QUEM SOU EU

Sou professora de Francês, mas hoje minha principal atividade é escrever e ler, além de cuidar dos meus três vira-latas: Charmoso, Príncipe e Luther.



Gosto de fazer ginástica, sou vegetariana e adoro animais em geral, menos baratas.



Sinto especial prazer quando meus textos agradam aos meus leitores. Espero continuar produzindo e me comunicando com todos os meus amigos, neste maravilhoso universo da net.



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sábado, 1 de maio de 2010

“La cantatrice chauve” em Juiz de Fora

Durante alguns anos, na Universidade Federal de Juiz de Fora, tive em atividade um grupo de teatro em francês “Théâtre Gavroche”, ao qual mais tarde se incorporou minha colega Walquíria. E uma das peças que encenamos chamava-se “Scène à quatre”. Foi assim, durante as leituras e os ensaios, que pudemos conhecer o extraordinário Ionesco e divulgá-lo aos que vinham nos assistir.

Engène Ionesco (1909 – 1994) é um dramaturgo franco-romeno que expõe em sua obra a incomunicabilidade entre os homens, a irracionalidade e a fragilidade nas relações humanas. Foi, juntamente com Samuel Beckett, autor do extraordinário “En attendant Godot” (“Esperando Godot”), um dos criadores do “Teatro do absurdo”. Coube a estes geniais escritores tornar explícito o que nos ocorre diariamente, sem nos darmos conta. E uma de suas peças – “La cantatrice chauve” (“A cantora careca”), de 1950, é apresentada em Paris, no Théâtre de La Huchette, desde 1957. Conta-se que se inspirou num método de ensino de inglês, onde frases desconexas se amontoavam com o exclusivo fim de ensinar estruturas gramaticais. Aliás, lembro-me de meus primeiros anos de ensino de francês (é claro que em 1950 eu não podia ser professora de nada!), lá pelos anos 70, em que nos debatíamos ainda com textos totalmente incoerentes, dentro dos padrões ditos “estruturais” do ensino de línguas. No caso da “Cantatrice Chauve”, dois casais, uma empregada e um bombeiro, que não se sabe como veio parar na peça, debatem absurdos. Ou, como repetem seus personagens, “parler pour ne rien dire”.

Mas, afinal, não é minha intenção discorrer sobre a obra, de que, confesso, nem me lembrava mais. Retomei-a, assim como tudo que conheço de Ionesco, graças à Secretaria de Política Urbana da Prefeitura de Juiz de Fora, através da “Lei municipal 11.197/06 arts 9º. -1,10º. – I e II, 88, 105-I, 108 parágrafo 3º. Decreto Municipal 9117/07 arts. 11,21parágrafo 1º., 3º. e 7º. , 22-III parágrafo único”. Só de ler este amontoado de palavras desconexas, eu, cidadã comum, sinto-me ameaçada e imagino quantos crimes deva ter cometido sem saber. E o pior, qual será minha pena?
Mas vamos ver como começou este teatro ionesquiano. Eram três horas da tarde, eu estava me acomodando para ler “Os anos loucos – Paris na década de 1920”, que Ricardo me presenteou. Já havia começado e estava ansiosa para prosseguir. Tilinha, nossa cadelinha, já estava deitada ao meu lado na poltrona, e Charmoso, nosso vira-lata, deitadinho na sua almofada. O gato Boris havia chegado, dado uma olhadinha e chispado para nossa cama, seu lugar predileto. Eu estava colocando os óculos e pensando que às quatro horas iria passar um café e comer um pãozinho prensado, que acho delicioso. Enfim, anunciava-se uma tarde muito agradável. De repente, ouço o interfone – Quem será? Atendo e mantenho o seguinte diálogo:


