QUEM SOU EU

Sou professora de Francês, mas hoje minha principal atividade é escrever e ler, além de cuidar dos meus três vira-latas: Charmoso, Príncipe e Luther.



Gosto de fazer ginástica, sou vegetariana e adoro animais em geral, menos baratas.



Sinto especial prazer quando meus textos agradam aos meus leitores. Espero continuar produzindo e me comunicando com todos os meus amigos, neste maravilhoso universo da net.



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sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

 

Revolvi, sem remorso, as vésperas do Natal, escrever sobre cortesãs célebres da Belle Époque. O CRISTO em que acredito é aquele que andava com prostitutas, ladrões e todos que eram excluídos da sociedade. O CRISTO  em que acredito não faz distinção, para ELE , todos são filhos de DEUS. 

Estas mulheres que conquistaram a LIBERDADE com seus corpos, jamais serão descriminadas por ELE. 

Valtesse  de la Bigne . A cortesã mais visitada do que a Torre Eiffel   

"A mulher que fez de sua cama o teatro sua ascensão social"  Assim se refere a ela o comentarista do Programa  "Visites privées". Ela nasceu em 1848, filha de uma jovem lavadeira chamada Emilie , que fora trabalhar num colégio e apaixonou-se por um professor casado. Ainda assim , deu à luz sete crianças , uma das quais , chamava-se Emilie Louise de Labigne . Ao fim de algum tempo, não havendo nenhuma proteção social, o pai abandona a todos e volta à sua família oficial, que, na realidade, jamais deixara. A mãe, Emilie, vive miseravelmente, sem condições de pagar a comida das crianças. Assim, logo que possível todas rumam para um trabalho. A Emilie, a que nos referimos, suponho haver sido a primogênita . Vivendo na mais severa pobreza, vai, ainda na adolescência, trabalhar numa casa de doces e posteriormente num atelier de costura. 

Linda  jovem, de cabelos bem ruivos, olhos profundamente azuis e pele bem clara. Dizia-se que sua única riqueza era sua admirável beleza.   Mas , um certo dia, um homem bem mais velho a convida para tomar uma café e comer alguma coisa , ela aceita e, de repente, ele a empurra para dentro de um beco escuro e a estupra. A garota, provavelmente, fica aturdida e não entende a princípio o quê aquilo poderia significar. Mas, em  pouco tempo, ela faz daquele momento sua LIBERDADE. A princípio como Lorette, nome que se dava às jovens bonitas que trabalhavam nos ateliers de costura e que depois de assistirem a missa na Igreja de Nossa Senhora de la Lorette, ficavam a espera de algum senhor que quisesse gozar um pouco da juventude das garotas. Por esta razão , eram chamadas Lorette.  Algumas vezes, posou para o pintor |Jean Baptiste Camille Corot , que se encantara com sua beleza. E assim, levava a vida. 

Mas , logo compreendeu que poderia ter muito mais e ,com sua beleza e inteligência, tornar-se livre. Mas a prostituição era proibida na França , e se apanhadas teriam os cabelos  cortados e a cabeça raspada.  Ela suportaria ! Não era seu projeto esperar os clientes , mas escolhê-los . Para chegar a uma escala superior , ela devia ser uma "demi-mondaine", mas para isto teria que refinar-se , ter certa cultura. E ela decide aproveitar todos os momentos de folga, entre suas várias atividades,  à leitura, sobre diversos assuntos. Uma  "demi mondaine" devia saber conversar e agir de certa forma. E seu empenho tem sucesso. Torna-se a grande rainha das  "horizontales". Seu trono é aquele diante do qual os homens se curvam e as carteiras se abrem. Frequenta os melhores salões, e restaurantes . É desejada pelos homens e invejada pelas mulheres.

Algum tempo depois, envolve-se com um jovem oficial , com quem tem duas filhas. A relação dura cerca de dois anos , pois ela não tinha nenhuma vontade de abandonar sua profissão de cortesã. Sempre em busca de alçar-se ao mais alto do que escolhera, ela tem a idéia de mudar seu nome. De Emilie, torna-se Valtesse, contração de Votre Altesse. E  seu sobrenome burguês, ela separa , acrescentando um "de"  de nobreza , tornando-se "de la Bigne". Agora é "Comtesse Valtesse de la Bigne " Genial idéia  que transforma a outrora jovem Lorrette  em uma condessa. E isto é importante, nos Salões que agora frequenta. 

Seu primeiro amante oficial, é o músico alemão, radicado em Paris, Jacques Offenback , autor de belíssmas operetas. Para quem conhece Paris, há na Place de l'Opéra, à direita , olhando para a a Opera, um belíssimo prédio, estilo Haussimaniann, onde uma placa indica o apartamento do músico. Offenback era casado, mas terrivelmente infiel. Encanta-se com a beleza de Valtesse e se torna seu amante durante cerca de três anos. Isto sem que ela deixe a "courtisanerie". Sua aparição em uma opereta, sem sucesso de palco, acaba por proporcionar-lhe maior sucesso na profissão que escolhera. Sua cama, em bronze dourado, inspirada no leito de Luís XIV, com seu baldaquim, espécie de teto, decorado  com suas pretensas armas de nobreza, está hoje exposta no "Musée´des Arts Décoratifs", em Paris. Fazia parte de um belo palacete, no conhecido Boulevard de Sebastopol, presente de um de seus amantes apaixonados.  Por esta cama passaram artistas, escritores, reis , diplomatas. Valtesse era extremamente organizada e minuciosa, anotando o nome de todos seus clientes, quanto lhe pagavam, suas predileções. Desde que estive de acordo, nada a impedia de satisfazer as mais estranhas predileções. 

Um dos mais famosos restaurantes  frequentados na Belle Epoque , e ainda existente, chamado La Perouse, localizado na Rive Gauche, conta muita história.  Há ali o que chamavam de Salon Privé , onde os casais poderiam se encontrar livremente. É preservado um espelho riscado, mostrando  o quê faziam as cortesãs para testar os diamantes, que muitas vezes, lhes serviam de pagamento para os serviços prestados. Hoje pode servir de sala de reunião, tendo, evidentemente, a sua antiga utilização sido abandonada.

É retratada por Edouard Manet, o grande pintor impressionista, que também utilizou seus serviços, e serve de inspiração a Emile Zola, para uma de suas obras rimas "Nana". Enfim, sucesso absoluto para esta mulher de quem diziam que seu único bem era sua beleza. Glória para esta mulher , saída da mais absoluta pobreza, mas que com sua beleza, inteligência e astúcia coloca a cidade a seus pés, ainda que sua vida transcorra à margem da sociedade.

Aos cinquenta anos , resolve se retirar , e compra uma mansão em Avray, localizada entre Paris e Versailles. Alí reune outras jovens, aspirantes à arte da "Courtisanerie". Ali está Liane de Pougy, de quem falarei mais tarde. Liane é uma de suas alunas, e também uma de suas amantes. Na verdade, Valtesse,  assim como  Liane jamais ocultaram sua bissexualidade. E dizia ela,  claramente, que se o amor com os homens era por trabalho , com as mulheres era por prazer. em Em 1906, certa de que se aproxima o fim, escreve do próprio punho  seu testamento, deixando fora de sua imensa fortuna  sua própria família e até suas filhas. E proíbe que qualquer membro  da família esteja presente no seu velório ou enterro. 

Em 1910, tem um AVC e morre alguns dias depois. Seu túmulo, está no cemitério de Avray . O  monumento colocado sobre ele  desapareceu, mas o túmulo ainda pode ser visitado, como foi no caso da jornalista francesa que discorre sobre ela , que homenageou-a com um lindo buquê  de flores.  

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

 La plus grande  horizontale du XIX siècle

Antes de falar destas mulheres que venderam seus corpos, para comprar sua LIBERDADE, é preciso se reportar a esta sociedade patriarcal , existente no século XIX, em que a mulher só existia para os afazeres domésticos, ou para procriar. Os salários  eram irrisórios e se quisessem seguir sua vida sozinhas, só lhes restava duas  opções : a vida  miserável, como vimos que acontecia com as "vendeuses" , obrigadas a um trabalho forçado de 14 horas, de pé , ou à prostituição. Isto quando tinham a sorte de ter atributos físicos. Aliás, esta profunda desvalorização da mulher vem de tempos muito antigos,  mesmo na Grécia de grandes pensadores , artistas e arquitetos , a mulher era confinada ao Lar, chamado Gineceu. O exemplo bíblico da mulher adúltera é sinalizador desta anomalia; ela deveria ser apedrejada , mas não o seu amante. 

