QUEM SOU EU

Sou professora de Francês, mas hoje minha principal atividade é escrever e ler, além de cuidar dos meus três vira-latas: Charmoso, Príncipe e Luther.



Gosto de fazer ginástica, sou vegetariana e adoro animais em geral, menos baratas.



Sinto especial prazer quando meus textos agradam aos meus leitores. Espero continuar produzindo e me comunicando com todos os meus amigos, neste maravilhoso universo da net.



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sábado, 30 de abril de 2016

Saint-Just, O Anjo Exterminador

Quando meu pai foi estudar na França, eu tinha dez anos. Mas apesar de haver sido uma oportunidade extraordinária, foi a princípio muito difícil. É duro para uma criança abandonar os amigos, o colégio, a bicicleta. Além de hábitos alimentares tão diferentes! Mas, acima de tudo, aquele mundo, cuja língua eu não entendia, me parecia hostil. Mas sempre fui muito adaptável, e alugado o apartamento e começando meu contato com crianças francesas, tudo voltou ao normal. E voltei a ser como antes. E sempre agradecerei a meu pai a oportunidade impar de entrar, ainda tão jovem, em contato com outra cultura. Felippe era um homem cultivado, professor no Instituto Militar de Engenharia e fez questão de que esta oportunidade fosse definitiva em minha vida.
Foi visitando o Louvre que me apaixonei pela Antiguidade e, durante muitos anos, sonhei em ser arqueóloga. Sonho que, infelizmente, não pude realizar. Visitei Versalhes várias vezes, percorri seus salões, desci e subi suas escadarias suntuosas. Muitos anos mais tarde, já adulta, fiz um curso sobre o palácio e descobri espaços recônditos, e desconhecidos dos visitantes, como o pequeno teatro de Maria Antonieta, todo decorado em “papier mâché”, aquela mistura de papel, água e cola com que se faziam bebês. Júlio, um esses bebês, o preferido de minha irmã, Teresa, foi motivo de nossa primeira briga, quando, ainda bem pequena, arranquei sua cabeça. Queria me bater, mas minha mãe não deixou e acho que lhe comprou outro. Pois o pequenino teatro, primor de bom gosto rococó, era o espaço onde a Rainha ensaiava textos com alguns cortesãos e cortesãs. Contava a professora que por vezes o Rei Luís XVI ia vê-la ensaiar. Depois, voltei algumas vezes, mas nunca mais consegui reencontrá-lo.
Visitei a Conciergerie, onde a Rainha, passou seus últimos dias, depois dos meses passados na prisão do Templo. Foi da prisão do Templo, antigo monastério Templário, já destruído, que Luís XVI, agora Luís Capet, devido à sua dinastia, foi levado à guilhotina. Algum tempo depois, seqüestraram o filho da “viúva Capet”, que, apesar de suas súplicas, foi entregue a um “citoyen” sapateiro, e que ela nunca mais voltou a ver. Maria Antonieta, como diz Stefan Zweig na sua biografia, era uma mulher comum, sem nada que a distinguisse de milhões de outros seres humanos. Diz ele : “ O trágico não resulta somente dos traços extraordinários de um ser....mas da desproporção existente entre um homem e seu destino. Manifesta-se quando um ser superior, um herói, um gênio , entra em conflito com o mundo que o rodeia, demais hostil, demais estreito para a tarefa que o mundo o destinou, como Napoleão sufocando no minúsculo quadrado de Santa-Helena ou Beethoven aprisionado em sua surdez......Mas o trágico existe também quando uma natureza mediana, e mesmo fraca, é ligada a um destino extraordinário” Sem a Revolução esta princesa insignificante teria vivido e morrido dentro dos mesmos padrões de tantas outras que a antecederam! Como rainha teria homenagens especiais em sua morte, e não seria mais do que uma lápide, já meio apagada, como tantas “Marie-Adelaïde e Adelaïde-Marie, as Anna-Cathérine e Cathérine-Anna” ...Maria-Antonieta é um dos mais belos exemplos deste heroísmo involuntário”
Estes tempos de minha infância, me levaram a este mundo, e me disseram que a rainha era tão somente uma mártir. Li sua biografia de um membro da Academia Francesa,  Pierre de Nolhac, e chorei. Mais recentemente, além de Stefan Zweig, li uma biografia de Simone Bertière , onde é mostrado o papel que lhe havia destinado sua mãe, Maria Teresa da Áustria, e que não cumpriu e, aliás, nem se interessou. Hoje, levo dela uma imagem bem mais realista, ainda que me comova o que conta Zweig, quase ao final do livro ”A multidão é dispersa. Leva-se em uma carroça o corpo da supliciada, a cabeça entre as pernas. Alguns guardas vigiam a guilhotina. Mas ninguém se preocupa com o sangue que lentamente penetra na terra, o lugar está novamente deserto.”
Nos meus tempos de juventude, vivendo sob uma ditadura, tudo me parecia diferente. Amei os “citoyens”, os “camaradas” e os “companheiros”. Sobre este tema, aliás, escrevi um texto que Ricardo, meu companheiro na época, publicou num blog que tinha na Universidade, e que desde então sumiu do meu, onde publiquei primeiramente. Hoje, já com muitos e muitos anos vividos, não tenho mais paixões e procuro usar a razão para viver.
