QUEM SOU EU

Sou professora de Francês, mas hoje minha principal atividade é escrever e ler, além de cuidar dos meus três vira-latas: Charmoso, Príncipe e Luther.



Gosto de fazer ginástica, sou vegetariana e adoro animais em geral, menos baratas.



Sinto especial prazer quando meus textos agradam aos meus leitores. Espero continuar produzindo e me comunicando com todos os meus amigos, neste maravilhoso universo da net.



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sábado, 1 de setembro de 2007

Zezé e os excluídos

- Mas que diabo de lugar é esse?
Olhou para os lados, girando estabanado o corpo. Esticou o pescoço e teve vontade de gritar “Hei, tem alguém aí?” Mas como não conhecia e achava o lugar pra lá de estranho, sentiu o natural acanhamento. Aliás, desde o começo tudo estava muito estranho. Lembrava-se que, de repente, se vira diante de uma escada imensa, meio em curva, que se perdia lá pra cima. E o pior é que não tinha corrimão. A princípio, sentiu um pouco de medo, mas, sem entender porque, havia começado a subir, como se alguma força o impelisse pra cima. E agora constatava, perplexo, que apesar do corpanzil, não havia feito nenhum esforço para galgar aquelas centenas de degraus, e que, incrível, não sentia nenhum cansaço. Esticou mais uma vez o pescoço, jogando para frente o corpo, olhou pra direita, pra esquerda. Coçou a cabeça. “Afinal, o que está acontecendo?” Não sentia medo diante daquele lugar desconhecido e inusitado, mas queria saber onde estava. Foi então que ouviu um som, semelhante àquele que indica o número das senhas nos locais de atendimento público. Assustado, procurou o mostrador indicativo do número da senha, mas não havia nada. Olhou para trás, procurando os outros clientes, mas estava sozinho.

Subitamente, vi, surgindo lá adiante um vulto que parecia aproximar-se. Forçou a vista, tentando ver quem era. “Tolice, é claro que não conheço. Qual parente, amigo ou conhecido estaria num lugar esquisito como esse?” O homem afinal fez-se mais nítido e ele pode ver que se tratava de alguém jovem, vestido com uma espécie de túnica. Zezé olhou-o, sacudiu a cabeça: “Será que já o vi em algum lugar?“ O homem aproximou-se até poder ser tocado, o que, evidentemente, o outro não fez. “Mas que diabo, quem pode ser ele? Talvez um funcionário de alguma repartição. Repartição pública?” Olhou à volta, não, aquele lugar não podia ser uma repartição. Não havia mesas, nem cadeiras vazias, nem funcionários conversando, tomando cafezinho, nem um público paciente e tolerante. Além disso, era claro, bonito luminoso. É verdade, só agora ele percebia que havia uma linda luminosidade que resplandecia em cada recanto do lugar. E então recordou- se que também na escada que o conduzira até lá fora iluminado por esta magnífica luz. É que estava tão surpreendido que só agora tomava tardio conhecimento do fenômeno. Olhou novamente para o homem diante dele, que o observava com um ligeiro sorriso. Aí tomou coragem e, balançando o corpo para frente, abrindo os braços numa grande indagação, soltou: “Que diabo de lugar é esse?”
“Mas Zezé, você ainda não percebeu?” Desanimado, balançou a cabeça. Olhou para os lados e voltou a fitar o homem diante dele. Então, viu, extasiado, que ele parecia resplandecer. Olhou para si mesmo e viu que seu próprio corpo também resplandecia. Aproximou as mãos do rosto e sentiu que sua pele parecia fina, delicada, macia como de uma criança. Apalpou-se e então percebeu que aquela luz que o iluminava começava a penetrar em seu corpo, que se tornava pouco a pouco etéreo. Até que se transformou em pura luz.
Zezé havia abandonado definitivamente o corpo doente e transformara-se naquela luz divina que o havia iluminado.

Foi então que tomou consciência do que havia acontecido. Não sentiu medo nem tristeza, mas sim uma grande curiosidade.Foi aí que ele ouviu seu interlocutor, que ele até agora não sabia quem era, dizer-lhe: ”Você está no céu”.

