de sua avó paterna: “Vovó Lúcia, agora só ficou você. Você tem que durar muito.” E também dos lanches na casa de Teresa, com café fresquinho. E das festas de Natal e de Réveillon, que ela preparava com tanto esmero. Quero lembrar para sempre os anos felizes que vivi ao lado de Ricardo.

Mas sei que doravante também haverá muita coisa nova na minha vida, que guardarei até o fim como lembranças queridas. Porque a vida é assim, um eterno recomeçar.

E repitindo Piaf: “Je repars à zero”

domingo, 10 de outubro de 2010

O Lula que nós amávamos




Vim de uma família esquerdista. Ou melhor , meu pai ,  como muitos  militares de sua época, acreditou nos ideais marxistas. E mais ainda, que tais ideais eram praticados, de fato, na União Soviética stalinista. Não creio que tenha sido grande sua participação na chamada Intentona Comunista de 1935, mas quando morreu Prestes, minha mãe, já confinada ao leito, disse-me, com naturalidade:” Eu o vi lá em casa quando ia (ou foi)  falar com Felippe.” Fiquei perplexa! Sei que, após o fracasso, talvez temendo problemas maiores, meu pai pensou até em abandonar a carreira, mas foi dissuadido por minha avó, e ,como era aluno brilhante, veio para o Rio cursar Engenharia de Telecomunicações.  Mais tarde,  tornou-se professor do que na época chamava-se Escola Técnica do Exército, e algum tempo depois IME – Instituto Militar de Engenharia. Mas, há muito tempo, Felippe já havia se desiludido de seus ideais de juventude, quando, pouco a pouco, tomou conhecimento do que era, realmente, o stalinismo. No entanto, jamais abandonou os ideais de justiça social e de igualdade. Tornou-se um sincero socialista. Durante o tempo em que moramos na França, interessei-me pela história da Revolução Francesa, e sempre tinha perguntas para ele, que lera muito do que se havia publicado até então. Certa vez, falou-me de sua admiração, na juventude, pelo revolucionário jacobino Saint-Just, temido membro do “Comité de Salut Public”, guilhotinado com todos os outros membros de seu grupo. Lembro-me que disse: “Eu admirei sua fé num ideal que considerava justo, sua coragem, sua honestidade, sua absoluta retidão.”
E foi assim que nos incutiu o ideal de justiça social, de respeito ao próximo e ao seu trabalho, de honestidade e retidão. E guardou estes ideais até o último dia em que ainda teve condições de discorrer sobre a realidade. E a ele sempre agradecerei estes princípios com que tenho procurado nortear minha vida, ainda que, na minha humanidade, algumas vezes eu possa ter resvalado. No meu idealismo exacerbado dos anos 70,  dizia-me que não confiasse tanto nos ideais democráticos dos que se engajavam na guerrilha, que eu considerava heróis, pois provavelmente queriam outra ditadura, pior do que aquela em que vivíamos. Como sincero socialista, tinha grande admiração por Brizola. Felizmente, não teve tempo de se decepcionar. No entanto, o lider do "socialismo moreno" continua vivo e admirável nas minhas crenças profundas. E um dia, ao encontrá-lo no Galeão, não pude deixar de ir cumprimentá-lo e falar-lhe de minha admiração.
Mas quando surgiu um partido chamado dos trabalhadores, fiquei surpreendida, imaginando o que poderia ser um partido formado por trabalhadores. Tolamente, não imaginei que tal partido era formado majoritariamente por intelectuais, engajados na luta contra a ditadura, um partido que pretendia destacar-se pelo amor a um ideal democrático, honestidade, retidão. Aqueles mesmos que fizeram o jovem Felippe admirar Saint-Just. Quando votei pela primeira vez em 1989, optei, evidentemente, por Brizola no primeiro turno. Mas no segundo, emocionada com a posição que havia alcançado um pobre retirante, um modesto operário, cheio de ideais que jamais haviam existido no país, lancei-me numa campanha pessoal.  Vinte e um anos mais jovem, passei de carro, bem devagar,  provocativamente, diante de um comitê colorido com um enorme adesivo “LULA”. Levei uma paulada no meio da cara (bem feito!). Na democracia, temos que respeitar outras opiniões, mas, seguramente, a reação da mulher que festejava a vitória do cafajeste foi a altura do dito cujo.
E durante anos continuei a votar em Lula. Em 2002, Teresa havia feito sua última sessão de quimioterapia, estava sem cabelo, debilitada pelas múltiplas sessões que fora obrigada a fazer. Poderia ser dispensada, mas fez questão de votar. Não votávamos no mesmo lugar e fui encontrá-la em casa, sorridente: ”Acho que desta vez, vamos”. E fomos. E naquele dia 1º. de janeiro de 2003, até mesmo Ricardo, anti-petista ferrenho, se emocionou ao ver o torneiro mecânico ovacionado pelo povo, recebendo a faixa de Presidente. Teresa e eu ríamos, nos abraçamos, e acho que até choramos . Era o Lula da paz e do amor, dos nobres ideais, da honestidade indiscutível.
Que pena que o mensalão não tenha estourado um pouquinho  mais tarde, depois daquele início de primavera, quando Teresa se foi. Como meu pai, ela não teria tido tempo de se decepcionar. E quanto! Na seguinte eleição, em 2007,  quanta sujeira havia sido exposta!  Hoje o que vemos é um autoritário, cuja voz mesmo mudou. Ao vê-lo falar da “Bolsa família” em 2000, revemos com saudades o “Lulinha paz e amor”. O de hoje, com a voz gutural, utilizando, aos berros, palavras tão impróprias para o cargo que ocupa, para defender a mesma Bolsa que condenava há dez anos, matou o primeiro.
Gostaria de guardar, no fundo do meu coração, aquele líder operário corajoso, que respondeu a um militar que lhe perguntara se era comunista: “SOU TORNEIRO MECÂNICO”. Que pena que este tenha morrido!

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Para Teresa

Hoje, início de primavera, faz cinco anos que minha irmã morreu. E ainda sinto um desejo infinito de contar-lhe minhas dúvidas, ouvir sua voz calma, ver seu sorriso. Minha confidente, minha melhor amiga se foi. Tanta coisa vivemos juntas! Recebi o telefonema às seis e meia da manhã, e ouvi de minha sobrinha Antônia a terrível notícia. Na véspera, em uma ambulância, eu a havia acompanhado ao hospital, onde ela ficaria na UTI até que conseguisse (?) vencer a infecção que se alastrara por seu corpo desprovido defesas, devido à quimioterapia. Beijei-a pela última vez, ainda na esperança de que não fosse um adeus definitivo. Três anos e meio haviam decorrido desde aquela tarde em que, após uma cirurgia de sete horas, os médicos entraram no quarto, balançaram a cabeça, e cortaram minha esperança. Mas, durante três anos e meio, vivemos da melhor forma o que eu sabia que ainda restava. Tinha esperança. É ela que salva a gente. Mas meu coração ficava apertado quando a via fazer planos para dali a meses. Teresa estava certa de que havia vencido a doença. Então, a partir do momento em que se constatou a reincidência, as coisas se precipitaram. Um mês, nada mais. Sei que foi melhor assim, e cada dia agradeço a Deus.


Sou uma sobrevivente. Perdi meu pai de uma terrível cardiopatia. E Deus me deu forças para cuidá-lo. Perdi minha mãe, vítima de profunda depressão depois da partida de seu grande amor. Seis anos de sofrimento, confinada a uma cama, decidida a morrer, sem que a morte chegasse. E, mais uma vez, Deus me deu forças para acompanhá-la até o momento derradeiro. Chorei sua partida, mas consolei-me, pois sabia que era sua libertação, aquela que tanto esperava. Cuidei de meu irmão, com problemas psíquicos, e acompanhei-o até o dia de sua morte, um ano e meio depois de minha mãe. Grande dor, uma vida, uma inteligência superior, desperdiçadas. Olho suas fotos de criança, lindo, sorridente. Ninguém jamais imaginaria o que estava por acontecer na adolescência.

