QUEM SOU EU

Sou professora de Francês, mas hoje minha principal atividade é escrever e ler, além de cuidar dos meus três vira-latas: Charmoso, Príncipe e Luther.



Gosto de fazer ginástica, sou vegetariana e adoro animais em geral, menos baratas.



Sinto especial prazer quando meus textos agradam aos meus leitores. Espero continuar produzindo e me comunicando com todos os meus amigos, neste maravilhoso universo da net.



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segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Uma alma  simples.

Para minha  inesquecível vo´Cacá 

 

Foi lá pelos últimos anos do século XIX, que veio ao mundo uma alma superior , uma criança que se  tornaria uma das mais nobres  mulheres que conheci em minha vida. Nasceu em Caeté , uma cidadezinha histórica, linda, como costumam ser as cidades históricas mineiras. A criança foi batizada como Maria do Carmo em devoção a Nossa Senhora do Carmo.  Chegou como viveu e como partiu , amando e inspirando AMOR, o mais nobre dos sentimentos , como assinala São Paulo , em sua Carta aos Corintos. O parto foi feito por  sua avó, da mesma forma que o parto de sua mãe fora feito por sua bisavó ,  e assim por diante. 

Cacá , como era conhecida, era uma linda criança de cabelos loiros ,  rostinho e traços arredondados. Nasceu na fazendo de um certo Bernardo. E ali , havia um regime feudal , com um senhor Suserano, um representante da Igreja, que exercia a função importante de manter na humildade o resto daquela sociedade medieval. Nada questionavam , porque , afinal ,  esta era uma   regra de Deus. que um padre, cuidadosamente, lhes incutira na cabeça durante séculos. Sempre fora assim,  e assim seria pelo resto dos tempos. Seus antepassados haviam vivido assim,  e assim viveriam  seus filhos, netos e bisnetos . Não havia neles nenhuma  revolta ou desejo de progresso. 

Ela tinha cerca de quinze anos quando lhe foi apresentado em pretendente. Chamava-se Valentim. Era alto, magro, de olhos azuis. Mas não era somente um pretendente, era já seu noivo. Naquela sociedade patriarcal, não havia lugar para desejos ou paixões. Eram jovens, e deveriam procriar, afinal era  função do homem fecundar e da  mulher parir. E foi assim que Maria do Carmo casou-se com Valentim dos Reis. A casa, tão humilde quanto a anterior, parecia-lhe maior, já que tinha menos habitantes, e por que não , linda. Não cansava de cuidá-la, de enfeitar com seu parco enxoval, feito por ela, pela mãe e tias. O chão de terra batida era respingado com água e varrido cuidadosamente com a vassoura feita de ramos de árvore. Cerca de dez horas , quem passasse pela estrada defronte à casinha podia sentir o cheiro gostoso de alho frito na gordura de porco. E se fosse um conhecido, e pedisse um prato, ela o convidaria a entrar e almoçar. Se fosse um desconhecido também comeria, mas não seria convidado a entrar , já que se tratava de uma senhora casada.

Feitas as tarefas domésticas, Cacá embrulhava as duas marmitas em uma toalha bem alva e rumava em direção à roça , onde Valentim já labutava desde  bem cedo. As vezes, parava para bater um dedo de prosa com alguma conhecida, que também ia trabalhar na roça. Se havia muito sol , Cacá amarrava um lenço na cabeça. Naquela sociedade medieval, não havia lugar para vaidade. E nem para distrações. Somente, aos domingos , quando havia quermesse depois da missa, era permitido saborear alguma guloseima, ou brincar de alguma coisa. E Cacá sempre lembrava do primeiro sorvete que saboreara na vida. Doçura inesquecível!

