QUEM SOU EU

Sou professora de Francês, mas hoje minha principal atividade é escrever e ler, além de cuidar dos meus três vira-latas: Charmoso, Príncipe e Luther.



Gosto de fazer ginástica, sou vegetariana e adoro animais em geral, menos baratas.



Sinto especial prazer quando meus textos agradam aos meus leitores. Espero continuar produzindo e me comunicando com todos os meus amigos, neste maravilhoso universo da net.



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domingo, 19 de maio de 2019

Douce France


Saudades de um tempo que não volta mais! Meus dez anos! Um dia, meu pai chegou em casa e disse rindo para minha mãe : “ Alice, vamos para a França!” Não me lembro do que pensei na hora, mas depois refleti que deveria deixar no Brasil meus amiguinhos, minha bicicleta, minhas brincadeiras de criança. Partia para um país desconhecido, diferente, cuja língua eu nem sequer balbuciava. Para mim, e acho que para toda a família, esta era uma mudança total. Tiramos os passaportes, meu pai tratou com amigos o que deixaria aqui, arrumamos as malas e fomos embora.
 E depois de uma longa viagem de avião, pela extinta Panair, com escalas em Recife e Dakar, onde senti, ao descer as escadas do avião, um calor que parecia derreter minhas pernas, chegamos a Paris, onde outros militares, em estudos, nos esperavam com as famílias. Eu me sentia estranha! Não conhecia ninguém! Não me lembro do que se passou depois, mas, de repente, eu estava lá, tão longe do Brasil!
Lembro-me de nosso primeiro dia em Paris, com meu pai, minha mãe e minha irmã, que já tinha 21 anos. Meu irmão havia ficado no Rio, e deveria chegar logo depois. Na cidade desconhecida, eu via as pessoas passarem falando aquela língua estranha. Tudo me parecia estranho! Uma menina, mais ou menos de minha idade, passou por nós conversando com uma mulher que devia ser sua mãe. Depois fomos jantar em um restaurante bonito, não sei onde, e meu pai, que já falava bastante bem o francês, fez o pedido de bife com batatas fritas e certo molho, que achei delicioso. Depois, fomos para um hotel que os outros militares brasileiros haviam reservado para nós. Lá o que eu mais gostava era do delicioso café da manhã, que nos serviam no apartamento. Pela primeira vez, comi um croissant! E a geléia! A manteiga que vinha como uma conchinha! Ainda hoje, tantos anos transcorridos, sinto o odor do hotel, do café da manhã, do shampoo em travesseiro que minha mãe comprava no Prisunic , bem perto do hotel. Uma noite, meu pai havia saído, e minha mãe meu deu algum dinheiro (tarefa complicada) para comprar sanduíche de patê numa “charcuterie” ao lado do hotel. Foi alguns dias depois de nossa chegada e eu não falava nada de francês. Tentei me fazer entender, mas foi difícil. Acharam-me engraçadinha, afagaram o meu rosto, e me disseram “mignonne”, “italienne”. Por fim, consegui mostrar o que queria e fui embora feliz com meu sanduíche. Aliás, sempre nos consideraram italianos, e lembro-me de um francês que nos viu e disse raivosamente: “Ces italiens!”
Logo depois começou nossa peregrinação por um lugar para alugar. Não me lembro bem do quanto percorremos, mas um ficou para sempre marcado em minha memória; uma linda casa em Ménilmontant. Lá nasceu o grande chansonnier, Charles Trenet, que ofereceu ao lugar a sempre lembrada “Ménilmontant”, e também a inesquecível Edith Piaf. Naquele tempo, este “quartier” era um lugar quase bucólico, com sua igrejinha, suas velhas casas e prédios bem diferentes dos que havia perto do hotel.  Uma tarde, fomos ver uma casa para alugar, que meu pai havia descoberto. A proprietária era uma senhora bem idosa, cabelos branquinhos, penteados em um coque. A casa pareceu-me deliciosa. As paredes eram recobertas de papel florido e numa sala principal havia seda estampada com rosas, se não me engano. Ainda posso sentir o contato de minhas mãos com a seda. Havia um piano, e me imaginei tocando, fingindo que sabia, como fiz mais tarde na casa de uma amiguinha, filha de outro militar. Torci para que meu pai alugasse, mas, afinal, minha torcida não deu certo e fomos morar na Avenue Mac-Mahon, uma das doze avenidas da Place de l´Étoile, hoje Place Charles de Gaule, um lugar bem mais “burguês”. Nosso prédio, soube em uma de minhas viagens à França, foi construído em 1896, ou seja,  em plena era do Art Nouveau, apesar de obedecer aos padrões haussemanianos (de Haussemann, o grande urbanista que transformou o Paris medieval quase no que é hoje). No prédio, não me lembro de haver franceses. No primeiro andar morava Monsieur Félix Houfouet Boigny, deputado da France d`Outre Mer, ou seja, de uma das colônias na África. Depois da independência, foi eterno Presidente da Costa do Marfim. No hall de seu apartamento havia chifres de elefante, indicando sua origem africana. Havia festas constantemente, e negros chegavam com mulheres louras, o que surpreendia minha mãe. Como poderia ela imaginar que, muitos anos mais tarde, eu namoraria um marfinês?
 No segundo, acho que vivia uma família francesa, mas nunca os vi. No terceiro havia uma família vinda do Ceilão, atual Sri Lanka. As mulheres usavam o célebre sari, e tinham no meio da testa um objeto que descobri chamar-se “bindi”. Nunca vi nenhum homem. Mulheres silenciosas que abaixavam a cabeça quando eu as encontrava nas escadas. No quarto andar, morava uma chilena. Conversou comigo uma vez. Também jamais vi sua família e sempre supus que morasse só. No quinto andar, éramos nós e, no sexto, outra família de militar brasileiro, Dirceu Nogueira, que foi ministro no governo Geisel.