- Boa tarde. Eu queria falar com dona Maria Lúcia Viana.
- Sou eu.
- Sou da Fiscalização da Prefeitura e um documento seu foi achado no lixo.
Levo um susto imenso!
- Como? Um documento meu no lixo???!!!! (E já me imagino correndo de uma central burocrática para outra em busca de novos documentos. E o meu CPF, que vale mais do que minha vida? Por sorte, tenho identidade do Ministério do Exército, onde a burocracia é menor. Será? Tudo isto me passa pela cabeça enquanto corro desorientada em busca de minha bolsa – Onde a deixei? – E nestas horas, a gente nunca sabe onde deixou as coisas! Finalmente a encontro, busco a carteira onde guardo os documentos, verifico , torno a verificar. Está tudo ali. Mas então o que foi? Vem- me à mente, com terror, que talvez tenha deixado cair o meu DARF, aquele do monstruoso Imposto de Renda. Mas tenho certeza de que o guardei, lá em cima no armário. Tudo isto se passa num espaço de alguns poucos minutos. Volto correndo para o interfone e resolvo colocar a razão para funcionar)



- Olha, moço. Vou descer. Não estou entendendo. Espere-me na garagem.
- Por favor, traga um documento, preferencialmente o CPF. 

Desço, imaginando alguma coisa ruim. Encontro, então, dois homens paramentados com coletes, tendo escrito nas costas em letras garrafais “FISCALIZAÇÃO – PREFEITURA DE JUIZ DE FORA”. O porteiro, meu amigo de muitos anos, sorri com o canto da boca, daquele jeito que só mineiro sabe fazer.

-Dona Lúcia, eu expliquei o que aconteceu, mas o homem não aceita.
Foi, então, que o absurdo me foi mostrado. O sujeito tinha nas mãos, entre outros papéis rasgados, um pedaço de um informe que recebo regularmente de uma entidade internacional de ajuda a crianças carentes para a qual contribuo. É evidente que deveriam colocar meu nome e endereço para que eu pudesse receber! Quando rasguei e joguei no LIXO SECO, ficaram intactos justamente este dois dados. E era este o “documento” meu que haviam achado no lixo!!!!! E eu estava sendo multada em “auto de infração” por sujar a rua!

Tentei esclarecer que sou uma disciplinada fanática, que meu lixo seco, é seco mesmo, que sirvo de motivo de chacota para toda a família, já que lavo quentinhas e garrafas, que acondiciono tudo caprichosamente, e entrego pessoalmente ao catador. Contei-lhe que carrego sempre sacolinhas de plástico – estou procurando as ecológicas – para recolher as fezes de meus cachorros, e que ensino isto aos meus netinhos, assim como o que se refere ao lixo seco. Que o catador, freguês meu há anos, havia deixado escapar aquele pedacinho de papel. Que faço parte do Green Peace (que ele nem deve saber o que é). Argumentei, tentei expor minhas ideais acerca de meus deveres de cidadã. Sugeri-lhe que desse a volta e olhasse a praça onde moro, onde a sujeira se acumula há vários dias. O bocó permaneceu intransigente, sempre me repetindo que eu havia violado uma lei municipal. Perplexa, abandonei toda argumentação, e só depois me lembrei de que, como não havia tido flagrante, já ninguém me vira “jogar o documento na rua”, “sujando-a”, eu não poderia ser indiciada. Afinal não é assim que age a justiça brasileira?

A descrição de minha infração é a seguinte:

Por depositar lixo e/ou resíduo em via pública fora do horário estabelecido pelo DEMLURB” 
Há ainda o local do flagrante (?), “no endereço acima citado, próximo à polícia, posto de polícia.” E também a data do “flagrante” e o “horário”. Mas como ele pode saber se ninguém me viu cometer o delito? 

Abaixo ele assinalou entre outras opções “Fica ciente que deverá apresentar defesa (!!!) no prazo de 10 dias do recebimento deste ato.”

Assinei o documento – eu estava transtornada – e perguntei-lhe se deveria ser acompanhada de advogado. Negou. Mas meu advogado vai comigo. O mais engraçado é que o bocó que o acompanhava, também devidamente paramentado, segurava uma porção de talões de débito automático, todos amassados. Tive vontade de perguntar como iriam descobrir os autores do delito, mas já estava de saco cheio. Meu livro delicioso ficara aberto sobre a poltrona, meu cafezinho esvaiu-se naquele absurdo em que a Prefeitura de Juiz de Fora me afogou, minha tarde gostosa havia ido pelos ares. Antes de subir, já a caminho do elevador disse-lhe:

- E eu que votei nesse cara! Antes tivesse votada na opositora, colega minha de tantos anos, mas que é do PT! Bem feito para mim!