Conforme estava estabelecido, os filhos foram chegando: Armando,  Sebastião, Sebastiana, José Carlos , Valdemar, Maria , Alzira, Antônio. E esta mulher guerreira, inteligente, sabendo o valor do saber, apesar de suas duras tarefas ,  ensinou a cada filho a ler; o quê lhes possibilitou mais tarde uma melhoria de vida. Ela fora alfabetizada por sua mãe, que fora alfabetizada por sua avó, que fora alfabetizada por sua bisavó e assim por diante. Isto nos mostra um desejo, ainda que  muito longínquo de  progresso. 

Quando eu os conheci, haviam mudado para a cidade e moravam naquela estranha Rua Costa Carvalho, que hoje está totalmente mudada.  Valentim já havia falecido e a viúva vestia-se sempre de preto. Naquele tempo, as crianças viviam em total democracia,  brincando filhos da classe média com filhos de proletários. E todos nós adorávamos o café  moído na hora,  a broa feita na panela de pedra, e as rosquinhas lindamente  trançadas. Lembro-me da chegada de Joaquim com seu burrico;  a  criançada se alvoroçava para dar uma voltinha. Sentada sobre as toscas pranchas , com restos de areia, eu fechava os olhos e me imaginava Cinderela sentada na sua carruagem, conduzida por cavalos brancos e com o majestoso cocheiro Joaquim.

E era em sua humilde casa que me refugiava quando alguma coisa me ameaçava. Quando vieram para a cidade, encontraram duas coisas fantásticas : luz elétrica e água encanada. E havia ainda dois prazeres  que mudaram o mundo, inacessíveis na roça: o rádio e o cinema. Mas eles pouco gozaram. O pequeno aparelho de rádio ficava na sala sobre uma  prateleira. Às seis horas  em ponto, já estando todos em casa, acendiam o radio para a Ave Maria. Postados diante do aparelho, que servia como altar, contritos, com o terço na mão oravam durante bastante tempo. Depois disto, apagavam o rádio, e  se punham a alguma obrigação. Jamais um programa cômico, um noticiário, nada, nada. Também iam , toda Sexta- feira Santa ao cinema. O filme era sempre o mesmo , "A vida de Cristo" do estúdio francês Gaumont, dirigido por Alice Guy, a primeira cineasta , lá pelo ano de 1906. Colorido a mão, mostrava truques extraordinários para a época em que foi produzido, como a Ascenção de Cristo , de expressão bastante diabólica  no meio  de nuvens rígidas , comtemplado por apóstolos hirtos , que mostravam seu êxtase levantando mecanicamente os braços. O cinema era um conhecido pulgueiro da cidade, hoje, se não me engano transformado em estacionamento. Jamais na vida foram a outro cinema ou assistiram a outro filme!

E mesmo quando as atividades profissionais de meu pai me levaram para longe, nunca deixei de lhes enviar um cartão, uma cartinha em que desenhava um coraçãozinho. E quando voltei à cidade, depois de vários anos fora, sempre ia visitá-los . "Oi de de dentro! Oi de fora! Nesta época, vovó Cacá , como eu a chamava, já havia falecido. Aqueles longos anos de duro trabalho  havia enfraquecido sua saúde. Hoje todos já partiram. E ao pensar nisto. lembro-me daquela lenda indígena que conta a história de um índio que, seguindo um tatu , entrou no seu buraco, e tendo penetrado fundo na terra fria e escura , descobriu, subitamente, um lindo lugar , onde brilhava o sol , o céu era infinitamente azul , havia água fresca , com peixes coloridos, lindas aves, e flores. Era o Paraíso . Tenho a convicção, que ao partir, tendo atravessado o escuro  túnel  que separa os vivos dos mortos, os encarnados dos desencarnados,  Cacá encontrou  Valentim e esperou ao lado do marido cada um dos seus filhos. 

E , quando chegar minha hora, estou certa de que ,tendo feito o mesmo trajeto, encontrarei este lindo lugar , assim como todos aqueles que amei e perdi. 

