QUEM SOU EU

Sou professora de Francês, mas hoje minha principal atividade é escrever e ler, além de cuidar dos meus três vira-latas: Charmoso, Príncipe e Luther.



Gosto de fazer ginástica, sou vegetariana e adoro animais em geral, menos baratas.



Sinto especial prazer quando meus textos agradam aos meus leitores. Espero continuar produzindo e me comunicando com todos os meus amigos, neste maravilhoso universo da net.



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quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Os best-sellers proibidos do século XVIII

Autos-de-fé, praticados abundantemente nas trevas da Idade Média e do Nazismo, constituíam na queima de livros considerados hereges, infiéis ou não-arianos. Nestas trevas, em geral, o autor, e qualquer pessoa a ele ligada,  era igualmente queimado ou mais “modernamente” enviado às “câmaras de gás”. Hoje quando vejo um ser humano ser queimado vivo, degolado, afogado encerrado em jaulas. Quando vejo crianças  aprendendo a ser carrascos. Quando vejo monumentos de nosso mais remoto passado ser destruídos, penso que ainda temos muita treva. E temo sinceramente que ela se espalhe pelo mundo.
Mas no século XVIII, apesar da falta de higiene, dos desdentados e das perucas imundas, que encobriam carecas igualmente imundas, os carrascos dos livros procuravam prestar “homenagem à força da palavra impressa”. Queimava-se o mínimo possível, sendo mais uma demonstração pública de que a lei estava sendo cumprida. É assim que começa a magnífica obra do historiador norte-americano, Robert Darnton, cujo título copiei para meu artigo. Li-o, quase de uma só vez, há alguns anos, e procurarei colocar aqui o que me parece ser mais interessante e ilustrativo do “século das luzes”. Enquanto queimavam-se alguns exemplares, leitores ávidos liam o que de melhor se publicava de ilegal. E falar em legal e ilegal, lícito e ilícito, é preciso notar que a fronteira existente entre os dois tornou-se difícil de distinguir, já que as próprias autoridades encarregadas desta função procuravam camuflar o que era ser um ou outro. Ser subversivo incluía três critérios, igualmente “flous”: solapar a autoridade do Rei, atacar a Igreja, ferir a moralidade convencional. E dentro destes três princípios havia uma gama complicada de nuances, indo do “muito” ao “moderadamente”. Os que atacavam a moral convencional poderiam voltar às mãos do livreiro ou mandá-lo para a Bastilha. Nesta intrincada “classificação”, encontravam-se lado a lado “O Contrato Social” de Rousseau ou a Enciclopédia, coordenada pelo filósofo e matemático  D`Alembert e o igualmente genial Diderot, e livros pornográficos ou de nenhum interesse. A fonte que melhor se presta para estudo da terminologia do setor livreiro são os documentos STN, “Société Typographique de Neuchâtel”, grande editora atacadista sediada no principado de Neutachâtel, na fronteira entre a França e a Suíça.” Foi através desta grande editora que leitores menos aquinhoados puderam ter acesso a uma literatura “lícita” ou “ilícita”. Com preços reduzidos, edições simples, em menores proporções, puderam os franceses ler o que havia de mais novo e profícuo. Através dos documentos da STN, pode-se perceber claramente todas as dificuldades enfrentadas por problemas de comunicação, por estradas em péssimas condições e pela complicada classificação das obras. ““Filosofia” indicava perigo.” E uma escolha típica abarcava desde a pornografia até a Filosofia como a entendemos.
E dentre esta profusão de criações literárias “filosóficas” , quais os livros mais procurados nesta França pré-revolucionária ? E o que eles puderam influenciar no movimento revolucionário que abalou não só a França, mas todo o mundo civilizado de então? A primeira dificuldade é identificar como um leitor de há duzentos anos leria uma obra ou outra. O mundo de valores era então diferente do nosso! E são estes que dirigem nosso olhar à direita ou à esquerda, de um lado ou de  outro. Este aspecto fica além de nosso alcance. O que está a nosso alcance é tentar compreender as diferentes referências deste mundo, o contexto em que se desenvolveram, e imaginar como puderam atuar na mente dos leitores. A literatura obscena existe desde a Antiguidade. E o que nos parece obsceno hoje não pareceria a um grego, de cuja formação, inclusive intelectual, fazia parte a relação com outro homem mais velho. Por esta função pedagógica surgiu a palavra pederastia, cujo sufixo” ped- “ é o mesmo de pedagogo. Logo a homofobia não era cogitada na Grécia, assim como um tipo de prostituição formada por mulheres cultas, que serviam sexualmente e intelectualmente, chamadas de “heteras”. Consta que Aspásia, amante do grande Péricles, havia sido uma “hetera”. Logo, valores mudam com o passar do tempo e hoje mesmo vemos rápidas mudanças.