Aí, ficamos Teresa e eu, remanescentes. Até aquele dia de início de primavera, quando beijei seu rosto gelado, sentindo meu peito estraçalhado de dor. Foi então que me tornei uma sobrevivente. Mas sei que sou guerreira, que não nasci para me deixar vencer. E continuo amando a vida. Só não tenho mais com quem dividir minhas lembranças, tirar alguma dúvida sobre o passado.

Há quinze dias, Ricardo e eu nos separamos, após vinte e um anos de união. Fizemos aquilo que muita gente não tem coragem de fazer: recomeçar sobre novas bases. Como dizia Vinícius “O amor é eterno enquanto dure.”. Vivemos momentos de intensa felicidade, tivemos nossos arrufos, mas nossa vida foi muito boa. E antes que o amor que acabou se transformasse em hostilidade, dissemos adeus. Mas não me sinto só. Olho meu passado e me sinto orgulhosa de tudo que tive a coragem de enfrentar e fazer. Continuo minha ginástica diária, cuido-me, gosto de mim e por gostar de mim posso viver sozinha e feliz.

E viva a vida porque ela é um dom maravilhoso que Deus nos deu, e eu sei que jamais estarei solitária, porque o terei sempre ao meu lado.

sábado, 18 de setembro de 2010

“HUIS CLOS” no abismo

No rosto do mineiro estampado na capa da “Veja”, há um olhar vazio, como se olhasse para o nada. E olha. Olha para paredes úmidas, frias, escuras. Falta-lhe esperança? Não se pode dizer. Há um vazio que domina toda a foto. Mas o que espera ele, enterrado vivo, com um socorro incerto, a centenas de metros de profundidade? Ele e mais trinta e dois homens, isolados do mundo. Falta-lhes a claridade do sol, seu calor.  Falta-lhes oxigênio, o mínimo de conforto, mas, acima de tudo, falta-lhes liberdade. Este tesouro que nos permite determinar nosso destino, que nos faz humanos. Quanto desejo deve haver de dizer a uma mulher amada “Eu te amo”, de acariciar um filho, de abraçar o pai, mãe, um amigo, de lutar por um projeto. De pedir perdão.  
Ao ver aquele rosto, solitário, com mais trinta e dois, lembrei-me da peça de Jean-Paul Sartre, “Huis Clos”. Li-a várias vezes, mas na generosidade de emprestar livros, o perdi. No entanto, até hoje ainda está gravada na minha memória. Numa sala, são confinadas três pessoas, três mortos que acabam de chegar ao inferno: Inès, Estelle e Garcin. Neste inferno não há espelhos, nem janelas, a luz nunca se apaga.  Uma porta se abre e fecha à sucessiva entrada de cada morto. Até que se fecha definitivamente e eles se vêem confrontados uns com os outros. Não há fogo, nem tridente, nem diabo. Cada um deles finge não saber por que está lá, até que não resistem e contam a verdade. Inès é uma lésbica, que ajudou a matar o marido de uma prima, e matou-se em seguida levando ao suicídio a amante. Garcin é desertor, e foi fuzilado. Durante anos torturou a mulher com suas amantes. Inés matou o próprio filho, produto de um amor proibido. Não me lembro bem, mas acho que levou o amante ao suicídio. Olham-se o tempo todo já que não podem fechar os olhos, e acabam odiando-se. Estelle, vaidosa, quer se olhar em algum espelho, mas só lhe resta o espelho dos olhos de Inès, e ao olhá-la, sente sua culpa estampada nos olhos da outra. “O inferno são os outros”. Sartre fazia questão de assinalar que sua frase não significa que as relações humanas são tão dolorosas, mas que situações limite levam a este inferno. Mortos, nada podem mudar. Como os mineiros do abismo.
 Estelle, Inès, Garcin, precederam décadas aqueles mortos-vivos. Mas quantas vezes, vivos, não experimentamos situações, solitários com quem nos acompanha, engessados, abrindo mão de nossa liberdade?
O que será desses pobres homens, confinados a uma estreita sala, olhando-se uns aos outros, infinitamente, na semi-escuridão que os cerca? Já não se fala neles, os esquecemos como esquecemos tantas outras tragédias. Até um dia em que verão novamente a luz do sol, ou sucumbirão seja por razões físicas ou porque o inferno dos outros se tornou grande demais    

segunda-feira, 12 de julho de 2010

A ESTONTEANTE E A REBOLANTE

Criei um novo blog
“hppt://wwwbelezaefundamental.blogspot.com/”,

onde pretendo falar de mulheres, e também de homens, que deixaram, ou deixarão, sua marca na história, por sua beleza e/ou inteligência.  Meu interesse, e todos aqueles que me conhecem já sabem de antemão, não é exaltar beldades. Beldades se esvaem quando não há mais nada que as marque.  Todos nós, feios, bonitos, estúpidos ou inteligentes, temos o nosso tempo, que o próprio tempo consome, e, como no filme “Gangues de Nova Iorque”, somos pouco a pouco engolidos pelo mato ou pelas torres. E desaparecemos logo que aqueles que nos conheceram também cumprem seu tempo.
Como introdução ao meu novo blog, onde coloquei a linda foto de Marylin Monroe nua, não poderia deixar de falar de um fenômeno que explodiu há cerca de cinqüenta anos: a democratizão da beleza, da elegância, dos embelezadores, do prêt-à-porter, fenômeno que considero importantíssimo, já que permite a todos nós conservar nossa auto-estima, ainda que a esquerda radical considere tudo isso ridículo, como achava meu antigo namorado Robert, que, aliás, tenho certeza, mudou seus conceitos. A este respeito, escrevi, em 2008, um texto: “Feios e fedorentos”. Falar da “Explosão da beleza” nos remete a um mundo onde todos nós podemos nos cuidar, e nos gostar. Mas também podemos ressaltar que no mundo contemporâneo temos acesso a um conhecimento que até bem pouco tempo era inaccessível aos que chamávamos de “excluídos”. Ainda não chegamos a todos, há muita miséria e ignorância, mas não resta dúvida que, pela evolução da tecnologia em qualquer setor, há muito mais gente “incluída”. E certamente não por obra do governo Lula.
Mas não é para falar mal deste governo, de minhas decepções, de meus sonhos perdidos, que escrevo hoje: quero falar de pornografia. Amigos, sentiram-se surpresos, constrangidos, ofendidos? Que pena! Vocês ainda não perceberam que basta abrir um jornal, uma revista, assistir a um telejornal, e lá está ela, esfregando na cara da gente despudor, mau-cheiro, feiúra, mau-hálito, e muito mais coisa que por uma questão de respeito não colocarei aqui.
Foi uma leitura desastrosa do cristianismo, durante a Idade Média, que colocou como pecado tudo que se refere ao corpo e ao prazer, que só foi retomado na Renascença. Lembro-me de que, quando trabalhava num grupo de estudos sobre a civilização francesa, lemos um livro fantástico “Le plaisir au Moyen Âge”. Já começa com São Paulo, que não admite o prazer, mas tem consciência que sem ele não poderá haver reprodução. Discute-se longamente, e hilariamente,  como se reproduzir sem pecado. Posteriormente, sem conseguir resolver o problema, aconselha-se ao casal a fazê-lo castamente, devendo a mulher, durante o ato sexual, recitar para seu parceiro orações que possam absolvê-los do pecado que estão cometendo.  Estupefaciente, não acham? E é interessante lembrar-se de um monge, Roger de Caen, que, em 1095, escreve: “Não ame nada que dê prazer aos sentidos, pois o que encanta a carne prejudica o espírito; as alegrias do mundo engendram sofrimentos eternos...” E Santo Estevão (morto em 1190) que, entrando para o sacerdócio, troca o riso, a alegria e a despreocupação pela angústia e tristeza. Troca igualmente suas vestimentas confortáveis por silício e o usa constantemente em contato direto com a carne. Somente se alimenta de pão e água regados por suas lágrimas, e durante o inverno, quando o gelo recobre os lagos, introduz-se na água até que seu corpo esteja totalmente enregelado. E há ainda outras crueldades praticadas contra si mesmo. Enfim, submete seu corpo a um total aniquilamento seja pelo frio ou pela fome. E em nome de Cristo! Quanto a queimar gente na fogueira... são hereges! Lendo tudo isto, tenho a convicção de que foi assim que desenvolvemos a vergonha do corpo, e, apesar de tantos séculos passados, aí estão as religiões, dando cobertura a esta anomalia.  Logo, como já disse, para muita gente é preciso fechar os olhos para a obra dos mestres da Renascença, e considerar a foto de Marilyn nua imoral (!) (Não me canso de repetir esta burrice)
Imoral é Fidel, aquele da Coréia do Norte, Armadinejad ( e olhe que não tenho especial simpatia pelo Estado de Israel), que executam os opositores. Imoral é Tarso Genro que entregou ao ditador os pugilistas cubanos que queriam uma vida melhor e nos mentiu que haviam partido porque estavam com saudades de casa. Imoral é Chavez,  e já me cansei de falar nisso. Imoral é Putin, que destruiu a cidade de Grosny, deixando na orfandade milhares de crianças, algumas das quais barbaramente estupradas por soldados russos. Sobre esta tragédia vi cenas chocantes no filme “Os órfãos de Grosny”.   Imoral é achar normal ser ladrão, como ouvi há alguns dias de uma pessoa que se diz ilustrada: “Roubar, todo mundo rouba.”  Imoral é ser Geddel Viera Lima, que utilizou na sua Bahia natal 67%  da verba destinada a socorrer vítimas de catástrofes, sendo que ao Estado só coube cerca de 10%.  E já podemos imaginar o que fez com o restante. E mais imoral ainda é o Presidente que não o demite, porque afinal Geddel é da base aliada e conta votos. 


