QUEM SOU EU

Sou professora de Francês, mas hoje minha principal atividade é escrever e ler, além de cuidar dos meus três vira-latas: Charmoso, Príncipe e Luther.



Gosto de fazer ginástica, sou vegetariana e adoro animais em geral, menos baratas.



Sinto especial prazer quando meus textos agradam aos meus leitores. Espero continuar produzindo e me comunicando com todos os meus amigos, neste maravilhoso universo da net.



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domingo, 26 de julho de 2009

Souvenir d´enfance

É uma história real. Assisti-a desde seu primeiro ato, há muitos e muitos anos. Eu era ainda criança.
Era uma família, bem situada, formada por pai, mãe, uma filha e um filho caçula.
A mocinha que passava defronte à vila, onde eu morava me chamava a atenção. Não sei se a achava bonita, mas me chamava atenção por ser bem maior do que as demais. Era ali, na entrada da vila, habitada quase exclusivamente por militares, que eu espreitava a saída do colégio e esperava meus irmãos. Parava qualquer brincadeira e corria para lá. E ela vinha quase todos os dias, grande, destacando-se das outras. Um dia, parou de passar, e então eu soube que havia morrido. E a consternação foi geral. Todos falavam de sua alegria, de sua personalidade, da liderança que exercia sobre os colegas. Apesar dos meus poucos cinco anos, também fiquei consternada. Ouvi dizer que havia morrido de uma infecção intestinal provocada por camarão arruinado. Estava voltando de uma viagem. Que pena! Se houvesse evitado aquela empadinha! Se houvesse comido em outro lugar! Se não houvesse viajado! Mas eu não sabia, naquele tempo, que assim é a vida, no seu vôo cego.
A moça sumiu, mas deixou uma representação meio mágica, meio misteriosa, na imaginação de todos, o que sempre acontece quando uma vida é ceifada em plena juventude. Tinha dezesseis ou dezessete anos. Um dia, alguém me mostrou sua casa, num bairro nobre da cidade. Linda, estilo hollywoodiano. Ocupava uma esquina, branca, com sacadas, grades bem trabalhadas, tendo à sua volta um jardim cercado por um muro baixo. Ali ela vivera, e morrera. Imaginei a casa impregnada pela sua figura, como uma assombração. Diziam que a mãe, inconsolável, resolvera conservar intacto o quarto da filha. As janelas, sempre fechadas, davam a nítida impressão de vazio, um vazio que certamente existia depois da partida da garota. Somente o jardim florido fazia lembrar que alguém vivia ali. Sempre senti imensa curiosidade em entrar naquela casa, conhecê-la.
Os anos passaram, e minha fascinação e curiosidade decresceram. Afinal, eram já tantos! Quando era adolescente fiquei sabendo que seu irmão participara da depredação de um cemitério em uma cidadezinha vizinha. Que horror! Como eram todos filhinhos-de-papai, é claro, nada aconteceu. Naquela época dizia-se que o sujeito não trabalhava, não estudara nada e vivia como um playboy, desfilando em carrões, sua grande paixão. Era isto que se dizia. Nunca o vi. Mas vi seu pai, num dia chuvoso. Eu deveria ter uns dezessete anos quando minha mãe mostrou-me um senhor alto, careca, meio curvado. Havia nele muita distinção. Olhei-o e imaginei quanta dor deveria ter sofrido com a morte da filha. Alguns anos depois, disseram-me que havia morrido. Nem sei por quê. Na verdade, a história toda ficara no passado.
Passei fora algum tempo, e quando revi o casarão tive a nítida impressão de um lindo mausoléu. Lindo, lúgubre, rodeado de flores, a única expressão de vida. Mas quando elas murcharam, foi para anunciar a morte da mãe. Não creio que houvessem murchado de tristeza, afinal, parece que alegria já havia desaparecido dali há muitos anos, desde aquele dia longínquo em que a mocinha loira e alta se foi. Para sempre. E a grande nave branca continuou ancorada na esquina, habitada pelo filho, agora um homem já envelhecido pelos anos e pela vida. Mas ela continuou lá, talvez habitada por fantasmas, esperando pelo seu destino.
O garoto que se tornara filho único, bafejado pela sorte de menino rico, que jamais precisara trabalhar, que na juventude desfilara de óculos escuros, nos mais belos carros, de capota abaixada, estava reduzido à pobreza. Não sei o que aconteceu exatamente, mas estava reduzido à mais negra pobreza. Sem água, tomava banho na casa de um vizinho bondoso. Sem luz, iluminava-se com velas. E aquela casa que havia sido o lar de uma família bem-sucedida, onde vivia uma garota que se destacava pela sua alegria e personalidade, que seguramente iluminava também seu grupo familiar, havia se transformado numa velha e decrépita mansão mal-assombrada. Não sei quantos anos durou esta vida de miséria, mas um dia, não faz muito tempo, o velho playboy também se foi. Numa enfermaria geral.
Coberta de dívidas e infiltrações, a casa foi vendida pelos herdeiros, primos e primas. Será demolida dentro de algum tempo. No seu lugar vai surgir um daqueles espigões de gosto duvidoso, metido a elegante. E aí, quase ninguém mais vai se lembrar daquela moça, de sua morte prematura e do trágico desfecho deste drama, cujo primeiro ato assisti de longe, naqueles meus longínquos cinco anos.
Há algum tempo, encontrei, entre os guardados de Teresa, minha irmã, uma velha foto da equipe de vôlei do colégio. Lá está ela, reconheci-a por ser a mais alta. Sorridente, jovem, vitoriosa. Um ano antes de sua morte. Este é o vôo cego da vida, que mais nos ensina do que faz doer. Porque nos mostra a nossa fragilidade e o quanto não valorizamos este fiozinho que se rompe tão facilmente.
- Moça, prazer em conhecê-la finalmente. Sinto uma intima felicidade em ver seu rosto sorridente. Afinal, valeu a pena, não é?

Um comentário:

Ricardo Vélez-Rodríguez disse...

Esta vida que se passa tão depressa deixa-nos um gosto de quero-mais. É a nossa sede de imortalidade, que constitui a mola das criações culturais humanas. É essa mesma sede de imortalidade que estimula a vivência religiosa, não como fuga - acho lugar comum positivista aquele "a religião o ópio dos povos" - mas como encontro amoroso com o absolutamente-outro. É a tua narrativa que preserva a imagem daquela moça alta, à qual das vida no teu discurso. É o nosso amor que nada mais é do que doação gratuita e consciente de um ao outro neste vôo incerto da vida. Como sempre, Gatinha, a tua mensagem é de fé na vida e de esperança na sua renovação. Beijo nesta distância que nos separa e que superamos na magia da palavra.