QUEM SOU EU

Sou professora de Francês, mas hoje minha principal atividade é escrever e ler, além de cuidar dos meus três vira-latas: Charmoso, Príncipe e Luther.



Gosto de fazer ginástica, sou vegetariana e adoro animais em geral, menos baratas.



Sinto especial prazer quando meus textos agradam aos meus leitores. Espero continuar produzindo e me comunicando com todos os meus amigos, neste maravilhoso universo da net.



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sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

O sonho não acabou - 2

Há dias, falei de meus sonhos de jovem, e, de maneira peremptória, afirmei que, ao final de todos estes anos, nada havia restado. Hoje, ao acordar, refleti e assustei-me com o radicalismo de meu “veredicto”. E se não posso reunir meus amigos e saber o que pensam, passados tantos anos, posso, pelo menos, dizer o que penso eu. Hoje, como mulher madura, livre das ilusões da juventude, tenho algumas convicções. Sei que é injusto dizer que o sonho acabou, que nossas utopias se desvaneceram no ar, como fumaça. Na verdade muita coisa ficou, que mudou muita coisa, e foi tanto que não dá para dizer tudo em tão pouco espaço.
Na nossa generosidade, comum à juventude, sonhávamos com o fim de toda injustiça, dos preconceitos, das guerras. Nosso erro foi crer que isto se conseguiria com os ensinamentos do velho Marx, e que Mao (que Deus nos perdoe!!), Lênin Trotsky, Gramsci, e outros, seriam condutores de um processo “libertador”. Nosso erro foi crer que Fidel e Che eram heróis, e que Cuba era um paraíso. Gente como eu, sem formação teórica, acreditava simplesmente que o mundo se organizava de forma maniqueísta, dividido entre o Bem e o Mal. E o Bem, ou seja, tudo que ficasse à esquerda, teria o dom mágico, como se fosse um processo mecânico, de acertar o que considerávamos errado. Não creio que ousássemos dizer tal barbaridade, mas, sem dúvida, críamos nisso. Só muitos anos mais tarde, quando se rompeu a célebre cortina, pudemos vislumbrar o que havia do outro lado. E não era nada daquilo que imaginávamos.
Mas havia muitos ganhos. Havíamos iniciado a luta contra preconceitos, alguns quase imemoriais. Nossa geração foi aquela que colocou a grande questão da individualidade, seja nas relações familiares ou nas amorosas. A individualidade que tem sua raiz na liberdade, inerente a todo ser humano, e que nos tem sido sistematicamente usurpada. Liberdade de decidir sobre nossa vida, sobre nosso corpo, sobre as grandes e pequenas questões, não permitindo que outros, família ou amores, decidam por nós. Liberdade que nos permite escolher nossa história, recusando o que chamam de destino, já traçado de antemão, ainda que haja coisas que ultrapassem nosso poder de decisão. Mas é inegável que a imensa parte de nossa história decorre de nós mesmos. E, por incrível que possa parecer, foi naquela época, nos anos de chumbo, quando nossa liberdade era tão reprimida, que uma parte da juventude se deu conta desse principio tão fundamental.
Sempre partindo desse grito de liberdade, havíamos colocado em questão o mito da virgindade, e mulheres como eu puderam declarar – para horror de seus pais - que cada um de nós se pertence a si mesmo, e que, sendo seu corpo parte essencial de sua individualidade, somente a cada um compete decidir o que fazer com ele. Lembro-me, sempre perplexa, apesar da distância em anos, do vaticínio de minha mãe sobre a mulher “perdida”. Havia escutado de mulheres que a antecederam, e ainda que fosse “filha natural”, jamais colocou em questão a estupidez que lhe haviam transmitido as mais velhas. Lembro-me também da extrema irritação de meu pai quando me via recusar “bons partidos”. E também de cada uma de minhas colegas de faculdade, noivas em véspera de casamento, disputando o mais belo enxoval.
E havia ainda a maternidade, elemento considerado indispensável para a felicidade feminina. Vi muitas mulheres entrarem em desespero ao constatar que não engravidavam. Dizia-se que mulher e maternidade estavam indissoluvelmente atadas. È claro que maternidade não pode existir sem mulher, nem sem o homem, mas a felicidade não pode se restringir à capacidade de parir. Hoje homens e mulheres decidem livremente sobre sua vida sexual e sobre sua procriação. Homossexuais podem exercem a paternidade, seja pela adoção ou usando métodos que a ciência coloca a seu dispor. Mulheres solteiras decidem ser mães, assumem seus filhos, que não são mais chamados de “naturais”, ou bastardos. Casais casam-se e vivem em casas separadas, porque decidiram proteger sua individualidade. E ninguém deixa de se amar por isso. E, afinal, a televisão, com suas novelas, cujo público é majoritariamente a classe média, sempre preconceituosa, colocou na moda o casamento misto. Viva ela!
Ainda falta muita coisa, os preconceitos estão sempre por aí, nos dizendo a cada passo que, apesar de uma parte de nossa sociedade haver mudado, ainda há muita coisa a ser feita. Há casos de homossexuais espancados, e até assassinados. Mendigos incendiados, domésticas brutalmente atacadas pelos filhos da burguesia “bem-sucedida”, por “terem sido confundidas com prostitutas”. Pais zelosos, exemplares chefes de família, ou de quadrilha, justificam a bandidagem dos filhos, prole oriunda, ela própria, da bandidagem. Gente que acha menor delito espancar qualquer ser vivo do que usar seu corpo como melhor lhe apraz.

E afinal, podemos dizer que o sonho não acabou. Que não sonhamos um sonho errado, mas que tínhamos fé em falso ídolo. Que hoje sabemos que devemos continuar a sonhar, a tentar melhorar, ainda que a juventude tenha passado e nosso ídolo tenha despencado com o Muro e a imensa estátua de Lênin na Praça Vermelha.

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