O que acharam da dança do elefante – Angela Guadagnin-, festejando a absolvição de um mensaleiro? Pura pornografia, felizmente punida pelos eleitores.

terça-feira, 22 de junho de 2010

BELEZA É FUNDAMENTAL


Coloquei no novo blog “Beleza é fundamental”, uma foto que mostra uma das mais belas mulheres deste mundo, em geral habitado por gente feia. Linda, sensual, e com aquele ar ingênuo, de menina meio perdida no mundo mau. A foto foi tirada, creio eu, em 1947, quando ela tinha apenas vinte e um anos. Era uma moça pobre, filha de mãe esquizofrênica, abandonada pelo pai e criada num orfanato. Ao sair, dizem, foi adotada por uma família pobre, que, tendo se mudado de cidade, não pode levar consigo a mocinha. Em 1942, Norma Jean, seu nome verdadeiro, resolveu casar-se com seu namorado de algum tempo, por quem, parece, estava apaixonada e que a livraria do orfanato. Tendo o marido sido convocado em 1944, Norma Jean passou a trabalhar numa fabrica onde foi vista por um fotógrafo que percebeu o potencial incrível daquela mocinha e contratou-a para posar. Daí pra frente, com os cabelos louros, e já rebatizada Marilyn Monroe, teve que escolher entre a carreira e o casamento. Divorciou-se em 1946. Parece que foi no ano seguinte que posou para a foto que coloquei para ilustrar o blog e que, passados mais de sessenta anos, ainda é considerada uma das mais belas, senão a mais bela foto de nu feminino.

Marilyn, a menina pobre, bastarda, filha de mãe esquizofrênica, criada num orfanato, tornou-se a mulher mais famosa do século XX. Marilyn, que, quase cinqüenta anos após sua morte, ainda encanta, e faz sonhar. E provoca inveja em outras mulheres que sonham em ser tão lindas quanto ela. Marilyn, que morreu solitária , talvez tentando salvar-se, com a mão estendida em direção ao telefone.

Conto tudo isto, já que, parece, a beleza desta nudez singela, singela como a nudez exposta pelos mestres Renascentista, pareceu pornográfica (!) a gente que vive no século XXI (!), que já deve ter visto, ainda que seja de passagem, algum quadro dos grandes gênios. O que dizer, então, do David de Michelangelo, exibindo sua virilidade no seu órgão másculo exposto? E a arte grega? E a romana? Ora, para mim pouco importa o que digam alguns ou algumas invejosas e ignorantes. Marilyn, naquela foto, é a Venus de Boticelli, que emerge nua das águas, e que nunca, ninguém poderá apagar. Marilyn, deusa da beleza, que durante pouco anos, infelizmente, encantou o mundo, é a Venus do século XX, sem silicone, sem lipo, sem ginástica, sem photoshop. Esta mulher jamais poderá ser considerada pornográfica, e sua foto esplendorosa, mostrando toda sua nudez, para sempre ilustrará o que se quiser falar de beleza.

Para ela, escreveu este lindo poema, Ernesto Cardenal, poeta, religioso e revolucionário nicaragense

Oração para Marilyn Monroe


Senhor

recebe esta moça conhecida em toda a terra pelo nome de Marilyn Monroe
ainda que este não seja o seu nome verdadeiro
(mas Tu conheces o seu nome verdadeiro, o da pequena orfã).
violentada aos 9 anos,
a empregadinha de loja que quis se matar aos 16
e agora se apresenta diante de Ti sem nenhuma maquilagem
Sem seu Agente de Imprensa
Sem fotógrafos e sem assinar autógrafos
sozinha como um astronauta diante da noite espacial.
Ela sonhou quando menina que estava nua em uma igreja
(de acordo com a Time)
diante de uma multidão prostrada, com as cabeças no chão
e tinha que caminhar na ponta dos pés para não pisar nas cabeças.
Tu conheces nossos sonhos melhor que os psiquiatras.
Igreja, casa, cova, são a segurança do seio materno
mas também é mais que isso.

As cabeças são os admiradores, é claro
(a massa de cabeças na escuridão debaixo de um jorro de luz).
Porém o templo não são os estúdios da 20th Century Fox
que fizeram de Tua casa de oração um covil de ladrões.

Senhor
neste mundo contaminado de pecados e radioatividade
Tu não culparás apenas uma empregadinha de loja.
Que como toda empregadinha de loja sonhou ser estrela de cinema.
E o sonho foi realidade (mas como a realidade do technicolor).
Ela apenas representou de acordo com o script que lhe demos
--O de nossas próprias vidas-- E era um script absurdo.
Perdoa-lhe Senhor e nos perdoa
por nossa 20th Century
por esta Colossal Super Produção em que todos trabalhamos
Ela tinha fome de amor e oferecemos tranqüilizantes.
Pela tristeza de não sermos santos
recomendamos a Psicanálise.

Lembra-Te Senhor do seu crescente pavor da câmara
E seu ódio à maquilagem – insistindo em maquilar-se a cada cena –
e como se foi fazendo maior o horror
e maior a impontualidade nos estúdios.

Como toda empregadinha de loja
sonhou ser estrela de cinema.
E sua vida foi irreal quanto um sonho que um psiquiatra interpreta e arquiva.

Seus romances foram um beijo com os olhos fechados
que quando se abrem os olhos
descobrem-se embaixo de refletores
e os refletores se apagam.

E as duas paredes do quarto se desmontam (eram um set de cinema)
enquanto o Diretor se afasta com suas anotações
porque a cena já foi rodada.
Ou como uma viagem de iate, um beijo em Singapura, um baile no Rio
a recepção na mansão do Duque e da Duquesa de Windsor
vistas da sala do apartamento miserável.
O filme acabou sem o beijo final.
Acharam-na morta em sua cama com a mão ao telefone
E os detetives não souberam a quem ia chamar.
Foi
como alguém que discou o número da única voz amiga
e ouve apenas a voz de uma gravação dizendo: WRONG NUMBER
Ou como alguém que ferido pelos gangsters
estende a mão para um telefone desligado.
Senhor
quem quer que tenha sido a quem ela chamava
e não chamou (talvez ninguém
ou era Alguém cujo número não se encontra na Lista de Los Angeles)
atende Tu ao telefone.


quarta-feira, 16 de junho de 2010

Deus e o Diabo

“Deus, para a felicidade do homem, inventou a fé e o amor. O Diabo, invejoso, fez o homem confundir fé com religião e amor com casamento.” 