E seguiu-se, então, o seguinte diálogo:
- Eu no céu, mas como?
- Por merecimento.
- Mas..... (engasgou sem saber como se dirigir ao outro – doutor, mestre, cara, amigo, camarada) eu sempre fui de gênio ruim, diziam que eu não suportava nada......
- Diga-me, você conviveu com os excluídos?
- Com quem? (Seguiu-se um silêncio, Zezé refletiu e por fim explodiu): Olha, meu amigo, não sou teólogo, nem padre, nem sociólogo, nem nada disso. Esse negócio de excluídos é coisa do Papa e eu não sou religioso.
O outro riu discretamente.
- Mas você não conviveu com eles, não conversou, não lhes deu roupas, alimento?
- Aí sim. Mas não estava pensando em excluídos. Gostava deles, tinha pena. Procurava ajudar. Mas isto, muita gente faz. E, pelo visto, aqui em cima está deserto. Não posso acreditar que sou o único merecedor do céu.
- Nós não estamos tratando dos outros. Estamos falando de você. Responda minhas perguntas e depois dou algum tempo para as suas.
Zezé concordou. Fez o gesto afirmativo com a cabeça, mas uma pergunta estava martelando lá dentro, e isto o atormentava: Quem é esse sujeito que parece ter tanta autoridade aqui no céu? Será São Pedro? Mas ele era velho, assim como o próprio Deus, velho como a eternidade. Teve que morder os lábios, ou o que ainda tinha como representação de seu corpo, para não soltar a pergunta.
- Zezé, preste atenção. Depois eu respondo a todas as suas perguntas. Afinal, porque você se reunia aos excluídos?
- Eu já disse, doutor (estava danado com aquela pergunta recorrente e resolvera cortar o “amigo”) É PORQUE EU GOSTAVA DELES. Como gosto ainda. Como gosto de meus irmãos, e eles não são excluídos, de minha família, de meus amigos, e de muitos outros. Também gosto de cachorros, e pode ser de rua ou de madame, gosto do mesmo jeito.
- Você ia à igreja?
- Bem..... muito pouco. Ultimamente,... bem,... não. E isto conta ponto contra? Olha, moço (agora já estava mais amigável), se rezar muito vale ponto, estou fora. Não vou mentir.
- Mas Zezé, você não sentia uma certa repugnância no contato com aqueles paus d´água? Afinal, eles eram sujos, cheiravam mal.
- Olha, tem muita gente rica que fede pra caramba. Conheço muito rico que fede mais que gambá. Eles fedem porque não têm água, nem sabão, nem banheiro.
- Zezé, você acredita na Virgem?
- Quê?...Olha, minha família sempre acreditou, ou melhor, minha mãe acreditava, e eu nunca achei isso muito importante.
- E no Papa?
- Também não pensei.
- E no Espírito Santo.
- Também não pensei.
- E na castidade?
- O quê? O que tem a castidade?
- Você foi casto?
- Olha, doutor (o tratamento mudava de acordo com a irritação que as perguntas produziam nele), fui casado duas vezes. O que diriam minhas mulheres se eu resolvesse ser casto?
- Quero dizer, você foi casto ao tornar-se fiel às suas sucessivas esposas?
- Doutor, isso é assunto particular. Não admito que queira interferir na minha vida. Ora essa! E tem mais uma coisa, se continuar perguntando, e eu respondendo, como deve ser, vou acabar no inferno. É melhor parar por aí, e me mandar para um lugar intermediário. Quem sabe o purgatório de que falavam quando eu estudava com os padres?
- Diga-me, você já pensou que muita gente passa fome no mundo?
- Já pensei sim. Aí, como eu não podia fazer nada pra terminar com a fome, ajudei os famintos que estavam perto.
E iam ainda continuar a conversa quando, subitamente, o homem calou-se, olhou para frente, atrás de Zezé. E sorriu largamente. Zezé também se virou e, surpreendido, reconheceu seu amigo Getúlio.
- Mas quando eu morri, ele ainda estava lá!
- É que ele morreu logo depois. E como é bem magrinho, veio mais rápido. E já se acostumou com a vinda para o céu.
Com um gesto de amigo, chamou Getúlio, que surpreendentemente, não estava atônito como estivera Zezé ao chegar.
- Getúlio venha abraçar seu amigo.
- Meu amigo! Mas então tenho amigos no céu?
Aproximou-se e, tendo reconhecido o velho companheiro, abraçou-o ternamente. E neste abraço fraterno ficaram durante algum tempo, o burguês e o pobre diabo, alcoólatra, assassinado pela mulher. Queimado.
- Doutor, com todo respeito, esse homem merece o céu.
Com os olhos marejados, Getúlio abraçava o amigo, companheiro de jornada, que partira pouco antes dele e que agora acabara de reencontrar no céu. E aos poucos foram chegando outros, pobres, paus d´água, sujos e maltrapilhos. Mas tudo isto, bebedeira, pobreza, sujeira, fome, abandono, tudo era coisa do passado. Transfigurados pela luz divina que habita cada um deles, foram formando a volta do recém-vindo, ele próprio transfigurado, um círculo. E foram se aproximando cada vez mais, até que seus corpos diáfanos se uniram num só e, irradiando uma luz cada vez maior, elevaram-se ao infinito, onde brilhava a Via Láctea, e nela se integraram.

Mas, agora, podem vocês perguntar, com a mesma curiosidade que martelou o coração de Zezé: “Afinal, quem é este jovem que tantas perguntas colocou para o homem que acabara de chegar?” Esta resposta só poderemos obter quando chegarmos, nós também, ao céu. E podem crer, pela experiência de Zezé, não vai ser fácil obter a resposta. Mas que importa?

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