Subi, telefonei para Ricardo e combinamos um cafezinho no Shopping. Mostrei-lhe o documento. Estourou de rir “Justo você!”. E é isto que tenho ouvido de toda minha família desde aquele dia 28 de abril.
No dia seguinte encontrei Joaquim, o catador, contei-lhe a história. Atônito, comentou:

- E logo quem!
Mas, com a seriedade que a situação merece, o adverti:

- Olha, Joaquim, e se eu for presa, você vai comigo!

Ontem de manhã, quando voltava da ginástica, encontrei-o catando minuciosamente no chão tudo que encontrava. E havia até uma vassoura novinha.

O que me aconteceu expõe claramente o país patrimonialista, onde os “donos do poder” e seus acólitos consideram o cidadão simples objeto, cuja função é servir aos seus interesses.

Não sei qual será minha pena, mas quem sabe será semelhante à da bruxa que torturou a criancinha de dois anos? E ainda ontem , quando Ricardo voltava de seu passeio com Charmoso, Joaquim, aproximou-se e disse com convicção:

- Professor, está tudo errado! Tudo errado!

É verdade, Joaquim, você definiu bem o país: está tudo errado. E desde o princípio.

Pena que Ionesco e Beckett não estejam mais aqui!

2 comentários:

Ricardo Vélez-Rodríguez disse...

Gatinha, delicioso comentário acerca do corredor kafkiano que é o cartorialismo luso-brasileiro! Esse exemplo ilustra à saciedade a nossa cultura patrimonialista de "aos amigos, os cargos, aos inimigos (no caso, os cidadãos de bem) a lei". Ou aquele princípio que reza assim: "Governar é nomear, demitir e prender". Tenho até curiosidade em ver o que vão te dizer lá, na Prefeitura, no dia em que você comparecer para apresentar a tua "defesa". Tudo errado, como dizia o Joaquim! E "la nave vá", com a campanha presidencial de vento em popa, e a candidata do todo-poderoso fazendo comício, como o ocorrido ontem, dia do trabalho, em São Paulo, com o dinheiro do contribuinte...Tudo errado! Como perguntavam os Romanos da época Republicana, caberia perguntar, no caso dos fajutos fiscais da Prefeitura, "Quis custudet custodes?" ("quem vigia os fiscais?"). Nesta era do lulismo esdrúxulo, em que as safadezas governamentais já enchem páginas e páginas (aliás, vale a pena ler o livro "O Chefe" do jornalista Ivo Patarra, que todas as editoras rejeitaram para publicar e que o autor publicou em edição pessoal, em S. Paulo), nesta época, dizia, de safadeza explícita, mínimos subordinados como aqueles bocós da Prefeitura de Juiz de Fora, consideram-se acima do bem e do mal e tomam contas descabidas aos cidadãos.E a coisa vai piorando. Só um pequeno exemplo, para terminar com a descrição da enorme ladeira rumo ao abismo em que se transformou o Brasil lulesco: descansa na Câmara dos Deputados, para ser votado nos próximos dias, projeto, de autoria do governo (Ministério da Fazenda), que confere aos fiscais da receita poderes extraordinários para ordenar o confisco de bens de presumidos sonegadores, mesmo que não haja ocorrido ação judicial nenhuma contra eles. Os leitores sabiam dessa jóia cartorial? Está tudo errado! O catador Joaquim tem toda razão!

maria cristina disse...

Querida Maria Lúcia,
Apesar de toda esse loucura que pairou em sua vida, foi muito bom ler seu excelente relato! Foi uma pequena volta ao passado, a nossos ensaios e apresentações de Ionesco. Como me diverti naquela época! Como foram bons aqueles tempos, que não voltam mais... Lembro-me que ria tanto daquelas peças absurdas, e que fiquei fanática por praticar a boa pronúncia francesa para poder atuar em nossas peças.
Muito boa sua comparação! Realmente, o que se passou com você é um ato, como diria, até mesmo ridículo. Com tanta coisa errada acontecendo, os funcionários da Prefeitura vão ao detalhe mínimo, com toda a autoridade que puderem demonstrar. Mas, não desanime, continue "verde", continue recolhendo seu lixo, continue assim tão querida. Beijos.