Enfim, para não me alongar numa enorme lista de discriminações , vou começar a falar destas que optaram por outra coisa. E tenho certeza, de que, no  século XXI , ninguém pensará que se trata de apologia à prostituição. Aliás, me orgulho de haver sido sempre, ao longo da vida, uma mulher  independente, vivido de meu trabalho honesto e eficiente, procurado sempre me alçar ao mais alto, sem depender de casamento, o quê me rendeu sérios embates com meu pai. Não vou dizer "uma mulher livre", porque já fui pejorativamente assim qualificada.

A primeira destas mulheres, denominadas "cocottes", "mondaines", "horizontales" chamava-se Thérèse Lachmann,  judia, nascida em 1819, num gueto de Moscou.   Era filha de um miserável vendedor de retalhos velhos , que para assegurar-lhe , talvez, um futuro mais estável, mandou batizá-la cristã. Ainda muito jovem, seu pai resolve entregá-la a um pobre  alfaiate, francês, que , tendo em vista sua pobreza, era obrigado a morar naquele gueto  judeu. Um ano depois, Thérèse , continua na miséria, trabalhando na casa e cuidando de uma criança .Um belo dia, enquanto o filho dorme e o marido trabalha, ela embrulha suas poucas roupas num pedaço de pano e segue adiante. Mulher corajosa, ciente dos perigos que corria  uma judia naquela Rússia czarista, onde existiam pogroons ( ataques a Judeus ), como a Noite dos Cristais na Alemanha Nazista. Pretende atravessar a fronteira , que jamais mencionará qual, vivendo de seu corpo. Chega a Constantinopla , execrada por todos , e segue sempre. Enfim, vendendo-se pelo caminho, chega a Paris, onde procura comida e um lugar onde possa descansar seu corpo exausto, não importando quão sórdido  fosse. No quartier Saint- Paul, há muitos judeus , que a fazem lembrar o miserável gueto de sua infância, que deixara para trás.  

Como diz um de seus biógrafos Pierre Dominique: " Thérèse , só tem seu corpo para escapar do quartier Saint -Paul. E ela usou. Duro ofício . Numa noite gelada de dezembro, pobre prostituta, com um roupa inadequada e sapatos furados , sem haver nada comido, ela desce os Campos Elíseos e desmaia num banco." O que ela ignora é que este Jardin d`hiver, diante do qual caiu, em alguns anos, será demolido e em seu lugar, construído um magnífico palácio, SEU, que ainda hoje existe na famosa avenida, e cujo luxo nababesco  atrai especialistas.( Uma visita pode ser vista no canal do YOUTUBE "Les Trésors des Hôtels Particuliers")

A história de  Thérèse é longa e cheia de infortúnios e glórias.   Com o dinheiro economizado, com sua beleza, carisma, e aguda inteligência atrai grandes personalidades. Certa vez, vendo no pianista austríaco, Henri Herz, uma possibilidade de sucesso, e tendo assistido inúmeras vezes a seus concertos, (é verdade que amava a música), a cortesã simula um desmaio. É acudida por muitos , inclusive  pelo virtuose,  que se encanta  com aquela desconhecida. Mas, afinal, quem será ela? De onde vem? Qual seu passado? Sem se importar, leva-a para morar com ele. Tudo "comme il faut"! Agora são Monsieur e Madame Herz e têm uma filhinha. O músico é rico, e possui uma manufatura de pianos. Nada está mais na moda do que ter um piano Herz. Mas esta devoradora  de dinheiro leva-o à ruína. E ele é  obrigado a partir para a América. Sem haver se casado, a família do músico,  revoltada, expulsa-a do apartamento. Por essa época,  ocorre a Revolução de 1848, que, como todas as Revoluções, não é conveniente ao comércio da galanteria.  

Mas, logo surge uma barão português, imensamente rico em terras e em dívidas, o quê Thérèse não sabe. Ele é atraente e lhe traz um título de nobreza. Casam-se , já que o casamento com o pianista  não fora efetivado. Casamento na Igreja Católica e também no civil. Seu primeiro marido Villoing  , o alfaiate, havia retornado à França com o filho e "...e tem a feliz idéia de morrer em 1849!"  Logo, Thérèse está livre ! Mas se o título lhe trouxe a nobreza, o marido lhe trouxe problemas. Beberrão, mulherengo, a endivida! Logo ela! E um belo dia, ela se cansa. Coloca-o fora de casa, e manda-o para um hotel. Quer recomeçar sua vida. O ano é 1853.  Pleno Segundo Império. 

Mas , afinal, o título e o nome lhe trazem sorte. Durante anos, La Paiva , como é conhecida, é mal vista, sussurra-se sobre seu passado, mas ela continua a frequentar os lugares de elite. Até o surgimento de um certo rapaz vindo de  uma região chamada Silésia entre Polônia e Alemanha. Riquíssimo, queria gozar a vida, e logo que conhece Thérèse se apaixona , apesar de ser onze anos mais jovem do que ela. Agora, chegou a hora da revanche sobre  todos aqueles que a desprezaram.  Vive no luxo, e comenta Napoleão III, que seu camarote tem mais conforto do que o da Imperatriz Amélia.  

No seu palacete, o leito proposto pelo arquiteto, extremamente caro, é recusado por ela, que achava que poderia valer o dobro. Tudo sob o olhar complacente do amante. Conta-se que num baile da pequena burguesia, tão comum naquele tempo, duas garotas pobres espiam o palacete e uma diz à outra: "Um palacete como este!!! Ao que a outra retruca: "Fácil, basta tirar a calcinha!!"  Mas em julho de 1870, a partir de uma tramoia de Bismark, o Chanceler prussiano, Napoleão III dá um passo em falso e declara guerra. Objetivo de Bismarck , reunir os diferentes reinos e ducados e formar o Estado Alemão. A França é vencida e Napoleão III tem que abdicar.

Por sorte sua, Paiva havia se suicidado, o quê ela comemora. Agora, totalmente livre e pode casar-se com seu amante. Nesta época, a cortesã já era, para os padrões da época, uma mulher madura. Havia engordado, seus traços semíticos tornaram-se mais pesados. Olhando para a imagem da noite e do dia, pintadas no teto de seu palácio,  aquela não parecia, a mesma mulher. Mas seu amante continuava apaixonado! Qual seria seu sortilégio sexual?

Mas era preciso tomar uma atitude. Prudência exigia deixar a França. A cortesã , obesa , e ainda coberta de diamantes,  lança um último olhar a seu palácio. Alguns anos depois,  morre, na agora Alemanha, num estranho castelo que tenta imitar aquele de Paris.  O motivo  de sua morte? Uma hipertrofia do coração! Justo ela, que jamais tivera um!

Proximamente, postarei a história de outras cortesãs que deixaram seus nomes na história da galanteria .




















XIX

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

 O Segundo |Império e  o Barão Haussmann

Conta-se que no século 14, tendo uma carroça removido o lixo acumulado nas ruas de  Paris , o rei Felipe Augusto, atingido pelo mal cheiro, desmaiou. Verdade ou não, Paris era um esgoto , uma lixeira a céu aberto. Há um poemeto  de um poeta francês , que , infelizmente , não encontrei , onde conta as desventuras daqueles que atravessam as ruas de Paris. Na verdade, nunca uma cidade sofreu tamanha transformação em tão pouco espaço de tempo. E é sobre isto que pretendo discorrer .

Depois de aventuras rocambolescas fora da França,  Luís Napoleão Bonaparte, mal conhecia Paris, segundo conta um de seus maiores desafetos, Victor Hugo, que o havia apoiado antes do golpe. É preciso notar que duas revoltas populares haviam eclodido , uma em 1830, que inspirou ao romancista, teatrólogo  e poeta, seu magnifico romance  "Os Miseráveis" , havendo derrubado a família Bourbon, do que se chamou Restauração e  outra em 1848 , que derrubou o chamado Rei Burguês , Luís Felipe, de outra  família nobre, Orléans prima da primeira. A estratégia dos insurretos eram as barricadas que se  erguiam nos becos estreitos da cidade, e que impediam a passagem das forças militares. E com esta estratégia perigosa era preciso acabar. 