O escritor Restif de la Bretonne cunhou o termo “pornographe” numa obra de 1769, em que...” defendia um sistema de prostituição legal, controlado pelo Estado.”Após o refinado “La princesse de Clèves”, escrito por Madame de Lafayette, de 1678, a começou , ainda no século XVII, um processo que culminaria, já no século XVIII , com o mais lido romance pornográfico, “ Thérèse philosophe”, provavelmente escrito em 1748, por Jean-Baptiste Boyer. A obra pode figurar ao lado de “ Les bijoux indiscrets” e “Lettres sur les aveugles” de Diderot, que o levou à prisão em Vincennes. “Thérèse philosophe” é ao mesmo tempo filosofia e erotismo. “Na verdade, o combustível da dupla explosão provinha da mesma fonte: a libertinagem, uma mistura de livre-pensamento e vida livre, que desafiava tanto as doutrinas religiosas quanto os  valores morais.”  Em “Thérèse philosophe” entremeiam-se orgias e discussões metafísicas. Baseado em fato real, mas que no livro assume dimensões dantescas e hiláriantes, Thérèse assiste ao estupro de uma jovem por um padre que a convence que é penetrada pelo cordão endurecido que São Francisco usava no hábito. A dimensão filosófica é a expressão da dicotomia razão e carne, espírito ( no sentido intelectual) e desejo carnal. A linguagem, tratando-se de um livro “pornográfico”, procura evitar um vocabulário chulo, a não ser em histórias como a do padre e da devota.
Mas, dentre tantos livros eróticos/pornográficos não poderia faltar a história de Madame du Barry, a última favorita de Luís XV. “ Anecdotes sur Mme la comtesse du Barry” fez enorme sucesso, pois é divertido, bem escrito e mostra a pobreza vencendo pela astúcia uma corte podre. Não se trata de uma obra escrita num volume, mas de panfletos que circularam abertamente pela França. Jeanne Bécu, nasceu nas camadas mais populares da sociedade, mas sua beleza a faz exemplar. Já tendo morrido, há muitos anos, a rainha da França, e também a célebre favorita de Luís XV, Madame de Pompadour, o velho rei lascivo, se entrega à mais absoluta libertinagem. Normalmente, no caso de morte da Rainha, caberia às três filhas do Rei, chamadas “Mesdames”, o papel de Soberanas. No entanto, segundo conta Stephan Zweig em sua biografia de Maria Antonieta, tratava-se de três velhas carolas, sem nenhum interesse às quais o Rei não dava nenhuma satisfação. Tampouco os cortesãos.  E o velho Luís XV tem seu alcoviteiro, um certo Le Bel, encarregado de encontrar jovens bonitas, que sirvam à libido insaciável do rei e são , bem remuneradas, despachadas pela manhã. É então que entra em cena Jeanne Bécu, muito jovem, fresca e belíssima. E Jeanne não fica só uma noite. Arrumam-lhe um marido com título de nobreza, conde du Barry, imediatamente despachado, um apartamento com passagem direta para os compartimentos reais e “Madame la contesse du Barry”, passa a reinar, apesar do ódio das velhas carolas, da corte, e posteriormente de Maria Antonieta, de quinze anos, manobrada por “Mesdames”. Dominado por seus segredos de alcova, Luís XV passa-lhe um poder irrestrito. À sua volta orbitam cortesãos, embaixadores de todos os soberanos, reis e príncipes. Sua trajetória, desde as prováveis ruas e bordéis até a corte, daria um romance diz Stephan Zweig.
Mas , afinal, tudo tem seu fim, e também o reinado da “du Barry”. Certo dia do ano de 1774, durante uma caçada, o rei sente-se mal, uma terrível dor de cabeça o acomete. Levado à Versailles, cercado dos melhores médicos, pouco a pouco, o soberano francês é diagnosticado com a terrível varíola. É verdade que durante séculos a doença havia matado ou marcado indelevelmente muitas e muitas gerações. Os pais preferiam que seus filhos tivessem a doença em criança, já que ela vinha mais branda. Luís XV já tivera a sua e esta reincidência surpreendeu, assim como a força com que o atingiu. Em poucos dias, seu corpo cobriu-se de chagas que cheiravam a decomposição. O grande Luís XV retomou sua condição de simples humano. Apavorados com a possibilidade de contágio e o odor pútrido, cortesãos se afastaram. Coube então à “Mesdames”, durante o dia, e à “du Barry” à noite guardar seu corpo decomposto. Com medo do Inferno, Luís quis confessar-se, mas os padres fugiam ao se defrontar com o odor e a imagem. Foi o Arcebispo de Paris quem lhe fez a última confissão, que exigiu ser pública, com a corte acotovelando-se nas portas. Poucas horas depois o rei deu seu último suspiro.
La Contesse du Barry, partiu para uma residência particular. Durante a revolução, foi utilizada como pombo-correio entre nobres na França e exilados na Inglaterra. Denunciada, foi presa e condenada à morte. Conta-se que se desesperou na hora da execução, tendo que ser arrastada, denunciando pessoas e tentando até mesmo subornar o carrasco com suas jóias. Por fim, disse em voz quase inaudível: “ S´il vous plaît , Monsieur, seul un petit moment.” Tinha cinqüenta anos.

Discorri mais longamente sobre a história da “du Barry” pois ela ilustra bem o que era a corte francesa. É verdade que há muito mais coisas a dizer sobre estes escritos proibidos e não se pode saber o quanto influenciaram a Revolução Francesa. Desde criança, aos dez anos, na França, apaixonei-me por este movimento que mudou os caminhos do mundo. Já fui monarquista e chorei ao ler a descrição da execução de Maria Antonieta. Também já fui esquerdista radical e considerei meus heróis todos os Jacobinos. Li imensamente sobre este fato histórico sem paralelo. Hoje, com tudo que li, tendo vivido tantos e tantos anos, tenho uma visão mais moderada, que não vou expor, porque, afinal este não é o assunto.

Um comentário:

Nazaré Laroca disse...

Parabéns, Maria Lúcia, por esta crônica intensamente rica de informações!