“Será que todas estas moças estão se casando com imbecis?” O meu azar é que morávamos defronte a uma grande igreja, onde aos sábados os casamentos se sucediam, com lindas noivas, em lindos vestidos brancos, exibindo sua virgindade (que nesta época era pra valer). Nunca entramos num acordo meu pai e eu. Militar, engenheiro, gaúcho macho da fronteira, Felippe, jamais entendeu que um dos maiores beneficiados era ele mesmo. Tentei fazê-lo entender que amor e casamento não tinham nada a ver e que ao não ligar para este ato burocrático, eu o estava ajudando a fazer uma imensa economia, que poderia ser gasta em coisas mais interessantes, como uma viagem a Paris.

Afinal, eu era filha de um General, e, logo, meu casamento não poderia ser qualquer coisinha. Imagino que naquele tempo poderiam dizer que eu me casava grávida, coisa horrível, ou, menos horrível, que meu pai era um sovina. Vejamos então os gastos, sempre altos, para a patente de uma filha de General. Primeiro, havia o célebre enxoval, que, tenho certeza interessaria à maioria de minhas amigas da época, todas antenadas no “desencalhe”. Milhões de toalhinhas inúteis, toalhas, colchas, mantas, enfim um arsenal capaz de cobrir um batalhão. Quem sabe até me fosse cobrada uma exposição? E o vestido de noiva, que deveria ser lindo, como o das moças que me eram mostradas como modelos. E havia ainda a grinalda, o buquê, sapatos especiais. Sem esquecer o véu. E a ornamentação da igreja. E as roupinhas da daminha, que certamente seria Ludmila, minha sobrinha, que odiaria esta função e também, certamente, a roupinha. E haveria também a roupa da mãe da noiva, e a do pai. E se não houvesse festa, muita gente se consideraria ultrajada, e sairia falando cobras e lagartos. Se houvesse, idem. E como tínhamos, meu pai e eu, uma profunda incompatibilidade quanto aos meus pretendentes, este item sempre foi supérfluo.

E pasmem, Felippe odiava todas estas solenidades, e só se casara no civil. E ainda por cima, era agnóstico, ou ateu, não sei bem. Meu pai, pena, foi vítima do “politicamente correto”, em que uma moça deve casar. Como diz Simone de Beauvoir, no seu inigualável “Segundo sexo”, as mulheres casadas gozam de maior prestígio do que as solteiras. Ele sabia disso e talvez temesse me deixar trilhar meu próprio caminho, como eu pretendia fazer, e fiz. O livro foi escrito em 1947, mas ainda hoje persiste na cabeça de muita gente esta crença profunda, que, por ser crença, é quase inextirpável.

Rompi, e espero haver rompido, de fato, com todo tipo de preconceito. Orgulho-me em dizer que tinha um bisavô mulato, uma avó cabrocha, que não sou casada, e pretendo nunca me casar, mas que vivo com o homem que escolhi livremente. E que temos uma relação absoluta igualitária, onde dividimos deveres, despesas e, evidentemente, prazeres. Que tenho queridos amigos homossexuais. Meu último rompimento com o que não me diz respeito aconteceu quando perdi minha única irmã, último membro de minha família original. Com meus sobrinhos, decidimos que não havia necessidade de “missa de sétimo dia”. Reunimos amigos, alguns deles religiosos, falamos do que significa esta dolorosa separação, a morte, que nos aguarda a todos. Li um texto em sua homenagem, onde falava de minha dor e saudade. Mas também rimos nos lembrando de bons momentos vividos juntos, e até fizemos um lanche preparado por suas filhas e noras. Porque eu sabia que Teresa estava bem, e está. Talvez conosco naquele momento, também recordando. Porque tenho fé. Fé que me segurou nos momentos de dor por que todos nós passamos e que me dará forças até o final.

Mas sem religião. Nem casamento.
A frase acima é de Machado de Assis, mas disse-me um amigo que se inspirou em Shakespeare.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Cidadania

Resolvi divulgar minha defesa, já que, como cidadã que paga seus impostos e jamais cometeu ato delituoso, senti-me profundamente agredida. Na minha consciência de cidadania, tenho feito a defesa de minha comunidade, sem temor de expor minha cabeça, como no caso do abaixo-assinado que fiz correr pelo bairro. Naquela ocasião levei pessoalmente a moradores e comerciantes o texto por mim elaborado, em que denunciava a presença ostensiva de traficantes na pracinha, nas barbas do Posto Policial, aliciando crianças como “aviões” e chegando ao ponto de pesar a droga nas balanças de uma padaria. Recebi respostas interessantes, de gente medrosa, como a do tipo que me veio me falar no golpe de 64, no PT, fazendo a apologia deste partido. Respondi-lhe que não se tratava de uma questão político-partidária, mas sim da defesa de nossas crianças e de nós mesmos. Ele, evidentemente, recusou-se a assinar. 
O ano era 1997. Tendo conseguido certo volume de assinaturas, enviei, através de pessoas que tinham acesso a estas autoridades, ao Prefeito de então – Tarcísio Delgado – e também ao Comandante da Polícia Militar e ao Delegado Chefe da Polícia Civil. Jamais recebi resposta de ninguém. Mas não temi expor minha cabeça. E me orgulho disso.

“Minha defesa”

Quero esclarecer, antes de tudo, que não há o que defender na minha conduta e que, como cidadã, sinto-me profundamente indignada com o constrangimento a que fui submetida. Estava eu em casa, no dia 28 de abril do corrente ano, quando, ao atender ao interfone, fui informada por alguém que se dizia Fiscal da Prefeitura –Sr. Carlos Roberto Mazola (conforme documento anexo) - e que me dizia que um documento meu havia sido achado no lixo, o que me deixou assustada e perplexa, já que sou pessoa extremamente cuidadosa. Desci então à garagem, onde havia pedido ao citado Fiscal que me esperasse, pois não tendo constatado falta de nenhum documento, pensei poder tratar-se de golpe para penetrar em minha casa. Assim, ao encontrá-lo, acompanhado de outro Fiscal, mostrou-me um pedaço de papel rasgado com meu nome e endereço. Expliquei-lhe tratar-se de um informe de uma ONG internacional – Action Aids – ( e não de um documento meu) que ajuda crianças carentes. E que meu nome e endereço estavam impressos por tratar-se de correspondência. Expliquei ainda que de fato eu o rasgara e jogara no LIXO SECO, tendo entregue ao catador Joaquim, todo material reciclável devidamente acondicionado em sacolas plásticas. E ainda mais, que meu lixo seco é lavado, quando se trata de quentinhas ou garrafas, que pertenço ao Green Peace, que, aliás, ele me pareceu desconhecer. Invoquei o testemunho do porteiro – Carlos Antônio - e expliquei-lhe que simplesmente o catador Joaquim, conhecido em todo bairro de São Mateus, havia deixado escapar, no monte de material reciclável que junta e organiza, aquele pedacinho de papel. Irredutível, agindo de forma totalmente irracional, o citado funcionário da Prefeitura de Juiz de Fora, lavrou o auto de infração. Sendo que assinala um “horário de flagrante”, o que jamais poderia fazer já que nem ele nem ninguém me viu jogar o pedaço de papel no chão, “sujando” a via pública. 
Insurjo-me contra este ato autoritário, em que um funcionário do poder público constrange e tenta punir um cidadão, tratando-o arbitrariamente como autor de ato delituoso. E creio que atitudes como esta não só revoltam, mas ainda dão do governo municipal uma imagem de incompetência e autoritarismo. 
Não tendo nada mais a acrescentar, termino aqui “minha defesa” sugerindo à Secretaria de Política Urbana que dê uma vistoria na Praça Jarbas de Lery Santos, onde sujeira, folhas secas e galhos podres se amontoam. 

sábado, 1 de maio de 2010

“La cantatrice chauve” em Juiz de Fora

Durante alguns anos, na Universidade Federal de Juiz de Fora, tive em atividade um grupo de teatro em francês “Théâtre Gavroche”, ao qual mais tarde se incorporou minha colega Walquíria. E uma das peças que encenamos chamava-se “Scène à quatre”. Foi assim, durante as leituras e os ensaios, que pudemos conhecer o extraordinário Ionesco e divulgá-lo aos que vinham nos assistir.

