QUEM SOU EU

Sou professora de Francês, mas hoje minha principal atividade é escrever e ler, além de cuidar dos meus três vira-latas: Charmoso, Príncipe e Luther.



Gosto de fazer ginástica, sou vegetariana e adoro animais em geral, menos baratas.



Sinto especial prazer quando meus textos agradam aos meus leitores. Espero continuar produzindo e me comunicando com todos os meus amigos, neste maravilhoso universo da net.



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terça-feira, 30 de junho de 2009

O vôo cego da vida.

Estávamos, Ricardo e eu, festejando nossos vinte anos de vida juntos. O lugar escolhido foi Gramado, onde já vivemos dias inesquecíveis. Fazia muito frio lá fora. Mas dentro do hotel havia um calorzinho delicioso. Lá pelas cinco da tarde, havíamos sido convidados para um happy-hour no saguão. Perto da enorme lareira haviam preparado alguns tira-gostos, havia batidas variadas, sucos e o inevitável chimarrão. Sentamo-nos defronte à lareira, e um casal se ofereceu para tirar uma foto nossa. Inesquecível! Por ali ficamos bastante tempo, conversando, observando as pessoas, e depois lendo os romances que havíamos levado. Era sábado, 30 de maio. Resolvemos não sair naquela noite, já que teríamos que tomar condução para Porto Alegre no dia seguinte cedo. Mais tarde tomamos uma canja no restaurante do hotel, e acompanhamos de vinho. Estávamos felizes, afinal, após tantos anos, ainda havia, e há, tanto a comemorar.
30 de maio, sábado. Naquele mesmo momento, outras pessoas também tinham muito a comemorar. Lembro-me de um casal que dava sua festa de casamento para cerca de quinhentas pessoas, um médico conhecido cirurgião plástico em Porto Alegre, que devia estar terminando de organizar sua bagagem para uma viagem de quinze dias com a mulher e a filha. Iam a Paris e depois seguiam para Grécia, um roteiro com que Ricardo e eu sonhamos há muito tempo. Havia um oceanógrafo que cursava doutorado na França. E um casal de advogados, um mecânico especializado em plataformas marinhas, que conseguira um emprego numa das maiores companhias de petróleo do mundo, uma funcionária pública, do interior de Santa Catarina, que, afinal, realizava seu grande sonho de conhecer a Europa e depois fazer um curso na Itália. E havia uma cantora que iniciava seu sucesso na Alemanha, um maestro, e até um príncipe. Havia crianças, gente de várias partes do mundo, turistas, homens de negócios. Naquele momento em que tomávamos nossa canja, e degustávamos nosso vinho, toda aquela gente se preparava para partir no dia seguinte, felizes. Como nós. Pouco mais de vinte e quatro horas depois, estavam todos no fundo do mar. A maior parte para sempre, sepultados em profundezas insondáveis.
Em julho de 2007, em Porto Alegre, no restaurante do hotel, incomodava-me a barulheira que fazia um grupo de funcionários de uma empresa baiana. Estavam ali para um evento programado pela empresa e tinham sempre um crachá que os identificava. Lembro-me que, apesar do barulho que faziam na hora do almoço, eram extremamente atenciosos e sempre seguravam o elevador para nós. Corríamos, agradecíamos, mas nunca conversamos com nenhum deles. Voltamos, e poucos dias depois vi pela televisão uma notícia extraordinária que falava de um incêndio no aeroporto de Guarulhos, provocado pelo choque de um avião com um prédio da TAM. Não se sabia de onde vinha, nem se havia passageiros. Logo depois, ficamos sabendo que partira de Porto Alegre e que transportava mais de cem pessoas. Alguns dias mais tarde, vendo a lista de passageiros, ficamos sabendo que várias vítimas eram funcionários daquela empresa baiana. Aquela que organizara o evento no hotel onde estávamos hospedados. Senti um aperto no coração ao imaginar que muitas daquelas pessoas com quem cruzei no hotel, aquelas que faziam o tumulto na hora do almoço, que seguravam a porta do elevador para nós, haviam sucumbido.
Há poucos dias, segui minha rotina diária. À noitinha, liguei a televisão e ouvi alguma coisa que se relacionava com Michael Jackson. Prestei atenção: ele havia morrido. Ainda de manhã, enquanto seguia minha rotina matinal, ele estava vivo! Não sei se saudável ou não, não se feliz ou não. Mas vivo! E tantos outros se foram naquele meio tempo! E tantos surgiram naquele meio tempo! E tantos pretendem viver eternamente, apegados às mais efêmeras coisinhas do dia-a-dia. E tantos passam cada dia da vida tentando ter ou ser mais. E tantos esperam coisas especiais, extraordinárias, para encontrar um pouco de felicidade, ou simplesmente de alegria! E tantos morrem assim, como os passageiros do vôo 447, como os da TAM, como Michael Jackson. Num estalar de dedos.
Em abril ou maio do ano passado, convidamos para jantar um casal amigo. Ele havia perdido a mãe em novembro do ano anterior. Um enfarto violento levou-o poucos meses depois daquele jantar em que nos divertimos ouvindo suas histórias. No seu velório, abraçamos seu irmão mais velho, que, atônito, comentava que em menos de um ano perdera mãe e irmão. Nove meses depois, abracei seu irmão caçula, que me dizia: “A família se foi. Agora só fiquei eu”. Senti profundamente sua dor, o mesmo aconteceu comigo. “Então estamos quites. Mas com você foi mais rápido.”
Refletir sobre tudo isto me convence cada dia mais daquele princípio básico, que, aliás, era bordão da Visa: “Viva, porque a vida é agora”. Tomar consciência da fragilidade de nossa existência, este fiozinho que pode romper-se a qualquer momento, não me trás amargura. Pelo contrário, me ensina todo dia a valorizar mais e mais cada momento, na sua cândida simplicidade. Depois de tudo que os anos me ensinaram, e têm me ensinado, só me resta dizer que, apesar de tudo, sou hoje mais feliz por saber beber com simplicidade cada gota de prazer que a vida me oferece.

Um comentário:

Ricardo Vélez-Rodríguez disse...

É isso,Gatinha, sobre o pano de fundo da nossa trágica finitude, desenham-se as figuras singelas da nossa alegria de cada dia. Aceitarmos a precariedade da nossa presença, mas, apesar dessa precariedade, não nos escandalizarmos da existência, eis a sabedoria do "viver o hoje de Deus" de que falam os monges de Taizé. Cada momento vivido é um reiniciar a aventura da presença frágil que somos. Vivamos e amemo-nos nessa luminosa e breve presença do hoje que temos nas nossas mãos. Beijinhos. Te amo.