QUEM SOU EU

Sou professora de Francês, mas hoje minha principal atividade é escrever e ler, além de cuidar dos meus três vira-latas: Charmoso, Príncipe e Luther.



Gosto de fazer ginástica, sou vegetariana e adoro animais em geral, menos baratas.



Sinto especial prazer quando meus textos agradam aos meus leitores. Espero continuar produzindo e me comunicando com todos os meus amigos, neste maravilhoso universo da net.



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domingo, 1 de novembro de 2009

O DESLEIXO

No início de minha adolescência, graças a uma bolsa de estudos de meu pai na França, tive a sorte de entrar em contato com outra cultura. Experiência incomparável, que nos proporciona, sobretudo nesta faixa de idade, o que se convencionou chamar “visão no espelho”, fenômeno em que, confrontado ao outro, o estrangeiro, percebemos a nós mesmos, numa dimensão diferente. Pude, graças a isto, começar desde cedo a desenvolver um olhar crítico sobre a sociedade em que vivia. É verdade que acabei cultivando certas crenças que me acarretaram alguns problemas, mas considero que, afinal, consegui, com este olhar crítico, chegar à juventude com maturidade e já ao entardecer da vida com uma suficiente sabedoria, que nossa educação brasileira pequeno-burguesa sonega aos filhos. Tive ainda a felicidade de encontrar um companheiro como Ricardo. Suas reflexões sobre nossa realidade, nossos longos bate-papos, permitiram um debate sobre tudo aquilo que me parecia perverso no país. E com “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, que li avidamente, como que coroando tudo que havia percebido e discutido, pude, digamos assim, sistematizar o que vinha pensando e debatendo até então.
Não foi novidade para mim, a triste afirmação do autor de que somos uma “sociedade” do “cada um por si”, mas lendo-o conheci o contexto histórico desta nossa triste realidade. Já há muito tempo, só para ilustrar para mim mesma, fico observando o que se passa ao meu redor e não sei se devo rir ou chorar. Aliás, acho que chorar é melhor, porque mostra que, afinal, não aprovo e não quero ser assim. Comecemos com a academia de ginástica que freqüento, onde pesos de quase cem quilos são invariavelmente deixados nos aparelhos para quem vier depois se virar como puder. Em anos de freqüentação, só encontrei uma única alma caridosa, que vendo que havia sido descortês, veio pedir-me desculpas e retirou os pesos. A partir de então ficamos amigos, e o considero um verdadeiro cavalheiro. E ainda há as conversas nos aparelhos, ou as alternâncias intermináveis entre amigos, que privatizam um espaço que é de todos, que pagam (a mesma quantia). Isto sem falar no suor, que não raras vezes inunda assentos, encostos e colchonetes, e que a gente é obrigada a secar e limpar com o detergente, que os instrutores colocam por todo lado. Uma amiga chegou a ficar perplexa porque eu, que pouco transpiro, limpei o aparelho ao deixá-lo. E tem também os ventiladores que, freqüentemente, metem na cara da gente, ou desligam como se nem existíssemos. Como sou atrevida, logo protesto, algumas vezes ouço desculpas, outras recebo uma cara séria, já meio ofendida. Mas não me dou por vencida e defendo sem temor meus direitos, doa a quem doer como diz Boris Casoy.
Tudo isto pode ser englobado numa palavra: DESLEIXO. Diz Sérgio Buarque de Holanda que esta é uma palavra que não tem correspondente em nenhuma outra língua. E, realmente, saindo do Brasil jamais encontrei alhures correspondente concreto deste nosso traço civilizacional. Desleixo na relação com os outros, desleixo na conservação de um patrimônio privado que serve a todos, e pelo qual todos pagam. Há o desleixo com o que é público, de imediato transformado em bem privado. Mas uma das coisas que mais me fascina são as calçadas, hoje, pelo menos na nossa região, infalivelmente, de pedras portuguesas. Como sou obrigada a olhar quase o tempo todo para baixo, evitando buracos perigosos, que já me fizeram torcer o tornozelo – sempre o esquerdo – pelo menos umas três vezes, fico observando o “desenho” que “enfeita” nossas perigosas calçadas. Há um desenho recorrente de um animal que penso pretende ser um cavalo marinho. Mas o de nossas calçadas tem uma espécie de asa, ou coisa parecida, que pode fazer pensar num dragão. Já procurei na Google imagens do bichinho e li alguma coisa sobre eles, já que gosto tanto dos animais, e acho que se forem cavalos marinhos devem ser machos, guardando no ventre os ovos, já que têm, ou tinham, uma barriga proeminente. Mas seja lá o que for, de cavalos marinhos há muito se transformaram em outra coisa. Um dia desses, dei-me ao trabalho de observar atentamente cada um desses finados animaizinhos. Constato, então – sem nenhum espanto-, que poucos, pouquíssimos sobraram. Num percurso de cerca de duzentos metros, há coisas interessantíssimas. A maioria perdeu o rabo e engordou incrivelmente no conserto que tentaram (?) fazer. O rabo juntou-se à barriga e o bicho ficou estranhíssimo, redondo e sem o rabinho revirado que o caracteriza. Outros perderam este membro, e o focinho característico, transformando-se em um bicho inidentificável. Há um, pobrezinho, que perdeu tudo isto e engordou tanto, que virou um saco sem forma definida. E há ainda uns dois ou três que foram cruelmente esquartejados. Deles resta alguma coisa parecida com a cabeça na beira da calçada, ou perto das edificações, o rabo, ou algo parecido, sempre em direção oposta, e, finalmente, um corpanzil, que restou inerte, como prova do homicídio doloso do DESLEIXO, bem no meio da calçada. E finalmente, outros foram volatizados, misturados às pedras claras.
Na praça onde moro, toda coberta das malfadadas pedras, vejo de vez em quando um grupo de operários “consertando” o buraco que a chuva causou. Felizmente não há figuras, que foram substituídas por horríveis remendos. Os desníveis – aliás, alguém conhece uma calçada nivelada no Brasil? - são perigosíssimos, e entre uma pedrinha e outra há quase um centímetro de distância. Os operários colocam displicentemente as pedras, batem com um martelo – não sei se é especial-, coçam a barriga e falam de futebol. O resultado final é horroroso, e perigoso. Como gosto de usar saltos altos, há trechos em que não me aventuro sozinha. Logo eu que já tenho experiência com as calçadas!
Para terminar, um pequeno relato. Há alguns dias, estava eu mostrando ao meu netinho de dois anos os coelhinhos em uma loja vizinha, havia chovido. De repente, uma água imunda cai no meu rosto e entra pela minha boca. Sorte que não foi nele! Sinto algo viscoso, nojento, entrando-me pela boca. Cuspo imediatamente, e repito a operação várias vezes. Corro para casa, escovo os dentes, passo desinfetante bucal. Mas antes de disparar para casa, olho para cima. A água goteja de vários buracos na marquise, onde deveria haver alguma iluminação. Arrancaram as luminárias, os fios estão à mostra, enrolados e enferrujados, gotejando, certeiramente nas cabeças dos passantes a imundice que se acumulou. Mas, afinal, somos uma “sociedade” do “cada um por si”, do “salve-se quem puder”! E não há porque se surpreender.
E uma pergunta que não posso calar: por que estamos tão revoltados com nossos políticos, que não são nada mais do que a mais clara e descarada expressão do país?
E foram eleitos por nós!
E uma notícia de última hora! O que vocês acham dos detectores de armas que há um tempão – não me lembro quanto – foram abandonados em um galpão, ou coisa parecida, justo no Rio de Janeiro? Foram encomendados para vigilância de nossas fronteiras e custaram milhões! Afinal quem será o responsável? Algum dia ficaremos sabendo? E alguém será punido? Ou ainda mais, teremos notícia do destino que tiveram? Afinal é o nosso dinheiro!