Engène Ionesco (1909 – 1994) é um dramaturgo franco-romeno que expõe em sua obra a incomunicabilidade entre os homens, a irracionalidade e a fragilidade nas relações humanas. Foi, juntamente com Samuel Beckett, autor do extraordinário “En attendant Godot” (“Esperando Godot”), um dos criadores do “Teatro do absurdo”. Coube a estes geniais escritores tornar explícito o que nos ocorre diariamente, sem nos darmos conta. E uma de suas peças – “La cantatrice chauve” (“A cantora careca”), de 1950, é apresentada em Paris, no Théâtre de La Huchette, desde 1957. Conta-se que se inspirou num método de ensino de inglês, onde frases desconexas se amontoavam com o exclusivo fim de ensinar estruturas gramaticais. Aliás, lembro-me de meus primeiros anos de ensino de francês (é claro que em 1950 eu não podia ser professora de nada!), lá pelos anos 70, em que nos debatíamos ainda com textos totalmente incoerentes, dentro dos padrões ditos “estruturais” do ensino de línguas. No caso da “Cantatrice Chauve”, dois casais, uma empregada e um bombeiro, que não se sabe como veio parar na peça, debatem absurdos. Ou, como repetem seus personagens, “parler pour ne rien dire”.

Mas, afinal, não é minha intenção discorrer sobre a obra, de que, confesso, nem me lembrava mais. Retomei-a, assim como tudo que conheço de Ionesco, graças à Secretaria de Política Urbana da Prefeitura de Juiz de Fora, através da “Lei municipal 11.197/06 arts 9º. -1,10º. – I e II, 88, 105-I, 108 parágrafo 3º. Decreto Municipal 9117/07 arts. 11,21parágrafo 1º., 3º. e 7º. , 22-III parágrafo único”. Só de ler este amontoado de palavras desconexas, eu, cidadã comum, sinto-me ameaçada e imagino quantos crimes deva ter cometido sem saber. E o pior, qual será minha pena?
Mas vamos ver como começou este teatro ionesquiano. Eram três horas da tarde, eu estava me acomodando para ler “Os anos loucos – Paris na década de 1920”, que Ricardo me presenteou. Já havia começado e estava ansiosa para prosseguir. Tilinha, nossa cadelinha, já estava deitada ao meu lado na poltrona, e Charmoso, nosso vira-lata, deitadinho na sua almofada. O gato Boris havia chegado, dado uma olhadinha e chispado para nossa cama, seu lugar predileto. Eu estava colocando os óculos e pensando que às quatro horas iria passar um café e comer um pãozinho prensado, que acho delicioso. Enfim, anunciava-se uma tarde muito agradável. De repente, ouço o interfone – Quem será? Atendo e mantenho o seguinte diálogo:


- Boa tarde. Eu queria falar com dona Maria Lúcia Viana.
- Sou eu.
- Sou da Fiscalização da Prefeitura e um documento seu foi achado no lixo.
Levo um susto imenso!
- Como? Um documento meu no lixo???!!!! (E já me imagino correndo de uma central burocrática para outra em busca de novos documentos. E o meu CPF, que vale mais do que minha vida? Por sorte, tenho identidade do Ministério do Exército, onde a burocracia é menor. Será? Tudo isto me passa pela cabeça enquanto corro desorientada em busca de minha bolsa – Onde a deixei? – E nestas horas, a gente nunca sabe onde deixou as coisas! Finalmente a encontro, busco a carteira onde guardo os documentos, verifico , torno a verificar. Está tudo ali. Mas então o que foi? Vem- me à mente, com terror, que talvez tenha deixado cair o meu DARF, aquele do monstruoso Imposto de Renda. Mas tenho certeza de que o guardei, lá em cima no armário. Tudo isto se passa num espaço de alguns poucos minutos. Volto correndo para o interfone e resolvo colocar a razão para funcionar)



- Olha, moço. Vou descer. Não estou entendendo. Espere-me na garagem.
- Por favor, traga um documento, preferencialmente o CPF. 

Desço, imaginando alguma coisa ruim. Encontro, então, dois homens paramentados com coletes, tendo escrito nas costas em letras garrafais “FISCALIZAÇÃO – PREFEITURA DE JUIZ DE FORA”. O porteiro, meu amigo de muitos anos, sorri com o canto da boca, daquele jeito que só mineiro sabe fazer.

-Dona Lúcia, eu expliquei o que aconteceu, mas o homem não aceita.
Foi, então, que o absurdo me foi mostrado. O sujeito tinha nas mãos, entre outros papéis rasgados, um pedaço de um informe que recebo regularmente de uma entidade internacional de ajuda a crianças carentes para a qual contribuo. É evidente que deveriam colocar meu nome e endereço para que eu pudesse receber! Quando rasguei e joguei no LIXO SECO, ficaram intactos justamente este dois dados. E era este o “documento” meu que haviam achado no lixo!!!!! E eu estava sendo multada em “auto de infração” por sujar a rua!

Tentei esclarecer que sou uma disciplinada fanática, que meu lixo seco, é seco mesmo, que sirvo de motivo de chacota para toda a família, já que lavo quentinhas e garrafas, que acondiciono tudo caprichosamente, e entrego pessoalmente ao catador. Contei-lhe que carrego sempre sacolinhas de plástico – estou procurando as ecológicas – para recolher as fezes de meus cachorros, e que ensino isto aos meus netinhos, assim como o que se refere ao lixo seco. Que o catador, freguês meu há anos, havia deixado escapar aquele pedacinho de papel. Que faço parte do Green Peace (que ele nem deve saber o que é). Argumentei, tentei expor minhas ideais acerca de meus deveres de cidadã. Sugeri-lhe que desse a volta e olhasse a praça onde moro, onde a sujeira se acumula há vários dias. O bocó permaneceu intransigente, sempre me repetindo que eu havia violado uma lei municipal. Perplexa, abandonei toda argumentação, e só depois me lembrei de que, como não havia tido flagrante, já ninguém me vira “jogar o documento na rua”, “sujando-a”, eu não poderia ser indiciada. Afinal não é assim que age a justiça brasileira?

A descrição de minha infração é a seguinte:

Por depositar lixo e/ou resíduo em via pública fora do horário estabelecido pelo DEMLURB” 
Há ainda o local do flagrante (?), “no endereço acima citado, próximo à polícia, posto de polícia.” E também a data do “flagrante” e o “horário”. Mas como ele pode saber se ninguém me viu cometer o delito? 

Abaixo ele assinalou entre outras opções “Fica ciente que deverá apresentar defesa (!!!) no prazo de 10 dias do recebimento deste ato.”

Assinei o documento – eu estava transtornada – e perguntei-lhe se deveria ser acompanhada de advogado. Negou. Mas meu advogado vai comigo. O mais engraçado é que o bocó que o acompanhava, também devidamente paramentado, segurava uma porção de talões de débito automático, todos amassados. Tive vontade de perguntar como iriam descobrir os autores do delito, mas já estava de saco cheio. Meu livro delicioso ficara aberto sobre a poltrona, meu cafezinho esvaiu-se naquele absurdo em que a Prefeitura de Juiz de Fora me afogou, minha tarde gostosa havia ido pelos ares. Antes de subir, já a caminho do elevador disse-lhe:

- E eu que votei nesse cara! Antes tivesse votada na opositora, colega minha de tantos anos, mas que é do PT! Bem feito para mim!

Subi, telefonei para Ricardo e combinamos um cafezinho no Shopping. Mostrei-lhe o documento. Estourou de rir “Justo você!”. E é isto que tenho ouvido de toda minha família desde aquele dia 28 de abril.
No dia seguinte encontrei Joaquim, o catador, contei-lhe a história. Atônito, comentou:

- E logo quem!
Mas, com a seriedade que a situação merece, o adverti:

- Olha, Joaquim, e se eu for presa, você vai comigo!

Ontem de manhã, quando voltava da ginástica, encontrei-o catando minuciosamente no chão tudo que encontrava. E havia até uma vassoura novinha.

