QUEM SOU EU

Sou professora de Francês, mas hoje minha principal atividade é escrever e ler, além de cuidar dos meus três vira-latas: Charmoso, Príncipe e Luther.



Gosto de fazer ginástica, sou vegetariana e adoro animais em geral, menos baratas.



Sinto especial prazer quando meus textos agradam aos meus leitores. Espero continuar produzindo e me comunicando com todos os meus amigos, neste maravilhoso universo da net.



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sexta-feira, 10 de agosto de 2018


Os atos da vida
Imagine a vida como o teatro. Neste teatro cada um representa um papel. Escolhemos o que queremos, já que para isto temos o livre arbítrio ou, como diz Sartre, somos condenados à liberdade. E não podemos culpar ninguém por nossas escolhas, elas são nossas e de mais ninguém. Quando crianças, vivemos o primeiro ato, e aí somos preferencialmente coadjuvantes. Mas já começamos a escolher e tentar abrir caminho. No segundo ato, somos adolescentes e nossas escolhas já começam a refletir o que queremos. Na juventude, já nos tornamos adultos. Devemos saber o que queremos e sabemos que nossas escolhas são aquelas que nos permitirão chegar ao terceiro e derradeiro ato. E não há quarto.
Há alguns dias, uma amiga mandou-me uma foto que me remeteu ao passado.  Tirada há mais de cinqüenta ou sessenta anos, mostra, reunidos, na porta principal do colégio onde estudei, velhos rostos. Já havia esquecido aquelas pessoas. Ou pensava que havia esquecido, porque ao revê-las ali, olhando-me fixamente, senti um aperto no coração. Uma saudade.
E assim, comecei a relembrar o meu passado. Minha mais remota lembrança, está fixada em uma foto. Foi num remoto dia de minha vida, em que estava sentava numa espreguiçadeira, numa varanda que havia nos fundos de minha casa, no colo de meu pai. Eu ainda era um bebê. De repente, ele sumiu, vi-me sozinha, e comecei a gritar. Escondido, ele tomou a foto.  Guardo-a até hoje. Quando conto, muitas pessoas não acreditam, mas não me importo. Tenho certeza. Alguns meses depois, eu já andava, cadeiras haviam sido postas numa passagem externa da casa onde nasci, faziam faxina. Peguei a tampa de uma panela corri e, feliz, comecei a bater no assento de uma cadeira.  E há meu aniversário, de quatro anos. Lembro-me de minha  mãe me vestindo e penteando meus cabelos e me dizendo carinhosamente alguma coisa. Lembro e quase revivo este momento.  Tenho duas fotos minhas, neste dia inesquecível, sobre um móvel em minha sala. E o filme, onde apareço brincando com crianças que não sei mais por onde andam, nem se estão vivas. E a festa com um “lindo” bolo feito por minha irmã, Teresa, eu de pé sobre uma cadeira, observando cada uma das crianças antes de assoprar as velinhas. E alguns anos depois, no velho cinema Glória, no colo aconchegante de minha mãe, que não perdia um filme mexicano. Naquele tempo as crianças iam ao cinema à noite, para dormir. E quando minha mãe me ninava, ouvindo as novelas e  contando-me histórias de sua infância. Lembro-me de minha oração, de camisolinha, ajoelhada na cama, recitando com minha mãe – sempre ela- “Com Deus me deito, com Deus me levanto. Com a graça de Deus e do Espírito Santo. Menino Jesus na beira, São José no canto. Que a Virgem Maria me cubra com seu divino manto.” E aí eu desfiava um rosário de nomes queridos : “ Deus abençoe a mamãe, o papai, a vovó, ....” E o dia em que vendo meus irmãos, bem mais velhos do que eu ( Teresa onze anos e Sergio quatorze anos) indo para o colégio, coloquei uma capinha de neném – que se usava naquele tempo – peguei um merendeira velha e fui esperar o ônibus. O mais incrível é que cheguei a subir, sendo salva por uma vizinha que veio correndo e me pegou no colo. Eu devia ter menos  de quatro anos, pois mudei-me desta casa com esta idade.