Mas, afinal, a razão do texto não é Maria Antonieta, nem eu. Quero falar de uma figura que empolgou minha juventude revolucionária: Saint-Just. Releio “Souvenirs pieux” de  Marguerite Youcenar, escritora franco-belga. É uma auto-biografia onde ela faz uma bela retrospectiva de sua existência, desde a gravidez da mãe, Fernande, morta logo após o parto. Penetra fundo no seu passado e de sua família. Vai a tempos medievais e volta à sua juventude. Perde-se nas brumas do passado e fala de si mesma. Falando de sua juventude, diz ela “Como muitos franceses e francesas de minha geração, tive, ainda bem jovem um culto por Saint-Just. Passei muitos momentos no Museu Carnavalet ( museu da cidade de Paris), contemplando o retrato do Anjo Exterminador.....” O Anjo Exterminador é Louis-Antoine-Léon de Saint-Just. E continua, “Este belo rosto enquadrado de cachos flutuantes, este pescoço feminino, envolvido como que pudicamente numa echarpe de fino tecido eram elementos importantes na minha admiração pelo violento amigo de Robespierre. Mais tarde, mudei: a admiração cedeu lugar a uma trágica piedade por este homem consumido antes de chegar realizar-se.” Ao ler o que diz de Saint-Just, chamou-me especialmente a atenção o que me disse alguma vez, ou várias, meu pai acerca de sua admiração de juventude pelo mesmo herói. E o fato de ambos haverem nascido no mesmo ano, 1903. O que levaria aquelas duas pessoas, separadas pela distância e pela cultura, a partilhar a mesma admiração? A mim parece que foram os ideais de liberdade, ainda que Saint-Just tenha ido ao extremo do Terror. Para meu pai, como muitos militares de sua geração, seduzido na juventude pelos ideais comunistas, e, ainda que desiludido devido às barbáries stalinistas, mas para sempre ligado à esquerda, era esse idealismo sem limites que o levava a esta admiração. Meu pai, que apesar de suas idéias, chegou ao ponto mais alto de sua carreira, graças, à sua inteligência.
No processo do rei, os argumentos secos e ásperos de Saint-Just muito influíram na condenação do rei. E diz Marguerite Youcenar : “....ele empurra para o cesto a cabeça dos Girondinos (burgueses ricos que se empenhavam por uma monarquia parlamentar, como a inglesa), as dos Dantonistas ( ou Indulgents que queriam o fim do Terror) , as dos Hébertistas”  , liderados por Jacques Hébert, facção ultra-revolucionária jacobina. Também seu amigo de anos passados, Camille Desmoulins, extraordinário panfletista, do grupo dos Indulgentes. E mais trágico, no dia seguinte às execuções de Hébert -25 de março de 1794,  e de Camille Desmoulins – 5 de abril de 1794,  suas viúvas foram igualmente guilhotinadas, acusadas de complô contra o governo. Durante o processo de Maria Antonieta, agora denominada “veuve Capet”, o execrável Hébert, que não sei se fazia parte dos jurados, lançou-lhe a terrível blasfêmia de que mantinha relações sexuais com o filho, ao que a “veuve Capet” retrucou indignada a célebre frase : “J´en appelle à toutes les mères de France!” ( Peço justiça a todas as mães de França). Terrível blasfêmia, proferida por um demente, contra uma mulher sem armas de defesa, que deixou revoltados mesmos os mais empedernidos revolucionários. Pois após um jantar, ainda durante o processo, relembrando esta e outras nojentas acusações dirigidas a ela, diz Saint–Just, sem escrúpulos: “... servirão para melhorar a moral pública”. Para fundar esta sociedade ideal, dizia a um amigo, estaria pronto a “sacrificar cem mil cabeças, incluindo a sua.” Este homem, obcecado por uma idéia, levou a tal ponto seu ideal que acabou por matá-lo.
Mas todos já estavam saturados do Terror, e assim, num súbito ataque, deputados moderados golpearam de morte o temido “Comitê de Salut Public”, chefiado por Robespierre. Invadida a sala onde estavam, tiros foram disparados atingindo o rosto de Robespierre que teve o maxilar quebrado. Deitado sobre a mesa onde tantas mortes haviam sido decididas, o “Incorruptível” gemia de dor. O sangue jorrava e vários dentes foram arrancados aos pedaços. Um dos membros, Philippe Le Bas, suicida-se, Couthon,  paralítico tenta esconder-se, mas não consegue. Seguem-se trinta e seis horas de agonia. Afinal, sem julgamento, somente confirmando seu nome, foram conduzidos à guilhotina.” Aos vinte e seis anos, elegante, apesar de trinta e seis horas de agonia, impecável no seu fraque e suas calças cinza claro, mas sinistramente despojado de suas longas mechas e suas argolas, o belo pescoço desnudo, despojado do fino lenço branco, ele espera estoicamente sua vez na guilhotina, entre Couthon, o paralítico, e seu herói  da mandíbula quebrada, Robespierre. “
Danton tinha a seu lado todo grande capital internacional, que reagiria. Banqueiros foram decapitados, numa espiral de loucura, mas a vingança viria célere. Pela “force de choses”, este elemento mais forte do que a razão, Robespierre, ao sentenciar à morte Danton, sabia que assinava sua própria sentença. E como é dito no filme “Danton” de Andrzej Wajda, ele previu ao passar pelo prédio onde morava Robespierre, a caminho do cadafalso: “Dans trois mois, tu me suivras, et ton corps pourrira à côté du mien.”
  




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