Já algumas tentativas de saneamento da cidade haviam sido feitas , mas era preciso muito mais .  Rambuteau , cujo prenome me escapa , eleito prefeito em 1833, sob Luís Felipe, já se preocupava com os seríssimos problemas de saneamento , sobretudo no centro da cidade, e que atingia seriamente  a população laboriosa. Rambuteau é hoje uma estação de metro e uma rua . E sem esquecer o prefeito  Poubelle , que exigiu que o lixo fosse depositado em latas, e não jogado diretamente na rua. E  seu nome significa hoje em francês "lata de  lixo" . Mas , apesar da preocupação de  Luís  Felipe, a cidade continuava imunda e uma epidemia de  cólera explode em 1832  matando impiedosamente a população mais pobre. E ainda convém citar outros precursores como Hippolyte Meynard , cujo projeto urbanístico pode ser considerado precursor daquele de Haussmann . 

Havia duas preocupações no grande projeto de Haussmann; impedir as barricadas e sanear o centro imundo da cidade. Ruas que eram verdadeiros becos  asquerosos, onde o sol jamais penetrava. Antigas habitações de nobres arruinados ou exilados eram elevadas pelo acréscimo de andares superiores, usando material  vindo de demolições, e que se  acrescentavam ao acaso. A classe média se afastava do centro e preferia morar  na Rive Gauche. O poeta Restif de la Bretonne, a propósito da largura das ruas, explica que "duas pessoas não podem passar a  não ser que se abracem. "  Nas moradias mais pobres , sem haver banheiros suficientes , as fezes se acumulam e descem pelas  escadas, provocando terrível mal cheiro e sérios problemas aos moradores que pretendam chegar à rua. Nos becos imundos e sombrios , abunda a prostituição, único meio de sobrevivência. Com aluguéis inacessíveis, explorados pelo que se chamava de "vautour" (abutre) muitas vezes os cômodos alugados  por hora, representem a melhor descrição da miséria absoluta. Tal é a descrição que nos oferece um jornalista ao visitar um deles. "É inacreditável! Numa grande cama imunda , se acomodam adultos e crianças, igualmente imundos. O cheiro é de tal forma repugnante, que não há forma de suportá-lo mais  do que alguns minutos."

É pois, este ambiente repulsivo,   esta cidade  medieval, onde vive uma parte da população , que  Haussmann deve transformar na bela Paris de hoje . E para isto não há obstáculo que o impeça. Seus críticos , a começar por Victor Hugo , chamam a atenção por sua obsessão pela linha reta. E ele não hesita em demolir seu próprio palacete , que obstruía  seu projeto. Traça avenidas largas e demoli o que estiver pela frente , havendo mesmo um mal entendido com o Imperador. Prolonga a rue de Rivoli, começada por Napoleão I indo até o Louvre. Traça, senão todas, grande parte das avenidas da Place de l'Etoile. Nesta época surgem os Grands Magasins , como "Au Bon Marché " , creio que o mais antigo . Les Magasins Réunis" , " Le grand Magasin Du Louvre", que conheci, quando criança, e onde ganhei  não me lembro o quê ,  na Rue de Rivoli, desaparecido no fim da década de 70 ou ínicio de 80. O último foi "Les Galeries Lafayette", surgida já na 3a. República , lá por 1913, com sua magnifica cúpula Art Nouveau. E sem esquecer "Le Printemps" . As vendedoras destes grandes "magasins" eram obrigadas a ficar de pé cerca de 14 horas  e como isto acontecia antes das leis trabalhistas , não havendo férias, levavam uma vida miserável. Além de serem mal pagas. Mas, evidentemente, havia uma burguesia "aisée" que frequentava este lugares.

E a classe operária expulsa do centro , que agora trabalhava na construção da nova Paris? Havia se transferido para a periferia . Segundo conta um desses trabalhadores , devia se levantar às 4 horas , andar 2 horas para chegar às 6 ao local de trabalho, e  às 18 horas fazer  trajeto oposto , para recomeçar tudo no dia seguinte, Não consegui saber quantos dias por semana. Tudo isto sem férias! As reformas trabalhistas surgiram já no fim dos anos 30 , mais precisamente durante o chamado Front Populaire, pouco antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial.  Uma canção dos anos 40, cantada pelo grande ator, e por vezes cantor,    Jean Gabin, conta que os operários não sabiam o quê fazer deste novo tempo ocioso. 

Mas sob o II Império, havia também os "chiffoniers", que corresponde a nossos catadores de lixo e que , ao fim de cada jornada, levavam para casa o material recolhido que era separado até o amanhecer. Os longos fios cabelos , que se amontoavam no lixo , eram cuidadosamente separados para fazer perucas. E enquanto isto a cidade se expandia , construindo este Paris que hoje conhecemos. Valeu  a pena ? Penso que sim, mas as custas de um enorme sacrifício do povo miserável. 

Há ainda muito a contar sobre a grande urbanização de Haussmann, e a vida da população durante o II Império, mas as fotos podem contar estas histórias. Qualquer dia volto a falar destes dois personagens, Barão de Haussmann , um protestante sisudo e o aventureiro debochado, Luís Napoleão Bonaparte. Como disse um Hervé Maneglier , estudioso do II Império, nunca se poderia imaginar que duas pessoas  tão opostas pudessem dar nascimento a uma cidade tão excepcional .

E como diz Maurice Chevalier, numa de suas mais belas canções : "Paris sera toujours Paris, La plus belle ville du monde ! "























































































































































































































































































































































































































































































 

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

 O segundo Império

"Quanto a este que usurpa meu nome  , o santo padre  bem sabe que , graças a Deus , ele nada é para mim. Minha desgraça é estar casado com uma messalina que procria" Esta carta foi escrita ao Santo Papa Gregório XVI por Luís Bonaparte, irmão caçula  de Napoleão. O então Imperador o havia nomeado Rei da Holanda e lhe  havia imposto como sua esposa sua enteada Hortense de Beauharnais.   Sua mãe, Josefina, havia nascido na Martinica, foi para a França aos 16 anos e , por imposição, acabou casando -se com Alexandre de Beauharnais. Durante o período mais sangrento da Revolução, quando reinava o chamado "Comitê de Salut Publique ", dirigido por Maximilien de Robespierre, e onde se reuniam as lideranças mais radicais da Revolução Francesa, como Saint -Just e muitos outros, quase todos oriundos da classe média de advogados.   E é bom lembrar, que a Revolução Francesa é um grande movimento do burguesia. Alexandre, que era nobre e militar, perde uma batalha e é acusado de tê-lo feito propositadamente  e condenado à morte na guilhotina. Por alguma razão, que nos  parece estranha , Josefina também é condenada. Consumada a execução de Alexandre, alguns  dias depois deveria ser a de Josefina. Conta-se que na  hora em que vieram buscá-la , ela desmaiou e naquela atropelo foi esquecida naquela cela imunda , cheia de ratos e baratas , onde havia sido confinada durante meses. 

Pouco depois, há a queda de Robespierre e seu grupo, sendo todos guilhotinados , um dia depois do assalto, sem julgamento .E assim Josefina retoma sua liberdade e seus dois filhos Eugène e Hortense , que haviam ficado com uma tia.  Seu primeiro amante é um político rico e importante chamado Paul Barras. E foi ele que apresentou Josefina a  Napoleão. E a paixão foi imediata, sobretudo por parte dele. Suas cartas de amor demonstram a necessidade dela e de sua intimidade.  Em 1796 , casam-se, apesar de Josefina ser seis anos mais velha. Napoleão,  nesta época, era somente um militar corso, sendo a Córsega , uma possessão francesa.  