Já com cinco anos, lembro-me de minha manha, me jogando no chão , quando uma empregadinha não pode comprar pipoca para mim. Chamava-se Lurdes, e morreu logo depois, tísica. Minha avó estava muito doente e minha mãe não observava que Lurdes não estava bem. Até que uma vizinha a alertou. Tinha dezoito anos. E do dia em que minha avó morreu. Minha mãe havia ido servir-lhe o chá da tarde e encontrou-a morta. Teresa me contava uma história em outro cômodo, quando minha mãe irrompeu desesperada, chorando alto e dizendo “Mamãe morreu, mamãe morreu.” Lembro-me de mim, sentada no seu colo, chorando, enquanto ela se abraçava a mim, sempre em prantos. Lembro-me de que fomos dormir na casa de uma vizinha, Teresa e eu, e acordei cheia de xixi. Dei um pulo, e corri para a cama de minha irmã. Lembranças.
Naquela foto vejo pessoas de quem não me lembrava mais. Dona Maria Estela, que me alfabetizou e que não gostava de mim. Por qualquer bobagem punha-me de castigo no banheiro, que ficava dentro da sala de aula. Era um lugar escuro e úmido com alguma coisa que parecia um tacho escuro e carcomido. Não me lembro se havia vaso sanitário. Um dia, cheguei em casa e contei para minha mãe, que imediatamente foi ao colégio. Não sei o que aconteceu, mas nunca mais fui presa no banheiro tenebroso. Décadas depois, li no jornal o anúncio de sua morte. Lá está ela na foto , feiosa, meio mal-encarada, com um sorriso forçado. E havia sua irmã, dona Nilda, no segundo ano. Bonitona. Sempre achei que pintava os cabelos de uma cor meio ruiva. Ela sorri. E dona Ruth, acompanhada de seu marido Professor Romano, que encontrei mais tarde, quando já na adolescência voltei à cidade. Eu costumava ficar de castigo depois da aula, não me lembro quem me punha, dona Nilda ou dona Ruth, ou talvez as duas, e tinha que escrever dezenas de vezes: “ Não posso rir na aula.” , ou alguma banalidade semelhante. Anotavam a transgressão no diário, que eu sempre entregava à minha mãe, que assinava sem prestar atenção. Para ela eram besteiras. E vi dona Carolina , a Diretora, com seu corpo disforme, gordinho, de perninhas bem curtas. E tantas outras recordações destes meados do século passado.
Depois fui embora, passei algum tempo no Rio, onde meu pai, engenheiro militar, dava aula no IME. Eu odiava aquele ônibus que ia me  pegar na porta de casa. Afinal,  já era quase uma mocinha. Passado um ano, consegui convencê-lo a me deixar ir de bonde. Ia feliz , fazendo o percurso da Praia Vermelha ao Anglo- Americano, que ficava em Botafogo, onde hoje está um prédio da Petrobras. Era para mim um grito de liberdade, talvez o primeiro, repetido ao longo de minha vida. Algum tempo depois, meu pai anunciou que havia recebido uma bolsa para França. Mandou para Juiz de Fora a família, já que tinha que devolver a casa, enquanto tratava de tudo no Rio. Lembro-me vagamente de um passaporte. Eu tinha dez anos e não tinha idéia do que aquela experiência significaria em minha vida. Lá ficamos por um ano e, acho eu, dez meses. Mas esta experiência com uma cultura e língua diferentes, ainda tão jovem, conto depois.
Voltando ao Brasil, ficamos no Rio. Eu tinha 12 anos e estava na puberdade, com todos seus problemas. Mas havia coisas boas, como meus passeios com Teresa às quintas- feiras na Sears, de saudosa memória. Meu pai sempre nos dava algum dinheiro para um lanche e alguma comprinha a mais. Minha família era do Sul, mas ele preferia vir para Juiz de Fora nas férias. Era perto e barato. Alguns anos depois, viemos para Juiz de Fora, onde eu havia nascido. Minha mãe engravidara logo depois de sua chegada aqui, vindos do Rio. Meu pai tinha na época uma função já na sua área de engenharia. Era capitão, se não me engano. Belo homem , deixou muitas mulheres apaixonadas. Eu ainda não havia nascido. Naquela volta, eu estava entrando no  segundo ato de minha vida. Tinha 15 anos e vivi minha grande experiência do amor. Voltei para o Granbery, onde estudara a maior parte do primário.
