QUEM SOU EU

Sou professora de Francês, mas hoje minha principal atividade é escrever e ler, além de cuidar dos meus três vira-latas: Charmoso, Príncipe e Luther.



Gosto de fazer ginástica, sou vegetariana e adoro animais em geral, menos baratas.



Sinto especial prazer quando meus textos agradam aos meus leitores. Espero continuar produzindo e me comunicando com todos os meus amigos, neste maravilhoso universo da net.



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quarta-feira, 17 de março de 2010

Pegadas do passado

“Eu sonhei que tu estavas tão linda.
Numa festa de raro esplendor.
Teu vestido de baile, lembro ainda
Era branco, todo branco, meu amor
.................................................."

Voltei ao meu passado mais remoto. A primeira imagem que me veio à mente foi de minha avó Joana. E logo surgiu minha mãe, a pequena luz da máquina de costura acessa, pedalando ao som do rádio. Quem sabe aquela mesma canção, na voz poderosa de Carlos Galhardo.

Estávamos, Ricardo e eu, jantando em Tiradentes, à luz de velas, comemorando um dos meus tantos e tantos anos vividos. De repente uma dupla de músicos, violão e bandolim, entrou, e então ouvi esta canção. E com ela abri o arquivo de minha história.

Minha história... Cheguei àquele momento da vida em que começamos a rememorar, a trazer de muito longe lembranças adormecidas, mas que, ainda que adormecidas, estarão para sempre conosco. Até o momento final. Não tenho ilusões de que meu futuro é infinitamente menor do que meu passado. E não poderia ser de outra forma. Tenho tantas histórias para contar! Sempre fui boa observadora, e ouvinte. Cheguei a escrever um livro sobre a história de minha família baseada exclusivamente no que ouvia, sobretudo de minha mãe. Tenho-o guardado. Nem sei quem o leu, mas isto pouco importa. O que importa é o prazer de contar, de falar de um mundo que não existe mais; pessoas, lugares, hábitos, dramas. Não sei se algum dia contarei, não mais “tudo que me contaram”, mas “tudo que vi e vivi”. Diz Ricardo que tenho o talento gaúcho do “contador de histórias”. E aí está meu amado Érico Veríssimo.

Naquela noite, de frente a meu companheiro de tantos anos, diante de uma taça de vinho, falei ...e falei. Foi como se a memória de meu computador natural se abrisse e despejasse no ar, ao som de minha voz, tantas histórias. Falei de gente que já havia esquecido há muito tempo, revivi sensações. Lembrei-me da rua escura, num bairro distante, onde minha família se instalara após a transferência de meu pai para a cidade. Era iluminada por escassos postes altos, de luz amarelada, e, nas noites quentes, a criançada se reunia para brincar. Quase não havia trânsito e livremente transitávamos de uma calçada para outra. E ao descrever a rua, que revia de forma tão clara na minha mente, lembrei-me da mulher paupérrima que vivia em um casebre nos fundos de uma velha casa, bem defronte à nossa. Achava-a feia, mal-cheirosa. Nesta época, eu não tinha mais do que quatro anos. Somente bem mais tarde soube de sua miserável vida de prostituta. Tinha olhos azuis, cabelos louros, seguramente oxigenados, dentes estragados. Morava com a mãe e uma filha. Pobre gente! Já devem ter morrido há muito tempo.

Depois, mudamo-nos para uma vila, onde moravam quase exclusivamente militares. Lembro-me de minhas amiguinhas, todas filhas de militares, mas só guardei o nome de duas: Evinha e Léa. Brincávamos de pique - esconde, nos enfurnando nas varandas das casas, todas em estilo anos quarenta. Ou então brincávamos de estátua, o que eu detestava, já que nunca conseguia imobilizar-me de repente. E me lembro do cruel plano de surra numa menininha, justo no dia em que chegamos de mudança. Era filha da amante de um major, cuja filha fazia parte do grupo. Fiquei estarrecida. Por que bater nela? Não me lembro o que disseram, mas subi para casa aos prantos. Lembro-me bem que meu irmão me perguntava se haviam me maltratado, mas eu não sabia responder. Como acabou a história? Não tenho a mínima idéia.

E havia ainda tanta coisa a contar! Meu pavor dos “sujos”, que desfilavam no Carnaval, a cabeça coberta por uma fronha com dois buracos para os olhos e um para a boca. Acho que era assim, pois a única vez que vi um deles de perto, foi quando ele tocou meu ombro e, virando-me, vi aquele monstro medonho. Disparei aos gritos. Eu tinha cinco anos, mas disso me lembro bem. E dos beliscões de minha irmã, dez anos mais velha, quando eu ficava chateando seu namoro. Apaixonei-me por um de seus namorados, chamava-se José Félix, era gaúcho, como minha família, e lindo! Fiz até promessa quando ele propôs reatar o namoro, mas não deu. Fiquei penalizada. Como minha irmã podia ser tão burra!? E também me lembrei da moça loura, alta, que passava bem defronte à vila, na saída do colégio. Um dia deixou de passar, e então alguém me disse que havia morrido. Fiquei consternada! E também das festas de Cosme e Damião, quando a gente recebia um cornetinho feito de papel rosa, com balinhas dentro. E do meu horror à papinha que minha avó me obrigava a comer, feita de café com leite e pão picado, hábito da América espanhola, transplantado para a região da fronteira com a Argentina. Vi meu pai e minha mãe comerem isto a vida inteira. E sempre me causou o mesmo horror da infância. Lembrei-me de tanta coisa daquele passado tão remoto!

Hoje, aprendi a valorizar cada dia vivido, e dar graças por haver passado por muito sofrimento sem perder a alegria de viver. Compreendi a efemeridade de tudo e que de nada valem pequenas e mesquinhas vaidades, ainda que eu tenha a minha, mas que não é pequena nem mesquinha. Ouvindo naquela noite os dois músicos, que tocavam aquela velha canção, tive a certeza de que havia vencido. Sofrimentos, tive muitos, perdi minha família original, vi meu pai morrer cada dia, vítima de uma terrível cardiopatia, minha mãe sofrer durante seis anos,confinada à uma cama, minha irmã ser condenada pelo câncer, meu irmão morrer poucas horas depois de haver sido internado. Mas estou viva, lembrando aquele passado distante, diante do homem que amo, e brindando à vida.

Um comentário:

Ricardo Vélez-Rodríguez disse...

Gatinha, lindo comentário, você é, certamente, uma gaúcha contadora de histórias, como o Erico! Passas, na narrativa poética com que nos presenteias hoje, o filme da tua vida, não com sentimento de pena, de amargura ou de perda, mas com a atitude de quem observa, com esperança e amor, o rio da vida perto da foz, vida-rio pelo qual passaram tantas águas, com amanheceres maravilhosos, com tormentas de raios e de breu, mas também com dias ensolarados, cheios de vida, de paixão e de encanto, rio-vida que levou tantos seres queridos mas que já, na maturidade do remanso da foz, se abre para novos horizontes, infinitos. Fico muito feliz de me encontrar no porto dessa foz, te amando e acompanhando no singrar arriscado e feliz de "mares nunca dantes navegados" (como diz o poeta-mor da língua portuguesa). Beijo, grande como meu amor.