E a vida segue. Hortense torna-se uma bela jovem, loira e frívola. Luís havia aceitado os dois primeiros filhos , de cuja paternidade ele sempre desconfiara. Mas este terceiro, era uma ofensa. Sabe-se  que Hortense , como sua mãe, era dada ao adultério e que esta  terceira gravidez fora fruto de uma viagem que fizera  aos Pireneus e da qual o marido não participara. De qualquer forma, foi obrigado a dar-lhe seu nome e este filho ilegítimo passou à história com Napoleão III, já que o Napoleão II, denominado Rei de Roma, crescera na Áustria, terra de sua mãe, segunda esposa de Napoleão Bonaparte, quando este já estava exilado. A juventude deste Terceiro Napoleão foi recheada de aventuras. Vestindo uniforme militar, simulou um golpe a Luís Felipe, da casa de Orléans, chamado o Rei Burguês. Luís Felipe sucedera à Restauração, quando houve a volta da família Bourbon ao poder ( era o reinado constitucional  de Luís XVIII, irmão de Luís XVI ,que fora guilhotinado) . Com a Revolução de 1830, foram destituídos e à Restauração deu lugar a uma monarquia dita burguesa, que teve fim em 1848. Mas antes de 1848,  com alguns comparsas, este que seria Napoleão III , simulou um golpe, Sua sentença foi  exílio na América, não se sabe ao certo em que país. Alguns anos depois, voltou do exílio para acompanhar a mãe prestes a morrer de câncer. 

Uma nova tentativa de golpe ,condena-o à prisão perpétua, na fortaleza de Ham, de onde, não se sabe como, consegue fugir. Desta vez, desembarca em Londres. Lá conhece uma prostituta  de homens ricos, que havia feito considerável fortuna. Neste meio tempo, Luís Felipe é deposto  e foge da França, enquanto o pretenso sobrinho de Napoleão vive, numa luxuosa mansão,  às custas de sua prostituta de luxo, Harriet  Howard. 

Voltando à França , resolve concorrer para uma cadeira para o Legislativo.  Ganha em vários distritos , mas é proibido de voltar a França, sendo um fugitivo. Posteriormente, penhora os bens herdados de seu pai e também de sua amante .  Concorre novamente, ganha e instala-se em Paris nos lugares de mais alto padrão , sempre ao lado de sua amante.  Baseando-se numa enorme insatisfação popular e no patrimônio político do tio (?) , sem esquecer a fortuna da amante , consegue ser eleito Presidente, concorrendo com o General Cavaignac e o poeta romântico Lamartine. E assim , o ex- condenado à prisão perpétua, torna-se Presidente da França. Mas, ele queria mais. Como seu tio, queria tornar-se Imperador. E no dia 2 de dezembro de 1851, às seis horas da manhã , com o Exército a seu lado , dissolve a Assembleia e dá fim à Segunda Republica, sendo a Primeira aquela da Revolução Francesa. Victor Hugo, que o apoiara para a Presidência, e era deputado revoltou-se e conseguiu exilar-se. Artistas, que sempre odeiam as ditaduras, como o pintor Edouard Manet, tiveram que refugiar-se para evitar a morte ou a prisão. Em Paris, insurretos eram mortos e no cemitério de Montmartre os corpos se amontoavam. Napoleão , o pequeno, como o chamava Victor Hugo, estava certo de que seu destino era semelhante ao de seu tio e lembrava-se sempre do que lhe dissera sua mãe, Hortense, "Se você repetir uma coisa muitas vezes, acabará acreditando" . O quê lembra o que disse Joseph Goebbels,  o Ministro das Comunicações Nazista : "Uma mentira repetida infinitamente, acaba por ser verdade" 

Louis Napoléon Bonaparte foi inegavelmente um gênio político , que com sua mentiras e artimanhas enganou o povo mais culto da época, enganou  grandes artistas e intelectuais.

Bem o que tentei resumir até agora é o pior lado deste homem que marcou a Historia . Agora , resta falar algo de importante que fez e mudou a cidade de Paris

E para finalizar quero lembrar uma frase de Karl Marx, justamente a respeito de Louis Napoléon Bonaparte: " A história se repete como farsa." 

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Uma alma  simples.

Para minha  inesquecível vo´Cacá 

 

Foi lá pelos últimos anos do século XIX, que veio ao mundo uma alma superior , uma criança que se  tornaria uma das mais nobres  mulheres que conheci em minha vida. Nasceu em Caeté , uma cidadezinha histórica, linda, como costumam ser as cidades históricas mineiras. A criança foi batizada como Maria do Carmo em devoção a Nossa Senhora do Carmo.  Chegou como viveu e como partiu , amando e inspirando AMOR, o mais nobre dos sentimentos , como assinala São Paulo , em sua Carta aos Corintos. O parto foi feito por  sua avó, da mesma forma que o parto de sua mãe fora feito por sua bisavó ,  e assim por diante. 

Cacá , como era conhecida, era uma linda criança de cabelos loiros ,  rostinho e traços arredondados. Nasceu na fazendo de um certo Bernardo. E ali , havia um regime feudal , com um senhor Suserano, um representante da Igreja, que exercia a função importante de manter na humildade o resto daquela sociedade medieval. Nada questionavam , porque , afinal ,  esta era uma   regra de Deus. que um padre, cuidadosamente, lhes incutira na cabeça durante séculos. Sempre fora assim,  e assim seria pelo resto dos tempos. Seus antepassados haviam vivido assim,  e assim viveriam  seus filhos, netos e bisnetos . Não havia neles nenhuma  revolta ou desejo de progresso. 

Ela tinha cerca de quinze anos quando lhe foi apresentado em pretendente. Chamava-se Valentim. Era alto, magro, de olhos azuis. Mas não era somente um pretendente, era já seu noivo. Naquela sociedade patriarcal, não havia lugar para desejos ou paixões. Eram jovens, e deveriam procriar, afinal era  função do homem fecundar e da  mulher parir. E foi assim que Maria do Carmo casou-se com Valentim dos Reis. A casa, tão humilde quanto a anterior, parecia-lhe maior, já que tinha menos habitantes, e por que não , linda. Não cansava de cuidá-la, de enfeitar com seu parco enxoval, feito por ela, pela mãe e tias. O chão de terra batida era respingado com água e varrido cuidadosamente com a vassoura feita de ramos de árvore. Cerca de dez horas , quem passasse pela estrada defronte à casinha podia sentir o cheiro gostoso de alho frito na gordura de porco. E se fosse um conhecido, e pedisse um prato, ela o convidaria a entrar e almoçar. Se fosse um desconhecido também comeria, mas não seria convidado a entrar , já que se tratava de uma senhora casada.

Feitas as tarefas domésticas, Cacá embrulhava as duas marmitas em uma toalha bem alva e rumava em direção à roça , onde Valentim já labutava desde  bem cedo. As vezes, parava para bater um dedo de prosa com alguma conhecida, que também ia trabalhar na roça. Se havia muito sol , Cacá amarrava um lenço na cabeça. Naquela sociedade medieval, não havia lugar para vaidade. E nem para distrações. Somente, aos domingos , quando havia quermesse depois da missa, era permitido saborear alguma guloseima, ou brincar de alguma coisa. E Cacá sempre lembrava do primeiro sorvete que saboreara na vida. Doçura inesquecível!

Conforme estava estabelecido, os filhos foram chegando: Armando,  Sebastião, Sebastiana, José Carlos , Valdemar, Maria , Alzira, Antônio. E esta mulher guerreira, inteligente, sabendo o valor do saber, apesar de suas duras tarefas ,  ensinou a cada filho a ler; o quê lhes possibilitou mais tarde uma melhoria de vida. Ela fora alfabetizada por sua mãe, que fora alfabetizada por sua avó, que fora alfabetizada por sua bisavó e assim por diante. Isto nos mostra um desejo, ainda que  muito longínquo de  progresso. 

Quando eu os conheci, haviam mudado para a cidade e moravam naquela estranha Rua Costa Carvalho, que hoje está totalmente mudada.  Valentim já havia falecido e a viúva vestia-se sempre de preto. Naquele tempo, as crianças viviam em total democracia,  brincando filhos da classe média com filhos de proletários. E todos nós adorávamos o café  moído na hora,  a broa feita na panela de pedra, e as rosquinhas lindamente  trançadas. Lembro-me da chegada de Joaquim com seu burrico;  a  criançada se alvoroçava para dar uma voltinha. Sentada sobre as toscas pranchas , com restos de areia, eu fechava os olhos e me imaginava Cinderela sentada na sua carruagem, conduzida por cavalos brancos e com o majestoso cocheiro Joaquim.

