QUEM SOU EU

Sou professora de Francês, mas hoje minha principal atividade é escrever e ler, além de cuidar dos meus três vira-latas: Charmoso, Príncipe e Luther.



Gosto de fazer ginástica, sou vegetariana e adoro animais em geral, menos baratas.



Sinto especial prazer quando meus textos agradam aos meus leitores. Espero continuar produzindo e me comunicando com todos os meus amigos, neste maravilhoso universo da net.



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sábado, 9 de setembro de 2017

TUDO QUE ME CONTARAM
Há muitos anos, resolvi contar histórias. Aquelas que havia ouvido das velhas da família. São as interessantes. Velhas primas, amigas de minha mãe, gente que havia vivido um outro tempo, que eu não conhecia. Afinal, quando minha obra ficou pronta, tive que refazer, e refazer, e refazer.... Sempre havia coisa nova ou inverossímil, que eu não havia percebido. Também pouco a pouco as velhas foram partindo e fiquei sem meios de verificar. Intitulei-a “Tudo que me contaram” e fechei meu “livro”.Quem sabe algum dia o reabrirei? Ou alguém, ao encontrá-lo, poderá publicar?
De todas minhas fontes de informação, a melhor, a mais fidedigna, vem de minha Alice. Desde tomei algum conhecimento do mundo, conheci o seu colo aconchegante, que me ninava até que o sono fechasse meus olhos. Bem acomodada, quase no escuro, ainda com chupeta na boca, ouvia suas histórias. Eu devia ter três anos ou talvez menos. Ela gostava das novelas de rádio, mas gostava igualmente de contar-me suas histórias. Foi assim que soube que aquela moça bonita, cuja foto estava numa mesinha, era sua irmã Aracy. Que ela havia morrido aos dezessete anos. Não me disse de quê, nem perguntei. E por que vovó sempre colocava uma rosa diante do foto? Soube que a menininha com pezinhos a mostra e camisolinha rendada era irmã de papai. E que ela também havia morrido. Aos doze anos.
Aos poucos fui conhecendo a história da família. Tive duas tias, Aracy , irmã de minha mãe por parte de mãe  e Maria irmã de meu pai também por parte de mãe. Já na adolescência minha mãe contou-me que Maria morrera de peste bubônica, e Aracy provavelmente se suicidara. Já havia tentado uma vez. Minhas avós eram cunhadas, já que minha avó materna, Joana, era irmã do falecido marido de minha avó paterna. Já era crescida quando entendi que meus pais eram primos, o que hoje é considerado um casamento de alto risco. E foi este parentesco que os apresentou. Mas foi no colo acolhedor de minha mãe, em que adormecia toda noite, sentindo o balanço da velha cadeira, que, há muitos anos passados, a embalara e também minha tia Aracy, que ouvi histórias lindas, comoventes, engraçadas, tristes. 
Com a família longe, no Rio Grande do Sul, com meios de comunicação precários, eu não conhecia ninguém. Meu pai, militar, havia feito a Escola Militar de Engenharia no Rio, e de lá o transferiram para Santarém. Conseguiu com um colega paraense, a troca para Juiz de Fora, lugar de que talvez jamais ouvira falar. Sempre brinco que as montanhas mineiras inspiraram meus pais, já que minha mãe engravidou pouco depois de chegar. Já tinha filhos grandes e esta não foi uma boa surpresa. Mas fui bem-vinda e amada. Hoje, penso que esta hora, quando me embalava, era o momento de falar dos  que deixara para trás. Havia histórias mais recentes e outras bem antigas. Lembro-me de tia Porfíria, cunhada de minha bisavó, Vitória. Eram ambas argentinas, já que naquela fronteira quase todo mundo é meio brasileiro, meio argentino. Quando minha mãe a conheceu, já era viúva. Tinha uma dezena, ou mais, de filhos, de todas as idades. Nas férias, minha avó levava suas duas filhas para passarem uns dias na estância, que não sei se ficava no Brasil ou na Argentina. Minha mãe sempre me falou do dia em que chegou à estância e viu, pela primeira vez, um rádio. Era ainda bem pequena, de seis ou sete anos. Ela não podia imaginar o que significava aquele estranho objeto, entronizado sobre uma mesa, num recanto especial da  sala, que funcionava como um altar a um deus desconhecido. Imagino que fosse daqueles em estilo catedral, bem envernizado, com belos botões de ebonite pretos. O programa vinha da Argentina, e Alice ouvia, extasiada, o que se dizia em espanhol, acompanhado de uma terrível descarga, sem entender patavina. Aquele objeto parecia tão estranho que ela me confessou que sentia na sua presença um considerável medo, de tal forma que quando atravessava sozinha a sala onde estava o monstro que falava em meio a trovões, passava correndo. A prima que sabia manejar o estranho objeto devia parecer-lhe uma espécie de sacerdotisa, e Alice lhe tinha o maior respeito. Nunca consegui saber como aquela gente, no fim do mundo conseguia energia elétrica. Uma outra filha nascera cega. Vivia sentada num canto da sala, mexendo uma coisa que, a minha mãe, parecia ser um colar de contas grandes. Viveu e morreu na mais completa escuridão. Sua cegueira era solitária, jamais aprendera nada, o Braile lhes era totalmente desconhecido. Minha mãe guardava dela a imagem de uma mulher boa e carinhosa. Que terrível vida!