O apartamento ocupava todo o andar, enorme, com uma sala de jantar, seguida de uma sala de leitura, e um grande salão redondo com móveis no estilo Luís XV. Havia lareiras de mármore com espelhos que iam até o texto. Tudo adornado com sancas, florões e lustres de cristal. À direita do hall de entrada, havia um painel de vidro com flores bem ao estilo Art-Nouveau. Arte que prevaleceu pelo mundo ocidental de 1890 a 1920. Toda aquela antiguidade dava-me medo e sempre imaginava que os fantasmas dos que ali moraram me seguiam. O elevador hidráulico era da época da construção. Só subia e tínhamos que descer pelas escadas. Quando subia, um longo tubo emergia do solo. O elevador era todo espelhado e havia uma corda grossa que devia ser puxada. Conforme a força que se usava, ia mais lento ou mais “rápido”.
Em 1981, eu estava em Versailles, fazendo um curso sobre o palácio, e indo um dia a Paris, resolvi fazer uma visita ao prédio. As portas estavam sempre fechadas e toda comunicação era feita por interfone. Sem ter para quem interfonar, fiquei à espreita. Quando a porta se abriu para passagem de alguém, cumprimentei-o e entrei. E voltei no tempo. A única coisa que havia mudado era o elevador, substituído por outro, moderno e sem graça. Bati na “loge” do concierge e conversei bastante com ele. Fiquei sabendo que no prédio não havia mais famílias. Ficaria muito caro. “Nosso” apartamento abrigava uma firma de contabilidade. E havia uma clínica “Kinesthésiste”, uma espécie de fisioterapia. Tirei fotos de tudo, inclusive dele. O velho, a quem eu dera, em lágrimas, François, meu peixinho, pois devia voltar ao Brasil, já havia falecido há anos. Em 94, com minha irmã, voltei ao prédio. Não havia mais concierge, subimos as escadas e batemos na porta do quinto andar. Uma mulher atendeu, expliquei-lhe que havia morado ali quando criança, que éramos brasileiros. Os móveis da sala de jantar haviam desaparecido. Havia movimento de muitas pessoas. Não nos deixou entrar como era de esperar, já que estávamos em Paris. Mas pedi-lhe que me deixasse ver o “panneau” art-nouveau, o que ela permitiu, comentando a sua beleza. Descemos meio decepcionadas, mas, enfim, havíamos conseguido, coisa quase impossível; resgatar um pedacinho do passado.
Assim que chegamos, meu pai inquietou-se; era preciso que se encontrasse alguma escola para mim. Teresa, minha irmã, já havia concluído o secundário, mas eu havia abandonado o primário. A princípio, fui matriculada na mesma escola que a filha do coronel Dirceu, Déa. Durou pouco e meu pai resolveu me colocar num curso para crianças na Aliança Francesa. Ótima idéia! Tinha como colegas crianças de várias nacionalidades: americano, húngaro, chinês, mexicano, coreano. As meninas eram, Rosa, uma espanhola, que estudava balé na “Opéra” e Piabgrum Fuangrabil (?) , tailandesa , de quem me tornei amiga, Fui com Teresa almoçar em sua casa e comemos comida tailandesa. E ela veio à minha casa, para um belo almoço brasileiro, que minha mãe preparou com todo seu talento culinário. Nossa professora, Madame Benoît, escolhia, uma vez por mês, um de nós para falar de seu país. E adorávamos. Faziam perguntas, que nos esforçávamos por responder. Afinal, éramos crianças, ainda pré-adolescentes! Mas todos nós já falavam francês fluente. Como foi provado pelo neurolinguista, Eric Lenneberg, a criança tem mais facilidade de aprender uma língua, sobretudo se interage com outras pessoas, em ambiente natural. E durante toda a estadia de um ano e dez meses, fui  intérprete oficial de minha mãe.
Aos domingos, eu, meu pai, minha mãe e minha irmã íamos passear nos arredores de Paris, ou meu pai me levava aos museus. Meu irmão tinha outros programas. Foi assim que me apaixonei pela Antiguidade e sonhei em ser arqueóloga. Fui a espetáculos inesquecíveis, visitei castelos medievais e percorri salões sombrios, onde, há centenas e centenas de anos, tanta gente viveu. E também outros de outras épocas. Tive a sorte de ter um pai cultivado, e um irmão, também intensamente interessado em cultura.  Lembranças destes velhos tempos me vêm à mente, coisas que havia esquecido, o sanduíche de “jambon”, o “cornet” de fritas, a fila do vinho que minha mãe freqüentava diariamente, e que meu pai, rindo, filmou. A mulher que me achava engraçadinha – “mignonne” – no Prisunic, onde minha mãe me mandava comprar alguma coisa, minha primeira máquina de fotografia, que ainda guardo com carinho, já bem velhinha. Revendo o filme “Ballon Rouge”, revejo a Paris de minha infância, tão diferente da Paris de hoje!  
Tenho em casa muitos filmes 8ml e slides. Depois de intensa busca, consegui um aparelho de projeção de 8ml (já que o antigo só serve de lembrança), e por vezes revejo os velhos filmes. Sinto saudades de minha infância e de todos os que partiram. Foram-se todos! Mas assim é a vida, uns partem e outros chegam. E Paris vai continuar no meu coração, com as castanhas cozidas na brasa de Marius, emigrante grego, a perspectiva do Arco do Triunfo e da Torre Eiffel que eu via da minha sacada, com François nadando feliz em uma das pias do banheiro. Com tudo de bom que só a “insouciance” da infância e uma experiência como esta proporcionam.