E era em sua humilde casa que me refugiava quando alguma coisa me ameaçava. Quando vieram para a cidade, encontraram duas coisas fantásticas : luz elétrica e água encanada. E havia ainda dois prazeres  que mudaram o mundo, inacessíveis na roça: o rádio e o cinema. Mas eles pouco gozaram. O pequeno aparelho de rádio ficava na sala sobre uma  prateleira. Às seis horas  em ponto, já estando todos em casa, acendiam o radio para a Ave Maria. Postados diante do aparelho, que servia como altar, contritos, com o terço na mão oravam durante bastante tempo. Depois disto, apagavam o rádio, e  se punham a alguma obrigação. Jamais um programa cômico, um noticiário, nada, nada. Também iam , toda Sexta- feira Santa ao cinema. O filme era sempre o mesmo , "A vida de Cristo" do estúdio francês Gaumont, dirigido por Alice Guy, a primeira cineasta , lá pelo ano de 1906. Colorido a mão, mostrava truques extraordinários para a época em que foi produzido, como a Ascenção de Cristo , de expressão bastante diabólica  no meio  de nuvens rígidas , comtemplado por apóstolos hirtos , que mostravam seu êxtase levantando mecanicamente os braços. O cinema era um conhecido pulgueiro da cidade, hoje, se não me engano transformado em estacionamento. Jamais na vida foram a outro cinema ou assistiram a outro filme!

E mesmo quando as atividades profissionais de meu pai me levaram para longe, nunca deixei de lhes enviar um cartão, uma cartinha em que desenhava um coraçãozinho. E quando voltei à cidade, depois de vários anos fora, sempre ia visitá-los . "Oi de de dentro! Oi de fora! Nesta época, vovó Cacá , como eu a chamava, já havia falecido. Aqueles longos anos de duro trabalho  havia enfraquecido sua saúde. Hoje todos já partiram. E ao pensar nisto. lembro-me daquela lenda indígena que conta a história de um índio que, seguindo um tatu , entrou no seu buraco, e tendo penetrado fundo na terra fria e escura , descobriu, subitamente, um lindo lugar , onde brilhava o sol , o céu era infinitamente azul , havia água fresca , com peixes coloridos, lindas aves, e flores. Era o Paraíso . Tenho a convicção, que ao partir, tendo atravessado o escuro  túnel  que separa os vivos dos mortos, os encarnados dos desencarnados,  Cacá encontrou  Valentim e esperou ao lado do marido cada um dos seus filhos. 

E , quando chegar minha hora, estou certa de que ,tendo feito o mesmo trajeto, encontrarei este lindo lugar , assim como todos aqueles que amei e perdi. 

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

 Souvenirs d'enfance

Hoje quero conversar sobre minhas mais antigas lembranças. Lembro-me de  minha mãe me embalando na velha cadeira de balanço , que não sei com quem está, ouvindo , acho eu, as famosas novelas da Radio Nacional. Eu devia ter uns dois anos e esta é uma das lembranças mais antigas e amorosas que tenho. Mas ainda há outras , mais antigas, eu devia ter seis ou sete meses e estava sentada numa espreguiçadeira ( será que alguém sabe o que é ? ) com meu pai. De repente, ele  sumiu e me vi só, devo ter ficado assustadíssima  e abri um berreiro, meu pai aproveitou a ocasião e clicou. Tenho a foto e se encontrá-la vou postar. E ainda outra, de fraldas , batendo com a tampa de uma panela no assento de  uma cadeira. Tudo isto é tão antigo! Acho que foi algum tempo depois da execução dos carrascos nazistas. 

Havia pouco tempo que meu pai fora transferido do Rio para Juiz de Fora. Na verdade, fora transferido para Santarém , no Pará. Por sorte, conseguira trocar com um colega paraense, já que a distância era enorme para o Rio Grande. Fomos morar  num  bangalô dos anos 30 com um pequeno jardim , onde eu gostava de brincar. na rua Costa Carvalho 113. Lá eu nasci. Tinha algumas amiguinhas , que, evidentemente, perdi de vista. Havia Maria , filha de dona Olimpia, que fiquei sabendo depois morreu no Hospício de Barbacena, horror que deu origem ao livro da talentosa Daniele Arbex, " Holocausto Brasileiro." Havia também um irmão, que minha mãe ficou sabendo mais tarde que morreu tuberculoso. Gente paupérrima, que morava num casebre de que não me lembro bem. Viviam não sei de quê , e quando vejo vidas trágicas como daquela família, tenho que acreditar na reencarnação, pois não posso acreditar que Deus , soberanamente justo e bom , permita que alguém viva em tais condições e que outros tenham tanta abundância. E havia também a filha de uma empregada , não sei de quem, que devia ter a minha idade , e brincava comigo. Lembro-me de que um dia , estávamos debruçadas no muro que cercava o jardim e passou uma mulher. Brincou com minha amiguinha e lhe sorri naturalmente, mas sua reação permanece intacta em minha memória; olhando para mim , a mulher disse com raiva : " Ela é bonita, você é feia."  Hoje , fico imaginando quanto recalque, quanta maldade havia naquela mulher. E chego a ter pena dela.

À  noite,  na rua mal iluminada , brincávamos de roda, de amarelinho , e já nem me lembro do quê mais. E havia o bêbado, que passava e sumia nas trevas que prosseguiam a rua. Sempre o imagino de capa preta e chapéu de abas largas , também preto. Me dava um medo terrível!!! Seria assim mesmo, ou  foi a minha imaginação  infantil que o produziu? Aquela era uma rua singular, de um lado havia  bangalôs de classe média e  do outro um correr de cerca de seis ou sete casas que haviam feito parte de uma fazenda. Pois do outro lado , morava , que eu me lembre, um caminhoneiro , e uma mulher , considerada a megera do bairro , e isto não sei porquê. Tinha duas filhas, que não brincavam com as outras crianças, mas lembro de que uma se chamava Ivone. Lembro-me bem do marido, macérrimo, que ela esperava na porta de casa. Nos fundos daquela humílima casa , havia uma espécie que barracão era era alugado para uma prostituta , de cujo nome não me lembro mais. Era uma mulher loura, certamente oxigenada, olhos azuis, magra, com um visível dentadura. Teresa contava que entrara uma vez na casa e ficara horrorizada com a pobreza, mas não me lembro mais dos detalhes. Parece que saia toda noite , a procura de clientes. Estes são detalhes que desconheço. Mas não posso esquecer minhas inesquecíveis Alzira e Maria. Todas as crianças do bairro adoravam sua casa, seu café, suas broinhas. Qualquer dia escreverei sobre esta família tão especial. 

Um dia, fiquei sabendo que iríamos mudar. Minha avó, que havia vindo do Rio Grande com a única filha que lhe restara, estava doente, e talvez uma mudança de ambiente lhe fizesse bem. Na verdade, minha avó havia ensandecido, o quê só fiquei sabendo muitos anos depois. Lembro que eu ficava sentada em varandas de casas desconhecidas,  esperando minha mãe. Visitámos dezenas de casas, até encontrarmos uma. Era uma vila, onde havia muitos militares. Eu tinha quatro anos. E justo no dia em que chegamos , minhas novas amiguinhas combinavam bater na filha da amante do pai de uma delas. Não entendi bem, mas  fiquei chocada. Subi correndo, aos prantos, as escadas ( morávamos no segundo piso) . E lembro-me nitidamente de meu irmão  me perguntando se haviam me batido. O resto da história , esqueci. A vila se chama Caruso e , para quem conhece Juiz de Fora, fica na rua Batista de Oliveira. Lá fiz novas amiguinhas, Evinha , cujo pai , capitão como meu pai, era amante da mãe de Ana Maria, aquela em quem queriam bater. Havia alguns " amiguinhos" , um dos quais encontrei no Facebook . Ele implicava comigo e eu batia nele. Depois, saia correndo  .  Hoje ,  ele brinca e diz que nunca mais apanhou de mulher. Mora em Vitória e contou-me que  sempre que vem a Juiz de Fora, procura passar pela velha vila de nossa infância. E havia a moça muito alta e loira, que descia a rua Batista, vinda do Granbery.  Achava-a linda, ou talvez , diferente. Um dia , ela parou de passar, achei estrando e perguntei a minha irmã , que a  conhecia bem, porque não a via mais. E Teresa me respondeu: " Ela morreu! " Engoli em seco, aquela moça , eu não veria mais. Seu nome era Sybille . E há várias versões para sua morte.     Até  há alguns anos , existia sua linda casa, em estilo hollywodiano. Ficava bem na esquina da principal rua do bairro , defronte a um lago que não existe mais. Quando morreu o último herdeiro, tive esperança de que fosse tombada. Mas, hoje , em seu lugar há um enorme prédio, luxuoso. Mas jamais tão bonito quanto à casa, que contava uma história. 