E vendo aquela velha foto revi aqueles anos dourados. A Sala das Moças, no comando de dona Cecília. Lá está ela na foto. Sempre austera. Um dia na semana tínhamos “trabalhos manuais” e dona Cecília nos ensinava coisas interessantes. Lá fiz não sei quantas blusas de tricô, que eu sabia desde criança. Fiz toalhas de vagonite ( alguém conhece?) Ficava na porta que dava para o pátio dos rapazes. Meu namorado fazia um sinal e eu escapava para encontrar-me com ele. As vezes dona Cecília me flagrava e fazia-me voltar. Sempre educadamente. Lembro-me que tinha o hábito de morder o lábio superior e sempre pensei que isso devia trazer algum prejuízo. Vi meu professor de música, Reinaldo, que uma vez por semana lutava para nos fazer cantar “Luar do Sertão” Éramos um bando desafinado, cada um indo para um lado. Tentava nos colocar em lugares estratégicos para a primeira e segunda voz. Embaralhávamos tudo, sentávamos errado. Linda alma aquela, homem infinitamente bondoso. E dona Zilda, professora de francês, que se encantou ao saber que eu havia morado na França e falava francês. Era vaidosa e bonitona. Falava bem o francês, que não sei onde aprendeu. Na foto, diferencia-se das demais, com blusa estampada e manga curta. E  Júlio Camargo, que nos ensinava geografia. Eu tinha uma coleção de Atlas que herdei de meus irmãos e outros que meu pai comprava. Professor Camargo era austero, e jamais ninguém ousou fazer qualquer tipo de algazarra em suas aulas. Mas todos  gostávamos dele. Lembro-me de meu amigo  Nilo Ayupe, que não chegou a vir tomar um lanche comigo, como havíamos combinado.  E tantos outros.
Quando entrei na Universidade, para cursar Letras, quando fiz meu concurso e meu tornei profissional, tudo mudou. Eu mudei. Fui para Porto Alegre fazer minha Pós-Graduação, vivi longe de minha família. Tive outros amores, dancei a noite inteira, cheguei em casa de manhã, tomei banho e fui para minha aula de semântica. Expulsei de casa meu namorado francês, ultra-esquerda, que me chamou de burguesa porque eu me pintava. Amei os Beatles, Elvis. Chorei quando ele morreu. Fui esquerda, meus amores todos eram escolhidos por suas ideologias. Voltei para minha cidade. Trabalhei, ganhei bolsas para a França.
E quando meu pai adoeceu, com gravíssima cardiopatia, trouxe-o para minha casa e cuidei dele até sua morte. Um ano depois, minha mãe quebrou o fêmur, deprimida nunca mais voltou a andar, até sua morte seis anos mais tarde . Eu já entrara no meu terceiro ato. A dor daquelas perdas , o sofrimento , haviam deixado suas marcas em mim. Um ano e meio depois, perdi meu irmão.  Nova dor, noites em claro sem poder compreender como ele pudera morrer tão repentinamente. E a facada final; a morte de minha irmã, Teresa, amiga, companheira, confidente. Acompanhei-a cada dia, sofri cada dia, sabendo que não havia esperança. Mas sempre há um fio de esperança. Teresa faleceu há 13 anos. Naquele dia, com aquela facada no coração, mergulhei no meu terceiro ato.
Sinto-me como  aquele menino, que descreve Mario de Andrade, que já tendo comido a maior parte de suas cerejas , vendo o cesto quase vazio, quer gozar o que resta até o último pedacinho. Hoje cada dia vivido é um presente de Deus. E como diz Gilbert Bécaud no seu maravilhoso “Et maintenant”:* “ Et puis un soir , dans mon miroir, je verrai bien la fin du chemin. Pas une fleur, et pas de pleurs au moment de l´adieu.” Já deixei por escrito o que desejo: sem velório, meu corpo será cremado, e somente estará presente minha família. Minhas cinzas serão lançadas ao vento e meu espírito poderá, melhor do que jamais, apreciar a beleza da criação do Senhor.
*E uma noite , em meu espelho, verei o fim do caminho. Nada de flores , nada de choro , no momento do adeus.”