E havia também, o rapaz bonito, que chegara em Porto Alegre vindo do interior, que se apaixonara por ela, que, aos quatorze anos, já estava apaixonada pelo primo. Viviam-se os anos vinte. Um dia, ao voltar de um jogo de futebol, minha mãe, da janela de sua casa, notou que ele lhe parecia abatido e apoiava-se num guarda-chuva. Esta foi a última imagem que Alice guardou dele. No dia seguinte, já com evidentes sinais da peste, foi transportado para um isolamento onde morreu. O ano era 1922, foi em 22 que também morreu Maria e sua melhor amiga. Aquelas mortes de jovens e crianças me impressionou de tal forma, que durante muito tempo tive o hábito de olhar nas velhas casas o ano de construção que muitas ostentam no alto. Ainda há algum tempo, fui a um restaurante cuja construção datava deste ano. E por incrível que pareça, isto me impressionou.
Este foi também um ano especial para a arte brasileira, que se libertava da influência tradicional européia e buscava novas formas. A Semana de Arte Moderna, fez surgir nomes que marcaram nossa arte, imbuída de uma brasilidade até então desconhecida. Surgiram nomes como Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, e também foram conhecidos estrangeiros como Braque, Picasso e Matisse. Mas enquanto a arte se expandia no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul, governado por Borges de Medeiros, o Chimango, e toda uma equipe que se considerava positivista, sem acreditar em saneamento, em saúde pública, a peste grassou. Ainda hoje, numa das principais avenidas de Porto Alegre, há um “Templo” positivista , que data do século 19. Durante anos, passei diante dele, sempre fechado. Até que um dia encontrei-o aberto e entrei. Havia um pequeno grupo de homens, que muito gentilmente me falaram do filósofo Auguste Comte e ainda ficaram mais entusiasmados ao saber que eu havia visitado o apartamento do filósofo em Paris. Mas se Comte representa alguma coisa dentro da filosofia francesa, no Brasil, a partir de Júlio de Castilhos, famoso caudilho gaúcho, foi um desastre.
E para rir havia a história do árabe que se casou com uma colona, que logo engravidou de gêmeos. Parto difícil, longo com muito sofrimento da mãe. De repente, toda vizinhança, apavorada, vê o homem subir no telhado, ajoelhar-se e começar uma ladainha incompreensível, sempre voltado para o mesmo lado. Naquela Porto Alegre antiga, ninguém poderia supor que fosse um muçulmano, orando, no ponto mais alto possível, o telhado, voltado para Meca. E, afinal, a oração deu certo, pois, alguns dias mais tarde, mulher e marido exibiam orgulhosos os dois pimpolhos.
São tantas as histórias de um tempo que já se foi, e escutei ao longo de minha vida! Com ela percorri os pampas gaúchos, morei em Uruguaiana, brinquei com meus primos Deodoro e Alzira. Com elas chorei a morte de Aracy e Maria. Tive tifo, apaixonei-me pelo primo Felippe . Com elas assisti à partida de meu marido com as tropas para o Rio de Janeiro e rezei para que ele voltasse logo. Hoje, passados tantos anos, me pergunto, será que ela me contava estas histórias e eu as confundia com a história do rádio? Quem sabe, adormecida, eu não sonhava com elas e as incorporava ao mais profundo da minha lembrança e da minha sensibilidade?
Mas a vida sempre continua. Já partiram todos os que me contaram histórias. Todos os que conheceram Maria e Aracy.  Não sei para onde, certamente muito longe. E quem sabe, agora, estejam juntos e relembrem este passado? E morreram também os mais jovens. Morreu minha prima Marina, seu irmão Alberto, meu primo Renato, o Belo Brummel, minha prima Lourdes, meu primo Luís Pedro. E morreu meu irmão Sérgio, minha irmã Teresa.  Fiquei eu, talvez porque ainda tenha alguma missão a cumprir. Não lamento as mortes, elas fazem parte da vida. E o que me resta, quero viver feliz.  Recordações? Só as boas! Se for possível!
Quero continuar meu Pilates, minhas acrobacias, meu bom humor, minha vaidade, meu amor à vida. Porque ela vale a pena!!!

2 comentários:

Vitória Portugal disse...

Lindas lembranças!!! Texto muito gostoso de ler!!! Bjsss

Simplesmente mulheres disse...

Obrigada, amiga. Para mim é um prazer escrever e constatar que meus amigos mais queridos gostaram . Beijocas.