Um dia , vi a mãe de Ana Maria passar um bilhete para o major Mesquita (acabei de lembrar-me o posto e o nome) , corri para casa e contei para minha mãe, que me proibiu de contar para alguém. Teimei: " Mas eu vi , mãe. ! "Afinal, talvez sob ameaça , fiquei quieta, guardando este segredo , mas com a língua ardendo. Eu tinha sete anos quando meu pai, engenheiro militar , foi convidado a dar aula no Instituto Militar de Engenharia. e aí já é outra história. Mais uma mudança!!Rio de Janeiro de antigamente. Eu ia e voltava com o ônibus do colégio. Era vergonhoso! Mas havia tanta coisa boa.  Uma vez por mês, meu pai dava um dinheiro para minha mãe fazer compras no centro. Tomávamos o bonde o íamos até o Tabuleiro da Baiana, ponto final dos bondes. E |minha mãe , Teresa e eu fazíamos um lanche , não me lembro onde. Era o quê eu mais gostava. E também tinha o lanche nas quintas -feiras á noite na Sears , que ficava ao lado do colégio onde eu estudava "Anglo -Americano". Meu pai, profundamente anti-clerical,  só nos colocava em colégios  laicos, razão porque nenhum de nós três fez Primeira Comunhão. E a vida prosseguia sem nada de especial. Mas eu podia andar livremente com minha bicicleta  ,brincar com minhas bonecas, fazer roupinhas, pular corda. 

Até aquele dia de um certo mês de 1956, quando meu pai anunciou que íamos  para a França.    

      

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

 Uma criança brasileira em Paris.

No dia seguinte, trouxeram para nós um delicioso café da manhã , com um pãozinho em forma de meia-lua , que eu jamais havia visto. Fiquei maravilhada e de olho no de Teresa. A manteiga vinha em forma de caracol, mas não me lembro do resto. Acho que logo depois daquele primeiro dia, meu pai procurou alguma agência onde pudesse encontrar um apartamento. Só me lembro de um, em Ménilmontant , onde nasceu o grande compositor e cantor , Charles Trenet, eternizado  pela linda canção , que vou procurar e incorporar ao texto. Vi-o na televisão várias vezes, e suas músicas sempre me encantaram, como "Douce France" composta como um hino contra a ocupação nazista na França. 

Pois bem, um dia fomos todos , salvo meu irmão, que já maior não teve direito à ir conosco, tendo chegado cerca de dois meses depois, a este lindo bairro , com sua igrejinha.  Pois foi lá que me deparei com a casa mais linda que já havia visto.  A proprietária era uma senhora bem idosa, que usava um xale. As paredes , não me lembro se todas, eram forradas de seda grená .  E havia um piano!  Fiquei fascinada!! Imaginei-me sentada ali,  batucando nas teclas, provavelmente infernizando minha mãe. Afinal, eu era temporona, , inesperada, uma surpresa não muito bem vinda, mas extremamente mimada. Aliás, os tapas e beliscões  eram dadas por minha irmã, que, acho, tinha ciúmes. Mas, afinal, nada disto importa , o objetivo de meu pai era encontrar um lugar agradável, e perto de onde pudesse eu e Teresa pudéssemos estudar. Logo, a linda casa, com aquela velhinha de cabelos branquinhos, xale , certamente viúva, que era proprietária daquela romântica casa, certamente construída no século XIX, não preenchiam estes quesitos. 

Ficamos ainda algum tempo no hotel. Lembro-me do dia em que minha mãe me deu uns trocados para comprar um lanche numa espécie de "pâtisserie" que ficava a poucos metros do hotel. E até hoje consigo sentir o cheiro do lugar, Havia algumas pessoas que me atenderam e logo perguntaram : "Italienne" balancei negativamente a cabeça, sem saber  quê dizer, e lembro-me de uma das mulheres acariciar meu rosto infantil e dizer : "Mignonne". É interessante notar que sempre pensavam que éramos italianos e lembro-me de um dia em que raivosamente um francês disse: " Ces italiens !" Depois , nas múltiplas vezes que voltei à França , pensavam que eu era italiana.  "Prego signore" (desculpe-me minha amiga Regina, professora de italiano). E pasmem, muitos anos depois, estava em Roma com Teresa e italianos vieram nos pedir informações. 

Mas voltando a Paris, afinal, não sei como , acabamos indo morar naquela Avenue Mac-Mahon, que havíamos subido , extasiados com o monumental Arco do Triunfo. Era o número 10. O prédio, muitos anos depois descobri, havia sido construído em 1886, em plena Belle Époque. Havia um elevador hidráulico, que só subia. Era preciso puxar uma corda, e quanto mais força puséssemos , mais depressa subia. O apartamento ocupava um andar inteiro, com uma sala de jantar , uma sala intermediária e um grande salão com poltrona no estilo Luís XV . Havia três quartos , um banheiro e um local  que parecia uma pequena suite. E era ricamente decorado, com lareiras de mármore e portas espelhadas. Uma varanda circundava todo o apartamento e dela víamos logo acima o Arco e um pouco adiante a Tour  Eiffel. No primeiro andar, morava Monsieur Félix Hanfouet Boigny (?) , deputado da France d'Outre Mer, pela Costa do Marfim  -Côte d'Ivoire - . Notando que naquele tempo a França tinha colônias por toda parte. E incrível é que, muitos anos mais tarde, namorei um marfinês, um dos meus melhores namorados. Lembro-me de que na entrada do apartamento havia dois chifres de elefante, o quê  hoje me revoltaria imensamente. Minha mãe ficava perplexa ao ver entrarem nas festas,  mulheres louras com negros. É  verdade que o mundo dá muitas voltas....

No segundo andar, nunca descobri quem morava. No terceiro , uma família do Ceilão, atual Sri Lanka . As mulheres tinham uma marca na testa, andavam com sari e jamais levantavam a cabeça. No quarto , uma chilena, no quinto nós e no sexto outra família de militar. Meu pai logo tratou de me matricular na mesma escola  da filha do outro militar , mas não deu certo. Eu tinha que ir com a filha deles, Déa, que tinha chofer português a quem chamava de Manyel (à francesa) . Odiei tudo aquilo, e me recusei a continuar. Foi então que me meu pai me matriculou num Curso para crianças na Aliança Francesa, onde convivi com crianças do mundo inteiro. 

Mas o meu grande curso de francês foi feito nas ruas de Paris, onde fui tradutora de minha mãe. Eu conversava com as "vendeuses" , com os garçons , Traduzia o quê minha mãe queria dizer. Até à feira ia , às vezes com ela. Como era muito falante, fiquei fluente logo. Tinha uma colega tailandesa e fiquei sua amiga. E até  fui com Teresa almoçar em sua  casa. Assim como ela foi almoçar na minha, Tenho até hoje o seu endereço, escrito num pedaço de papel. 

E comprei outras bonecas, que dei há algum tempo para as crianças do Instituto Maria. E também um carrinho , e roupinhas que fazia como aqui. Só não andei de bicicleta nem pulei corda. Também lembro da sessão infantil às quintas -feiras , com desenhos e filmes do Gordo e do Magro. E do chocolate especial que comprava com os trocados que minha mãe me dava. 

Com a passagem de Bruno, perdi todo interesse em voltar a Paris. Sei que iniciei uma nova etapa, mas não sei quanto tempo durará. E espero , nestes anos que me restam, viver o melhor possível.