O que me aconteceu expõe claramente o país patrimonialista, onde os “donos do poder” e seus acólitos consideram o cidadão simples objeto, cuja função é servir aos seus interesses.

Não sei qual será minha pena, mas quem sabe será semelhante à da bruxa que torturou a criancinha de dois anos? E ainda ontem , quando Ricardo voltava de seu passeio com Charmoso, Joaquim, aproximou-se e disse com convicção:

- Professor, está tudo errado! Tudo errado!

É verdade, Joaquim, você definiu bem o país: está tudo errado. E desde o princípio.

Pena que Ionesco e Beckett não estejam mais aqui!

sábado, 27 de março de 2010

La buena y la mala educacion

Nestes dias em que assisto ao fim de vida de uma mulher, lembrei-me do filme de Almodavar intitulado “La mala educacion”. A obra do espanhol só vem ao caso pelo título. Na verdade, Almodovar não é dos meus cineastas prediletos, mas tem o mérito de por a nu, sem escrúpulos, com absoluta “mala educacion”, tudo aquilo que a “boa sociedade” joga para baixo do tapete. E poucos têm a coragem de fazê-lo.

Mas, para começar, falemos um pouco do que poderia significar “La buena educacion”, que acho resultaria num filme muito interessante. Simone de Beauvoir já havia falado desta boa educação no seu livro “Mémoires d´une fille rangée”, onde conta sua vida e a educação que quiseram lhe impor. Conta sua infância, adolescência e o início de suas indagações, sua vida universitária, e a transformação definitiva ao encontrar Sartre. Trata-se de obra de uma grande intelectual, onde sua visão crítica do mundo que a cerca impressionou-me imensamente, assim como seu magistral “Le Deuxième Sexe”.
Estas obras me trouxeram muitas outras indagações, além das que já tinha, e novos conceitos que substituíram muitos dos que me haviam sido incutidos desde muito cedo. São as minhas metamorfoses, que fizeram de mim o que sou hoje. Mas, enfim, o que pretendo é fazer aqui algumas observações corriqueiras, ou talvez divagações, sobre aquilo de que não se falou: “La buena educacion”. E por que não também sobre a “mala”?

Afinal, o que é uma “jeune fille rangée”, ou a mulher, neste caso não importa a idade, provida de “buena educacion” ? E aí sou obrigada a retomar velhos chavões, que mesmo que hajam desaparecido do vocabulário da maioria das pessoas, ainda fazem parte das crenças profundas de muita gente. E logo me vem à mente aquela mulher que, coitada, não foi escolhida (seguramente porque tem algum defeito), e por isso não se casou, e assim sendo deve morrer “moça”. Ao pensar nela, na “buena educacion” , vejo claramente aquela que jamais se “perdeu” , a pobrezinha a quem nenhum homem “fez mal” . E morreu virgem. E ao cogitar da “buena educacion” , não há como impedir que me venha à memória minhas colegas de Faculdade, sem nenhum projeto profissional, que disputavam o mais belo enxoval! Será que isto ainda existe? ...enxoval?

Uma mulher bem educada, jovem ou não, pouco importa, tem algumas regras a seguir, ainda que isto lhe custe a felicidade e a vida. A “buena educacion” , humilha, mata, destrói, corrompe. A “buena educacion” me faz pensar em mulheres traídas, que não quiseram tomar seu próprio rumo, porque isto lhes exigiria um esforço, e, talvez, um compromisso que não se sentiam capazes de assumir, ainda que o fossem. A “buena educacion” faz-me lembrar de uma eterna criança, prima de minha mãe, e seu marido, que, gravemente doente, adotou uma menininha para que cuidasse da mãe na velhice, sendo a própria considerada incapaz para fazê-lo. O trágico é que esta “menininha” foi a grande causadora de sua morte.

Ao pensar na “buena educacion” , lembrei-me de histórias de mulheres que desenvolveram doenças graves, e morreram, afogadas na infelicidade de casamentos mal-sucedidos e filhos egoístas. Mulheres que deram a vida e tão pouco receberam em troca. Mas jamais disseram um palavrão, nem tiveram a coragem de enxotar de casa gente que as atormentava. Afinal “mulheres educadas” não podem buscar a felicidade. Mulheres educadas afogam suas mágoas com outras mulheres educadas, e, sem queixas, deixam a vida levá-las. Mulheres vítimas da “buena educacion” passam pela vida sem cogitar delas próprias, são boas mães, boas esposas, sacos de pancadas para todos.

Desde bem jovem, comecei a colocar em questão esta “buena educacion” e a cogitar da “mala” . É verdade que tive sempre a consciência de que tudo dependia de minha independência econômica, o que conquistei graças ao meu esforço, e me orgulho disso. Não fiz alarde de meus conceitos, levei meus pais, já velhos, para temporadas em estações de águas, mas não adotei jamais os princípios de uma menina bem comportada.
Minha “mala educacion” me permitiu chutar a dicotomia "moça/mulher" , “livre/escrava” (Quantas vezes ouvi dizer que fulana era uma mulher livre?) , "casada/encalhada" , "perdida/achada(?)" , "mulher da vida/mulher da morte (!)" , e alguns outros de que não me lembro. Contou-me meu mastologista – sou do grupo de risco já que minha mãe teve câncer de mama- que a maioria das mulheres que opera de câncer, sofreu desilusão amorosa ou foi abandonada. Ao que retruquei que há também aquelas cujos maridos trazem para elas a doença. E alguém já ouviu falar de algum marido traído, ou abandonado, que tenha desenvolvido, pela mágoa, câncer de próstata? Maridos traídos ou abandonados – em geral por maus-tratos às mulheres – muitas vezes resolvem o problema na base do tiro na cabeça. Da mulher.

Minha “mala educacion” me fez ficar “encalhada” aos olhos das mulheres de “buena educacion” até bem tarde. Mas me permitiu cultivar paixões, efêmeras, mas saborosas, o que moças bem-educadas não puderam fazer. Minha “mala educacion” me permite ainda hoje usar roupas colantes ao fazer minha ginástica diária, apesar dos meus muitos anos vividos, almoçar em restaurante diferente de meu companheiro, já que sou vegetariana, viajar quando quiser, ter minhas próprias opiniões. E, acho eu, ajudou-me a encontrar o amor, de alguém que se cansara, bem mais tarde do que eu, de moças bem-comportadas. Minha “mala educacion” me tira do célebre “grupo de risco”, me faz livre, e feliz, porque, afinal, não há bem maior do que a liberdade. E isto meu ginecologista, que me apresenta números, não sabe. E sei que somente a vontade de Deus poderá determinar o que virá.

A mulher que vejo, com sincero pesar, viver seus últimos dias, viveu todos os outros com seu exemplar comportamento. Deixará saudades, muitas. Haverá muita dor. Mas será que valeu a pena não ter tido um dia, pelo menos, de “mala educacion” ?

quarta-feira, 17 de março de 2010

Pegadas do passado

“Eu sonhei que tu estavas tão linda.
Numa festa de raro esplendor.
Teu vestido de baile, lembro ainda
Era branco, todo branco, meu amor
.................................................."

Voltei ao meu passado mais remoto. A primeira imagem que me veio à mente foi de minha avó Joana. E logo surgiu minha mãe, a pequena luz da máquina de costura acessa, pedalando ao som do rádio. Quem sabe aquela mesma canção, na voz poderosa de Carlos Galhardo.

Estávamos, Ricardo e eu, jantando em Tiradentes, à luz de velas, comemorando um dos meus tantos e tantos anos vividos. De repente uma dupla de músicos, violão e bandolim, entrou, e então ouvi esta canção. E com ela abri o arquivo de minha história.

Minha história... Cheguei àquele momento da vida em que começamos a rememorar, a trazer de muito longe lembranças adormecidas, mas que, ainda que adormecidas, estarão para sempre conosco. Até o momento final. Não tenho ilusões de que meu futuro é infinitamente menor do que meu passado. E não poderia ser de outra forma. Tenho tantas histórias para contar! Sempre fui boa observadora, e ouvinte. Cheguei a escrever um livro sobre a história de minha família baseada exclusivamente no que ouvia, sobretudo de minha mãe. Tenho-o guardado. Nem sei quem o leu, mas isto pouco importa. O que importa é o prazer de contar, de falar de um mundo que não existe mais; pessoas, lugares, hábitos, dramas. Não sei se algum dia contarei, não mais “tudo que me contaram”, mas “tudo que vi e vivi”. Diz Ricardo que tenho o talento gaúcho do “contador de histórias”. E aí está meu amado Érico Veríssimo.