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

 Souvenirs d'enfance

Hoje quero conversar sobre minhas mais antigas lembranças. Lembro-me de  minha mãe me embalando na velha cadeira de balanço , que não sei com quem está, ouvindo , acho eu, as famosas novelas da Radio Nacional. Eu devia ter uns dois anos e esta é uma das lembranças mais antigas e amorosas que tenho. Mas ainda há outras , mais antigas, eu devia ter seis ou sete meses e estava sentada numa espreguiçadeira ( será que alguém sabe o que é ? ) com meu pai. De repente, ele  sumiu e me vi só, devo ter ficado assustadíssima  e abri um berreiro, meu pai aproveitou a ocasião e clicou. Tenho a foto e se encontrá-la vou postar. E ainda outra, de fraldas , batendo com a tampa de uma panela no assento de  uma cadeira. Tudo isto é tão antigo! Acho que foi algum tempo depois da execução dos carrascos nazistas. 

Havia pouco tempo que meu pai fora transferido do Rio para Juiz de Fora. Na verdade, fora transferido para Santarém , no Pará. Por sorte, conseguira trocar com um colega paraense, já que a distância era enorme para o Rio Grande. Fomos morar  num  bangalô dos anos 30 com um pequeno jardim , onde eu gostava de brincar. na rua Costa Carvalho 113. Lá eu nasci. Tinha algumas amiguinhas , que, evidentemente, perdi de vista. Havia Maria , filha de dona Olimpia, que fiquei sabendo depois morreu no Hospício de Barbacena, horror que deu origem ao livro da talentosa Daniele Arbex, " Holocausto Brasileiro." Havia também um irmão, que minha mãe ficou sabendo mais tarde que morreu tuberculoso. Gente paupérrima, que morava num casebre de que não me lembro bem. Viviam não sei de quê , e quando vejo vidas trágicas como daquela família, tenho que acreditar na reencarnação, pois não posso acreditar que Deus , soberanamente justo e bom , permita que alguém viva em tais condições e que outros tenham tanta abundância. E havia também a filha de uma empregada , não sei de quem, que devia ter a minha idade , e brincava comigo. Lembro-me de que um dia , estávamos debruçadas no muro que cercava o jardim e passou uma mulher. Brincou com minha amiguinha e lhe sorri naturalmente, mas sua reação permanece intacta em minha memória; olhando para mim , a mulher disse com raiva : " Ela é bonita, você é feia."  Hoje , fico imaginando quanto recalque, quanta maldade havia naquela mulher. E chego a ter pena dela.

À  noite,  na rua mal iluminada , brincávamos de roda, de amarelinho , e já nem me lembro do quê mais. E havia o bêbado, que passava e sumia nas trevas que prosseguiam a rua. Sempre o imagino de capa preta e chapéu de abas largas , também preto. Me dava um medo terrível!!! Seria assim mesmo, ou  foi a minha imaginação  infantil que o produziu? Aquela era uma rua singular, de um lado havia  bangalôs de classe média e  do outro um correr de cerca de seis ou sete casas que haviam feito parte de uma fazenda. Pois do outro lado , morava , que eu me lembre, um caminhoneiro , e uma mulher , considerada a megera do bairro , e isto não sei porquê. Tinha duas filhas, que não brincavam com as outras crianças, mas lembro de que uma se chamava Ivone. Lembro-me bem do marido, macérrimo, que ela esperava na porta de casa. Nos fundos daquela humílima casa , havia uma espécie que barracão era era alugado para uma prostituta , de cujo nome não me lembro mais. Era uma mulher loura, certamente oxigenada, olhos azuis, magra, com um visível dentadura. Teresa contava que entrara uma vez na casa e ficara horrorizada com a pobreza, mas não me lembro mais dos detalhes. Parece que saia toda noite , a procura de clientes. Estes são detalhes que desconheço. Mas não posso esquecer minhas inesquecíveis Alzira e Maria. Todas as crianças do bairro adoravam sua casa, seu café, suas broinhas. Qualquer dia escreverei sobre esta família tão especial. 