 

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

 Uma criança brasileira em Paris

Lembro-me do dia em que meu pai chegou em casa, exultante, e nos disse que íamos para a França. Ele era engenheiro militar , dava aulas no IME, e havia ganhado uma bolsa para Paris! O ano era 1956, não me lembro o mês. Eu tinha 10  anos e nenhuma noção do que fosse exatamente  este país. Um ano antes, havia vindo ao Brasil a atriz Martine Carol e seu marido, um diretor chamado Christian Jacques. Martine Carol se tornara famosa por haver sido a primeira mulher a expor os seios na tela . Era jovem, loura e linda , com corpo voluptuoso. Vi embevecida a entrevista , sem entender bulhufas e admirada em pensar que alguém pudesse se comunicar naquela língua! Isto cerca de um ano antes do anúncio de meu pai !
Quando fiquei sabendo que ia para a França, passei a brincar de cantora, pegava uma vassoura que fingia ser um  microfone, Inventava uma língua , e cantava uma melodia que me saia da cabeça  Mas antes de minhas "melodias" em língua desconhecida, eu gostava  de brincar de "moça" , o quê deixava minha irmã furiosa.  Punha seus saltos altos, brincos, passava batom, e andava pela casa, ou fingia que tomava chá com amigas. E ,evidentemente, além das bonecas, tão raras hoje em dia. Havia a Holandesinha, Susy, Débora,e um bebê , de cujo nome não me lembro mais , e que, provavelmente havia pertencido a  Teresa. Quando minha mãe me dava uns trocados , corria até uma loja onde vendiam retalhos e voltava para fazer novos vestidos. E também gostava de minha bicicleta. E de  pular corda, que levava para o colégio. E da merendeira que cheirava a coisa velha e que eu herdara de Teresa. Era dia de festa quando podia comprar um cone onde havia uma surpresa. Enfim, tudo muito singelo. Nunca consegui ganhar a casinha de bonecas com que sonhei tantos Natais, mas me sentia feliz com a mobilinha  de plástico rosa em que havia uma penteadeira, uma cama , e um armário. Havia também uma sala de madeira que eu reservava para as visitas. Armava tudo num canto de um cômodo vazio da casa.
Pois naquele dia, de 1956, tanta coisa que me fascinava devia ficar para trás ! Holandesinha, Susy , Débora e o bebê não poderiam ir comigo. Nem minha mobilinha de plástico, nem a da madeira, Nem minha bicicleta. Não me lembro se chorei, acho que fiquei alerta para a experiência que se abria diante de mim. Viajamos pela falecida Panair . Viagem longa , de não sei quanto tempo. Paramos em Dakar, capital do Senegal, e quando descemos do avião, tive a impressão de haver penetrado num forno. Negros vestidos a caráter, acho eu , nos esperavam e nos ofereciam água de côco bem gelada. Lembro-me de que no mesmo avião viajava Carmélia Alves, e seus músicos para uma turnê na Europa. E há pouco tempo atrás, vi no Youtube, um canal que trata das antigas cantoras do rádio. E lá estava ela, em boa forma. É claro que se tratava de uma gravação antiga. Havia outras também, de minha infância, como Carminha Mascarenhas. Mas, tudo isto ficou no passado, um passado bom, que gosto de recordar.
Na França, estavam nos esperando outros militares brasileiros. Eu era a única criança, já que fui filha temporona. O aeroporto era Orly, Charles de Gaulle ainda demoraria muito. Já haviam feito reserva em um hotel , justamente no 17e. arrondissement, onde viríamos a  morar. Ficamos em dois apartamentos diferentes e fiquei feliz com a banheira , onde poderia brincar de lanchonete, fazendo milk-shakes de espuma. Mas e depois?  Todos haviam voltado para casa, e nós estávamos com fome. Sem conhecer a cidade, meu pai se muniu de uma mapa e rumamos em direção aos Champs Elysées. Mas, antes de chegarmos lá, quero lembrar da garota francesa, mais ou menos de minha idade, que passou por nós conversando com alguém que devia ser sua mãe.  Fiquei extasiada!   Como era possível? Mas , ao mesmo tempo me convenci de que seria capaz de fazer o mesmo.
Subimos a Avenue Mac-Mahon, que foi Presidente da França no século XIX, e logo vimos aquele monumento imenso , todo iluminado, com a bandeira francesa tremulando do alto. Agarrada no braço de minha mãe, fizemos uma volta, passando por palacetes que rodeavam a monumental praça, nesta época chamada Place de  l'Etoile.  Enfim, após quatro avenidas penetramos naquela mil vezes iluminada, que parecia não ter fim. Não me lembro de minha reação após tantos anos, mas devo ter achado  estar noutro mundo.  Tantas vezes voltei lá, mas estou certa de que  jamais tornei a sentir aquele "frisson" daqueles meus  longínquos dez anos. Meu pai escolheu , ao acaso, um restaurante que me pareceu lindo e que nunca mais reencontrei . Comi um bife com um molho que meu pai disse ser de mostarda e manteiga, com fritas. Devo ter tomado Coca- Cola e alguma sobremesa "superbe ". Exaustos, voltamos para o hotel e dormimos......
O resto conto logo mais.  


sexta-feira, 20 de outubro de 2023

 Rumo à Bretanha  . Encontro com uma grande amiga.

Quando sentei no banco do trem que me conduziria a Saint-Nazaire, cidade que teve importância estratégica durante a Segunda -Guerra , senti que , afinal, havia saído do Inferno. Ainda estava febril, minha garganta ainda doía , mas tinha certeza de que passaria . Resolvi, e não sei como consegui,   esquecer meus problemas no Brasil , e acho que até cochilei. De repente, percebi que estava sentado a meu lado, junto à janela , um senhorzinho, tipicamente francês. Parecia um camponês e contou-me que ia passar férias na "campagne"  onde tinha família . Começamos a conversar , já não lembro mais sobre o quê . Ficou assombrado ao saber que eu vinha de um país chamado Brasil. Não sei se jamais ouvira falar , ou se pensava que  era habitado por índios   ou alienígenas. Escrevi meu  nome e endereço, com letra de forma  em um pedaço de papel, e ,algum tempo depois,  recebi um bilhete seu. O hilário é que não entendendo bulhufas , ele xerografou, imprimiu o que eu havia escrito, colando como endereço. Guardei e depois vou procurar. 
No meio do caminho, tirou de uma sacola um sanduiche de presunto e uma garrafinha de vinho, ofereceu-me e compartilhamos aquela refeição com tudo que adoro. Algum tempo depois, o trem fez uma parada e ele desceu num  campo  cultivado. Lembro-me de seu vulto sumindo enquanto o trem se afastava. E sempre me pergunto se lhe passei gripe. Hoje, tantos anos depois, estou certa de quê já se foi, mas parece que era um homem feliz.
Enfim, cheguei à Estação de Saint- Nazaire. Pequena , quase vazia. Ali , encontrei um homem gentil, que me ajudou com a mala. Em seguida , rumei para BELC, centro de estudos , onde ficaria alojada durante cerca de 40 dias.  E aqui começa um dos mais belos períodos de minha vida. 
Eu já estava quase curada,  e  tinha grande curiosidade de reconhecer o lugar. Saímos um grupo de estudantes, de várias nacionalidades, todos professores de francês. E foi a primeira vez na vida que vi uma búlgara , assim como ela era a primeira vez que via uma sul- americana , uma brasileira. E daí nasceu uma amizade que dura há 34 anos. Eu em Juiz de Fora, ela em Sofia. Por vezes , nos falamos pelo telefone do Whatzapp. E tanta coisa aconteceu em nossas vidas desde então. Nossas mães , que estavam doente faleceram pouco depois. Perdi meu irmão, meu cunhado e minha inesquecível Teresa. E agora se foi Bruno, ao encontro dos que o antecederam. Svetla casou-se pela segunda vez, teve uma filha, divorciou novamente,  e continua em Sofia , de onde me manda sempre fotos. Trocamos fotos e mando-lhe músicas brasileiras. Ela esta feliz, passa férias na Itália ou na Espanha. Diz-me que o Comunismo é passado.
Mas em 1989, a   Bulgária era ainda um país que vivia sob o regime, aquele que não deu certo em lugar nenhum. Lembro-me de certos acontecimentos que me marcaram e mudaram. Svetla estava sempre acompanhada de outra , que ela me disse ser a esposa de um coronel. E interessante notar, que foi lá que conheci o homem mais gentil de minha vida, por quem me apaixonei quase imediatamente. Nunca mais soube dele, mas guardarei sua foto e sua imagem para sempre  no meu coração. Guy , francês, era "detaché" na Bulgária, e me explicou muita coisa, inclusive a  constante presença da esposa do militar ao lado de Svetla.  Era  sua função vigiá-la , para que nada denunciasse, e que jamais tivesse um comportamento "inadequado"! Não entendi quando lhe ofereci uma cassette de Gal Costa e ela recusou horrorizada. Guy riu quando lhe contei. Svetla teria graves problemas se chegasse em Sofia com uma cassette , em uma língua  desconhecida  e acabaria na Policia. 
Um dia fomos ao Supermercado, sem a vigia; Svetla queria comprar alguns presentinhos para as amigas. Eram barrinhas de chocolate, um bombom , uma barrinha  de cereal. Mas , por mais singelos que fossem os "presentes" , o dinheiro não dava. Meio desesperada, ela jogou no chão todas as moedas que tinha, sentou-se ao lado de seu acervo e tentava ver o que dava e o quê não dava. As  pessoas que passavam,  e que viviam em um país capitalista,  ficavam horrorizadas. Tentei dar-lhe algum dinheiro , que ela recusou, evidentemente por medo.  Houve um  "bal masqué"  , onde fui fantasiada não sei de quê ,mas que fez enorme sucesso. Entrei e saí sob aplausos, enfiada em uma fantasia que nem era minha, Tenho fotos e as vezes posto, como farei a seguir.  
Mas a acontecimento que mais me marcou ocorreu às vésperas do fim do curso. Havíamos recebido , ao chegar, uma sacola , onde colocaríamos os livros e cadernos. Daí, num belo dia, percebi que Svetla jogava dentro da sacola todo pão que não se comia. Lembrando que francês faz as refeições acompanhadas de pão.  Aquilo me intrigava,  pois o  pão francês fica duro como pau no dia seguinte, me lembrando o pão que vinha do  Exército que chegava todos dia em casa. Meu irmão brincava que poderia ser uma ótima arma. Um dia, me enchi de coragem e perguntei-lhe por quê guardava pão velho . E a resposta aterrorizante me desiludiu em definitivo daquilo em que, por tantos anos, eu havia acreditado. " Maria, vou ter que esperar bastante tempo em Orly , e quando sentir fome, molho o pão na água e como. " Pobre Svetla, que, para matar a fome,  seria obrigada a comer pão com água. No dia em que nos despedimos , dei-lhe uma nota de cem dólares, que estou certa que foi parar no lixo. 
Fico feliz quando a vejo na praia, tomando sol, se espreguiçando na neve, com roupas bonitas. Uma mulher bonita , como costumam ser as eslavas, que pode se cuidar. Uma mulher que na Pascoa Ortodoxa,  assa um cordeiro , e vai com a filha  a uma cerimônia na sua Igreja, ela que que dizia que o dia de Natal era, para seu povo, um dia como qualquer outro. 
Escrevi este texto porque fui "acusada" de ser da direita por achar ridícula para o Dia das Crianças a sugestão de uma foice e um martelo de plástico, com os dizeres "Feliz dia das crianças , camaradinhas." Sempre repito que sou da esquerda progressista , NÃO COMUNISTA. Mas minha amiga, que disse que sou da direita, fez questão de afirmar que , apesar disto , continua a ser minha amiga e gostar de mim. A recíproca é verdadeira.       