2 comentários:

Ricardo Vélez-Rodríguez disse...

Gatinha, gostei do teu comentário sobre o "desleixo", essa espécie de febre tropical em que sucumbe o Brasil. Tudo, no nosso país, fica pela metade. Da Transamazônica à Brasília. Esse era, aliás, o comentário que, em certa oportunidade, me fazia o amigo embaixador Meira Penna, que me mostrava as últimas obras erguidas na Capital Federal para comodidade e benefício da burocracia tupiniquim e para incômodo - e risco- do brasileiro que caminhasse perto dessas obras, custeadas com os impostos que ele paga. Acho que nesse carnaval de descuido tropical, duas coisas se fundem: de um lado, o famigerado "desleixo"; de outro, a ausência de espírito público. Isso produz essa enorme chaga de um país com obras inacabadas, mel-feitas, essa sensação de esculhambação, outro termo, aliás, bem brasileiro. E a coisa está ficando pior com o modelito de governo sindical-lulista, que desembestou o gasto público, que não quer o controle do Tribunal de Contas, que dá carta branca aos mal-chamados "Movimentos Sociais" (MST e quejandos)e aos sindicatos oficiais, cevados nas verbas do orçamento.

Aprendendo e ensinando Ecologia no dia-a-dia disse...

Tia, adorei como sempre o seu último texto! Beijo!