Naquela noite, de frente a meu companheiro de tantos anos, diante de uma taça de vinho, falei ...e falei. Foi como se a memória de meu computador natural se abrisse e despejasse no ar, ao som de minha voz, tantas histórias. Falei de gente que já havia esquecido há muito tempo, revivi sensações. Lembrei-me da rua escura, num bairro distante, onde minha família se instalara após a transferência de meu pai para a cidade. Era iluminada por escassos postes altos, de luz amarelada, e, nas noites quentes, a criançada se reunia para brincar. Quase não havia trânsito e livremente transitávamos de uma calçada para outra. E ao descrever a rua, que revia de forma tão clara na minha mente, lembrei-me da mulher paupérrima que vivia em um casebre nos fundos de uma velha casa, bem defronte à nossa. Achava-a feia, mal-cheirosa. Nesta época, eu não tinha mais do que quatro anos. Somente bem mais tarde soube de sua miserável vida de prostituta. Tinha olhos azuis, cabelos louros, seguramente oxigenados, dentes estragados. Morava com a mãe e uma filha. Pobre gente! Já devem ter morrido há muito tempo.

Depois, mudamo-nos para uma vila, onde moravam quase exclusivamente militares. Lembro-me de minhas amiguinhas, todas filhas de militares, mas só guardei o nome de duas: Evinha e Léa. Brincávamos de pique - esconde, nos enfurnando nas varandas das casas, todas em estilo anos quarenta. Ou então brincávamos de estátua, o que eu detestava, já que nunca conseguia imobilizar-me de repente. E me lembro do cruel plano de surra numa menininha, justo no dia em que chegamos de mudança. Era filha da amante de um major, cuja filha fazia parte do grupo. Fiquei estarrecida. Por que bater nela? Não me lembro o que disseram, mas subi para casa aos prantos. Lembro-me bem que meu irmão me perguntava se haviam me maltratado, mas eu não sabia responder. Como acabou a história? Não tenho a mínima idéia.

E havia ainda tanta coisa a contar! Meu pavor dos “sujos”, que desfilavam no Carnaval, a cabeça coberta por uma fronha com dois buracos para os olhos e um para a boca. Acho que era assim, pois a única vez que vi um deles de perto, foi quando ele tocou meu ombro e, virando-me, vi aquele monstro medonho. Disparei aos gritos. Eu tinha cinco anos, mas disso me lembro bem. E dos beliscões de minha irmã, dez anos mais velha, quando eu ficava chateando seu namoro. Apaixonei-me por um de seus namorados, chamava-se José Félix, era gaúcho, como minha família, e lindo! Fiz até promessa quando ele propôs reatar o namoro, mas não deu. Fiquei penalizada. Como minha irmã podia ser tão burra!? E também me lembrei da moça loura, alta, que passava bem defronte à vila, na saída do colégio. Um dia deixou de passar, e então alguém me disse que havia morrido. Fiquei consternada! E também das festas de Cosme e Damião, quando a gente recebia um cornetinho feito de papel rosa, com balinhas dentro. E do meu horror à papinha que minha avó me obrigava a comer, feita de café com leite e pão picado, hábito da América espanhola, transplantado para a região da fronteira com a Argentina. Vi meu pai e minha mãe comerem isto a vida inteira. E sempre me causou o mesmo horror da infância. Lembrei-me de tanta coisa daquele passado tão remoto!

Hoje, aprendi a valorizar cada dia vivido, e dar graças por haver passado por muito sofrimento sem perder a alegria de viver. Compreendi a efemeridade de tudo e que de nada valem pequenas e mesquinhas vaidades, ainda que eu tenha a minha, mas que não é pequena nem mesquinha. Ouvindo naquela noite os dois músicos, que tocavam aquela velha canção, tive a certeza de que havia vencido. Sofrimentos, tive muitos, perdi minha família original, vi meu pai morrer cada dia, vítima de uma terrível cardiopatia, minha mãe sofrer durante seis anos,confinada à uma cama, minha irmã ser condenada pelo câncer, meu irmão morrer poucas horas depois de haver sido internado. Mas estou viva, lembrando aquele passado distante, diante do homem que amo, e brindando à vida.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Mulheres apaixonadas

Sábado passado, havia um bloco de carnaval bem defronte à minha casa. A folia era animada com velhas músicas, aquelas que animaram os carnavais de nossa juventude e até de nossa infância. E, dentre muitas outras, ouvi repetidas vezes uma das mais lindas: “Bandeira branca”. Lembro-me de que era cantada por Dalva de Oliveira, e começa e se repete com a confissão da derrota de uma mulher apaixonada: “Bandeira branca, amor, não posso mais. Pela saudade que me invade, eu peço paz.” Foi composta em 1970, poucos anos antes da morte de Dalva. Não sei se a escolha da cantora foi proposital, mas pode-se pensar que sim. Há pouco tempo, vi pela televisão, como milhões de outros brasileiros, uma mini-série que contava a tumultuada vida amorosa de Dalva de Oliveira e Herivelto Martins. Parece que a história contada foi bastante fidedigna, já que teve a aprovação de Perry Ribeiro, filho de ambos, cantor muito popular no auge da Bossa Nova.

Mas, ao assistir à mini-série, e aos grandes conflitos vividos por uma mulher apaixonada e um homem que a considerava como propriedade sua, que a traía e mantinha, por razões de segurança, sobretudo profissional, o casamento e uma aparente vida familiar, não pude deixar de lembrar-me de muitas outras histórias de paixão, ódio, submissão e vingança. E a primeira a me vir à mente foi a de Diane, princesa de Gales. Dalva era filha de um carpinteiro, Diane de um conde. Uma morreu aos cinqüenta e cinco anos, a outra aos trinta e seis. Ambas acreditaram no amor. Estou certa de que Diane casou-se apaixonada, afinal o pretendente era um príncipe, e ela era muito jovem. Traídas, resolveram se vingar traindo. Diane foi escolha definida por necessidades da realeza britânica, e Dalva pela ambição de sucesso de seu parceiro. Traídas, falaram muito, queriam vingança. Colocaram em público suas vidas íntimas. Dalva e Diana, de origens tão diferentes, com vidas tão diferentes, tinham em comum um traço que desenhou seus destinos: foram mulheres apaixonadas. Vítimas da traição, se vingaram da mesma forma. E feriram-se ao tentar ferir seus homens. Não muito antes de morrer, numa entrevista Diane chocou o mundo. Ali, ela expunha sua vida, suas aventuras, e seu rancor. Há poucos dias, procurando informações na internet, vi uma entrevista de Dalva, feita pouco antes de sua morte, muito tempo depois da separação. Surpreendeu-me sua incontida mágoa.

Há, na literatura universal, obras magistrais acerca do domínio da paixão sobre mulheres. Basta lembrar Emma Bovary e Anna Karenina. Flaubert e Tolstoi, geniais escritores, conhecedores profundos da alma humana, souberam magnificamente descrever os conflitos que cercam a paixão e o adultério. Paixão e adultério, que, sob formas diferentes, ainda atormentam em nossos dias muitas mulheres. Anna de Assis, paradigma real das outras duas, também viveu uma paixão, que culminou não em uma, mas em várias tragédias sucessivas. Minha avó Joana, mãe de minha mãe, também viveu intensamente uma paixão. Por ela abandonou um lar estável e fugiu com o homem que a seduzira. Grávida, foi abandonada e trazida de volta, por um irmão, para a casa materna, para sempre desonrada. Nasceu minha mãe, Alice, registrada como “filha natural de pai desconhecido”. Também minha avó paterna, viúva aos vinte nove anos, com quatro filhos, apaixonou-se perdidamente por um ator português, que passava com uma Companhia pelo interior do Rio Grande do Sul. Por ele enfrentou tempestades. Mas a paixão terminou em separação e grande dor.