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

SVETLA HANTOVA, UN E VIE.

1989, bicentenário da Revolução Francesa. E também comemoração da Inconfidência Mineira.
Estávamos em Belo Horizonte. A Primeira Dama Francesa, Danielle Mitterand, havia vindo. No Palácio  das Artes, ela e a Deputada Benedita da Silva, representante da mulher brasileira, faziam uma palestra. Eu havia ganhado uma bolsa para França, por haver criado um grupo de teatro em francês. E neste caso, haviamos até escrito o texto, o quê pareceu ao Adido Cultural extremamente original.  Consegui alojamento para todos meus "atores" e , se não me  engano, igualmente alimentação . E tenho imenso orgulho de  dizer que ali formei muita gente, que , posteriormente, se tornou profissional, como minha querida Cristina , que , passando em concurso do Exército  , e prosseguindo com Mestrado e Doutorado, formou oficiais que iam estudar em países de língua francesa , e é hoje oficial das Forças Armadas.  
Havia a greve do ano, como havia o Carnaval. Mas esta era uma bolsa especial, e eu não ia perdê-la  por causa de alguns malucos que achavam que conseguiriam derrubar o Governo, que neste  tempo já era Sarney. Dei aula em casa, escondida na Universidade, na casa  de alunos, e , finalmente, consegui completar  o calendário. Era uma bolsa especial, com direito a passagem pela AIR FRANCE, estadia em Paris numa casa de estudantes, e passagem para Bretanha, além de considerável soma em dinheiro. Minha mãe estava doente já há alguns anos e tive que fazer  imenso esforço moral para deixá-la. Teresa e Bertrand ficaram responsáveis por ela, além de um batalhão de acompanhantes. Escrevi a cores o nome dos remédios e para cada horário sublinhava com cores diferentes. Mandei plastificar , e minha irmã andava com ele sempre na bolsa, apreensiva de que pudesse haver se enganado. Bertrand vinha todas as noites tentar dormir. 
Quando saí do Brasil , já estava enfraquecida, minha garganta doía, e estava muito magra. Mas minha satisfação por haver conseguido a bolsa, e com um projeto tão original,  me devolvia as forças. A chegada em Paris foi terrível, minha mala, que na confusão da saída, eu havia esquecido de renovar, abriu e vi tudo derramado em pleno aeroporto Charles de Gaule. Eu havia passado a noite  com febre, e não consegui lugar dentre os não fumantes. Hoje, é proibido para todos passageiros.  Argentinos, sentados a meu lado, fumavam sem parar , apesar de meus reiterados pedidos . Aliás, meu sangue gaúcho sempre detestou  "los hermanos".  Afinal, me arrastando, consegui chegar a uma  "navette " , que me conduziu até Porte D'Orléans ( hoje conduz até a Opéra). Fazia um calor infernal ,  eu desci , arrastando minha mala , tentando pegar um taxi. Mas era próximo a 14 de julho , e o mundo havia descido em Paris. Exausta, sentei-me no meio fio e resolvi esperar por um milagre. Não sei quanto tempo depois ele aconteceu. Entrei , e um chofer gentil levou  sob minha recomendação , a mala ao carro.
Mas Paris é realmente uma cidade especial. Depois de esperar não sei quanto tempo, numa espécie de agência, me foi informado o endereço da rua Jean Calvin. O interessante é que nem o chofer conhecia este endereço. Fomos de um lado a outro da Rue Mouffetard , voltamos, e chegamos à conclusão de que esta rua não devia existir. Sinceramente, não sei como descobrimos que era uma rua dentro de um grande portal , como se fosse num prédio. Ou seja, uma rua dentro de uma prédio. Exausta, quase beijei o chofer . E entrei. deram-me uma chave , e eu deveria subir 5 andares, o quê é comum em Paris. Olhei para cima e tive a impressão de ver o Himalaia. Mas era preciso subir. Arrastei-me até lá e sentei exausta. E , de repente, ....lá se foi a chave. Sinceramente, não sei como, mas fui buscá-la. Fiquei com uma marroquina que estava fazendo o Doutorado , não me lembro em quê , em Paris. Quarto singular . No meio, havia uma pia enorme, que devia servir também para se lavar. Conheço bem os franceses. Mas eu queria tomar um banho , me refrescar, deixar a água cair sobre todo meu corpo, minha cabeça, que latejava. Peguei minha toalha e me dirigi para onde me indicaram estar o banheiro. havia uma fila, com muitos orientais . Olhei o quê devia ser o banheiro. Quem conhece Ouro Preto ou qualquer cidade histórica, já deve ter visto aqueles nichos, onde , no fundo se aloja um Santo. Naquele caso , os santos eram substituídos por pessoas, que se escondiam atras de cortinas se plástico , já meio sujas e  rasgadas. Quando chegou minha vez, subi aquele penosamente aquele  cadafalso ,  e tomei um banho , que me pareceu maravilhoso. Enrolada na toalha voltei para quarto. E abri a mala.
DESASTRE!!!Tudo despencou e caiu sobre papéis de minha companheira. Só ouvi " Mon Dieu"!!!!Tentei me desculpar e apanhar tudo, mas as coisas se misturavam. Fiquei meio embrutecida. A mulher me arrancava das mãos o quê era seu , papeis , provavelmente de sua Tese. Parei de pedir "pardon" e fiquei prostada em cima da cama, nua, o quê deve ter sido pior ainda para uma muçulmana. Depois , .....não me lembro. Só sei que não a deixei dormir, tossindo a noite inteira. Pela manhã , devo ter comido alguma coisa, mas estava atrasada. Tomei um taxi, que uma garota me indicou e arrastando minha mala , corri até a estação, não me lembro qual. Tomei o trem. todo meu corpo tremia, Até que me sentei. O resto conto depois.