Um dia, fiquei sabendo que iríamos mudar. Minha avó, que havia vindo do Rio Grande com a única filha que lhe restara, estava doente, e talvez uma mudança de ambiente lhe fizesse bem. Na verdade, minha avó havia ensandecido, o quê só fiquei sabendo muitos anos depois. Lembro que eu ficava sentada em varandas de casas desconhecidas,  esperando minha mãe. Visitámos dezenas de casas, até encontrarmos uma. Era uma vila, onde havia muitos militares. Eu tinha quatro anos. E justo no dia em que chegamos , minhas novas amiguinhas combinavam bater na filha da amante do pai de uma delas. Não entendi bem, mas  fiquei chocada. Subi correndo, aos prantos, as escadas ( morávamos no segundo piso) . E lembro-me nitidamente de meu irmão  me perguntando se haviam me batido. O resto da história , esqueci. A vila se chama Caruso e , para quem conhece Juiz de Fora, fica na rua Batista de Oliveira. Lá fiz novas amiguinhas, Evinha , cujo pai , capitão como meu pai, era amante da mãe de Ana Maria, aquela em quem queriam bater. Havia alguns " amiguinhos" , um dos quais encontrei no Facebook . Ele implicava comigo e eu batia nele. Depois, saia correndo  .  Hoje ,  ele brinca e diz que nunca mais apanhou de mulher. Mora em Vitória e contou-me que  sempre que vem a Juiz de Fora, procura passar pela velha vila de nossa infância. E havia a moça muito alta e loira, que descia a rua Batista, vinda do Granbery.  Achava-a linda, ou talvez , diferente. Um dia , ela parou de passar, achei estrando e perguntei a minha irmã , que a  conhecia bem, porque não a via mais. E Teresa me respondeu: " Ela morreu! " Engoli em seco, aquela moça , eu não veria mais. Seu nome era Sybille . E há várias versões para sua morte.     Até  há alguns anos , existia sua linda casa, em estilo hollywodiano. Ficava bem na esquina da principal rua do bairro , defronte a um lago que não existe mais. Quando morreu o último herdeiro, tive esperança de que fosse tombada. Mas, hoje , em seu lugar há um enorme prédio, luxuoso. Mas jamais tão bonito quanto à casa, que contava uma história. 

Um dia , vi a mãe de Ana Maria passar um bilhete para o major Mesquita (acabei de lembrar-me o posto e o nome) , corri para casa e contei para minha mãe, que me proibiu de contar para alguém. Teimei: " Mas eu vi , mãe. ! "Afinal, talvez sob ameaça , fiquei quieta, guardando este segredo , mas com a língua ardendo. Eu tinha sete anos quando meu pai, engenheiro militar , foi convidado a dar aula no Instituto Militar de Engenharia. e aí já é outra história. Mais uma mudança!!Rio de Janeiro de antigamente. Eu ia e voltava com o ônibus do colégio. Era vergonhoso! Mas havia tanta coisa boa.  Uma vez por mês, meu pai dava um dinheiro para minha mãe fazer compras no centro. Tomávamos o bonde o íamos até o Tabuleiro da Baiana, ponto final dos bondes. E |minha mãe , Teresa e eu fazíamos um lanche , não me lembro onde. Era o quê eu mais gostava. E também tinha o lanche nas quintas -feiras á noite na Sears , que ficava ao lado do colégio onde eu estudava "Anglo -Americano". Meu pai, profundamente anti-clerical,  só nos colocava em colégios  laicos, razão porque nenhum de nós três fez Primeira Comunhão. E a vida prosseguia sem nada de especial. Mas eu podia andar livremente com minha bicicleta  ,brincar com minhas bonecas, fazer roupinhas, pular corda. 

Até aquele dia de um certo mês de 1956, quando meu pai anunciou que íamos  para a França.