Mulheres apaixonadas sempre existirão. Mulheres que encaram a vida, em toda sua complexidade, como se tudo se resumisse à outra pessoa. E isto é diferente de amar. No amor, cultivamos projetos pessoais, falamos deles ao companheiro, e ele nos fala dos seus. Partilhamos. Somos indivíduos, encorajados a cultivar nossa identidade, nossa história, que não é, e não pode ser a do outro. Diz Simone de Beauvoir na sua magistral obra pioneira Le deuxième Sexe: “Tudo ainda encoraja a jovem a esperar do príncipe encantado sucesso e felicidade, ao invés de tentar ela própria a difícil e incerta conquista”. O livro foi publicado pela primeira vez nos fins dos anos quarenta, e provocou escândalo na sociedade francesa. Mas, ainda que haja coisas que hoje não mais aceitamos, ficou para nós, mulheres, a lição de que esta “difícil e incerta conquista”, que se chama “projeto”, é que dá sentido à nossa vida, e nos permite amar de verdade.

Lembro-me de meu desespero diante do progressivo abandono da vida que acometeu à minha mãe após a morte de meu pai. Logo eu, mulher que se orgulha de sua contemporaneidade, de sua independência, de seu amor maduro por um companheiro de muitos anos, onde direitos e deveres são igualmente partilhados. Como, então, entender que Alice desejasse tão ardentemente a morte, mergulhada durante seis anos numa cama, sofrendo constantemente a dor de sua perda. Até que, depois de muita luta, compreendi, e me conformei. E quando ela se foi, eu, que nunca me casei, nem havia usado aliança, pedi à médica que nos havia comunicado sua morte que me permitisse tirar de seu dedo aquele símbolo que a havia acompanhado desde seus quinze anos. Coloquei-o no meu, e falei-lhe, acariciando seu rosto, enquanto, emocionada, minha irmã chorava: “Adeus Alice, agora você está feliz ao lado dele.”

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

“Os Farsantes”

O título, tomei-o de um livro de Graham Greene, escritor, se não me engano, escocês. Li-o quando era bem jovem e fiquei impressionada. Anos depois o vi na tela, com Peter Ustinov e Elizabeth Taylor. Não me lembro bem do enredo, mas trata-se da vida tumultuada de alguns americanos, comerciantes e diplomatas, que vivem no Haiti. Mas, se esqueci detalhes do enredo, ficou-me na lembrança, desde a leitura do livro, a imagem do país miserável, governado por um ditador sanguinário – será que há algum que não seja? – e sua polícia política, formada pelos “Tontons macoutes”, cuja crueldade deixou-me pasma. E olhem que eu também vivia sob uma ditadura! O ditador chamava-se François Duvalier, “carinhosamente” chamado de Papa Doc. Aliás, Stalin também era chamado de “paizinho”.

No seu magnífico livro “Uma gota de sangue – história do pensamento racial”, Demétrio Magnoli, conta as origens do Haiti, que surgiu da maior de todas as revoltas de escravos. Teve como líder um certo François-Dominique Toussaint Louverture , nome que vi na fachada semi destruída do prédio do aeroporto de Porto Príncipe. Toussaint, de escravo analfabeto, tornou-se homem instruído, ávido leitor do iluministas. Em 1801, convocou uma Assembléia Constitucional que proclamava a “igualdade entre os homens e proibia distinções derivadas da cor da pele.” Dizia o artigo 5º. da Constituição: “Nenhuma outra distinção existe senão aquelas de virtudes e talentos, nem qualquer superioridade senão a garantida pela lei no exercício de um cargo público.” Concluindo que: “A lei é a mesma para todos, quer ela puna ou proteja.” Seu governo durou menos de um ano e, por desgostar a Napoleão, foi vencido pelas tropas francesas e levado para França, onde maus tratos o levaram à morte por pneumonia. Outro general tomou o poder no Haiti, Dessalines, que derrotou as tropas francesas. “O Haiti tornou-se a segunda nação soberana nas Américas, e a única no mundo emanada de uma revolução de escravos.” Dessalines determinava no artigo 14 da Constituição que “os haitianos devem ser, de agora em diante, designados pelo nome genérico de negros.” Tornou-se Imperador , mas foi assassinado algum tempo depois. E desde então o Haiti tornou-se uma sucessão de tiranias, até desembocar, em 1957, em Papa Doc. Médico, cujo “reinado” durou quatorze anos, e só teve fim com sua morte. Foi sucedido por seu filho Baby Doc, cujo perfil moral é o mesmo do pai. Sua ditadura teve fim em 1985, e, tendo sido generosamente acolhido pela França, desfruta, ou desfrutou – dizem que está falido - das delícias de uma mansão perto de Cannes.

No Haiti reinaram dezenas de tiranos, que empobreceram cada vez mais a população, enriquecendo-se e à uma elite corrupta que os seguia. Rafael Leonidas Trujillo fez o mesmo na vizinha República Dominicana. Acumulou imensa fortuna à custa da miséria de seu povo, e governava o país como sua fazenda particular. Era tão ordinário que dele dizia certo secretário de Estado americano: “É um filho-da-puta, mas é nosso filho-da-puta.” Foi assassinado em 1961, e seus assassinos foram cruelmente perseguidos, assim como suas famílias. Este “filho-da-puta” inspirou a Vargas Lhosa um magnífico livro, “A Festa do Bode”. Sucedeu-o seu filho Ramfis, assassino nato, que cometeu crueldades que se comparam às dos nazistas. Nadando na roubalheira, entre um assassinato e outro, especializou-se em comprar mundanas, que também eram atrizes como Kim Novak, Zsa Zsa Gabor, e muitas outras. Não sei quando foi apeado do poder, mas já morreu há muitos anos.E também havia Anastácio Somoza, ditador da Nicarágua, assassinado no Paraguay pelos Montoneros, com tiros de bazuca, nos anos oitenta.

Papa doc, Baby Doc, Rafael Trujillo, Ramfis, Somoza, e tantos outros, são produto do patrimonialismo, que confunde o público com o privado – fenômeno que nós brasileiros conhecemos bem – e da Guerra fria. Guerra fria, que, como todas as guerras, não coloca nenhum princípio moral, o que deixou claro aquele secretário de Estado americano ao referir-se a Trujillo. E é preciso que a gente não se esqueça que do outro lado também valia tudo.

Na América Latina sempre fomos vítimas de ditadores. Há uma extensa literatura que fala deles, na Venezuela, no Equador, na Argentina, na Bolívia. No Brasil, vivemos vinte anos sob uma ditadura, mas nossos pais já haviam amargado outra, a do Estado Novo. Hoje passados tantos anos, quando pensávamos nos ver livres de qualquer ditadura, seja de direita ou esquerda, vemos surgir um AI6, aquele dos “Direitos humanos”, um Chavez, um Correa, um Morales, e para substituir Somoza, um Ortega, que de tão insignificante pensei que havia morrido. E não podemos esquecer de Zelaya, candidato a filhote de Chavez, gentilmente abrigado em nossa embaixada, que virou uma espécie de cortiço. Vemos assassinos serem considerados heróis, e por gente de um governo que se diz democrático (“Afinal, diz Tarso Genro – Ministro da Justiça – ele (Battisti) matou por uma causa!” Mas, então, Bin Laden também mata por uma causa!). O que queremos hoje é que não exista mais gente miserável como os haitianos, que haja democracia, liberdade, que cada um seja respeitado como ser humano.

E que, ainda que vítimas de uma catástrofe natural, os haitianos, assim como todos os outros povos do mundo, nunca mais sejam vítimas dos tiranos, que os fizeram permanecer nas trevas da ignorância, tornando-os mais e mais miseráveis. Que gente como Papa Doc e Trujillo, sempre imundos e corruptos, e também os candidatos a sê-lo, sejam definitivamente varridos da História da Humanidade, e que essa raça cósmica que forma o gênero humano possa ser feliz neste espaço de tempo que temos por aqui, e que chamamos de VIDA.

Dádiva de Deus.